A Língua (ou o que nos faz ser aquilo que somos)

A LÍNGUA (OU O QUE NOS FAZ SER AQUILO QUE SOMOS)


Rainer Maria Rilke

Ednei de Genaro

Mestrando pela UFSC (2008)

A língua será sempre des-una, vária – objeto de reconhecimento e de usos múltiplos. É por meio dela que produzimos nossa identificação e buscamos segurança diante das mil facetas que constituem o nosso “eu”. Não à toa, a psicanálise a considerou um objeto privilegiado de pesquisa, pois busca compreender os problemas linguísticos que a pessoa atribui a si mesma.

O psicanalista quer “salvar” o paciente? Ora, nada melhor do que ajudá-lo a realizar seu próprio movimento peripatético da vida. Jesus e Aristóteles — o homem do sentimento «bom» e o homem da razão «boa» — são exemplos notáveis. A língua é, antes de tudo, algo que pertence incondicionalmente a cada indivíduo, ainda que seja atribuída como valor universal e instrumento comunicativo prático. Guimarães Rosa soube demonstrar a necessidade da conquista subjetiva da linguagem em uma cultura, evidenciando o esforço para a realização e expressão próprias na construção da linguagem. Em discurso crítico, ele dizia:

“Até a nossa ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada ensina aos outros; estudando os outros, tratamos então de elegantizá-los em nós, e pelas formas alheias destruímos a escultura da nossa natureza, que é a própria forma de todos. (…) Sons e perfumes, flores e fulgores, roupagens e adornos, graças e tesouros, são sem dúvida grandes dotes de muitas princesas; porém de poucas será o corpo belo, sadio, forte, e a alma com a dor da humanidade e com a existência do que é eterno. Deixemos os mestres da forma – se até os deuses passam! É em nós mesmos que está nossa divindade. Não é pelo velho mundo atrás que chegaremos à idade de ouro, que está adiante além. (…) Nesta natureza (americana) estão as próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas montanhas; ela à sua imagem modelou a língua dos seus Naturais – e é aí que beberemos a forma do original caráter literário, qualquer que seja a língua diferente que falarmos”.

Podemos notar um paradoxo interessante ao defender a individuação da língua. Pois bem: ao afirmar a diferença primordial na presença da comunicação linguística, não seria impossível a comunicação? Na verdade, o oposto parece mais correto: caso não houvesse uma individuação distinta em cada pessoa, não teríamos motivo para nos comunicar. Obviamente, não somos programados de antemão dentro de um sistema linguístico, como as máquinas. O campo da hermenêutica nasce acreditando nisso. Para os humanos, a língua é algo aberto, um espaço de constante encontro com perguntas filosóficas, seja em expressão oral ou escrita. Assim, a construção real das coisas só pode estar em nós, seguindo nossa procura individual. O “espírito coletivo” é algo apenas abstrato, mas que, ainda assim, se torna útil para pensar o caráter maior de uma cultura.

No meio artístico, por exemplo, é evidente o elo de significações reais entre aquilo que sustenta nossas identidades e o espírito coletivo. O ambiente da linguagem é múltiplo, de modo que as aspirações dos artistas e os engenhos das artes criam expressões infinitas — manifestações individuais do que captaram da cultura. E o que dizer do indivíduo contemporâneo vivendo sob uma linguagem crescentemente tecnificada? A língua, escrita e falada, vem sendo submetida, a passos largos, às conformidades de moldes, programas, métodos e códigos racionalizantes que anulam qualquer liberdade autêntica. A crítica à retórica maquinalizante questiona a redução da língua a um objeto de secura comunicativa, de rigor pragmático e sofisticação superficial, com uma ordem significativa pueril.

Fernando Pessoa compreendeu que a constituição da língua nunca se torna um objeto fixo. Ela é, essencialmente, cultural e, como tal, não é «simples» comunicação, mas um processo de vivência. Ele refletia sobre o quão ingênuo seria tratar a língua portuguesa como unidade, quando, na verdade, ela é síntese de agrupamentos de culturas diversas: europeia, moura, árabe.

Entretanto, a crença na “racionalidade” perverteu o homem, diria Nietzsche, negando sua razão sensível. Muitas filosofias atuais são corrompidas, codificadas em arrogância propositiva. São formas humanas distantes do poetizar e do filosofar, uma vez que a voz objetiva do homem “vence”. Assim, ele ignora os vastos mundos que compõem os atos múltiplos de sentir, nomear e trazer as coisas para si, compondo-as a partir do horizonte subjetivo. A poesia é a expressão suprema do caráter inerentemente subjetivo da língua. Continuaremos, portanto, a dar voz aos poetas. Se os atos originários do falar e do pensar estão pervertidos, talvez as palavras de Rainer Maria Rilke apontem caminhos para superar os desenganos:

“Só existe uma jornada: caminhar para dentro de si mesmo”.

A língua é o que nos faz ser o que somos; o que expressamos é parte de nós. Drummond, ao refletir sobre isso, respondeu:

“Cada escritor é uma linguagem dentro da linguagem comum. Que cada um escolha seu léxico reduzido em meio à variedade de palavras oferecidas à expressão e ao estilo”.

A linguagem é parte orgânica e única do indivíduo. Assim, chegamos à inspiração de Guimarães Rosa, que concebia a capacidade infinita do homem de pensar e produzir linguagem própria:

“O homem é um descobridor; (…) Considero a língua como meu elemento metafísico: escrevo para ser Deus, estou sempre buscando o impossível, o infinito (…). Sou místico: posso permanecer imóvel durante longo tempo, pensando em algum problema e esperar. (…) Nós, sertanejos, somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer. (…) Os livros nascem quando a pessoa pensa. (…) Faço do idioma um espelho de minha personalidade para viver: como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. (…) Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito, o momento não conta. (…) Escutem elementos da língua que não podem ser captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas. (…) Meus livros são escritos em um idioma próprio, um idioma meu (…); não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros”.

O poético é a revelação da palavra em seu sentido mais completo e original. A vida, entendida como poiesis, afasta-nos da secura comunicativa que destrói a individuação própria. O problema está em conceber a língua como mero “instrumento de informação”; o enaltecimento extremo dessa noção é preocupante. É preciso, portanto, não abdicar de reinventar continuamente a língua, tal como declarava Rimbaud sobre o amor:

“É necessário reinventar o amor, proclamando a subversão dos sentidos”.