Ação política em Hannah Arendt.

O QUE SIGNIFICA AÇÃO POLÍTICA EM HANNAH ARENDT?

 

Ednei de Genaro

Mestrando pela UFSC (2008)

“O mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado como no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que virão depois de nós”

(ARENDT, Hannah, 2004, A Condição Humana, p.65).

A concepção de ação política em H. Arendt está profundamente fundamentada na ideia de nossa condição de existência humana no mundo. Esta pensadora, diante de uma época que ela própria denominou de “tempos sombrios”, enfrentou a crise do pensamento vivida pelo Ocidente no século XX, produzindo uma das reflexões mais profundas sobre os problemas políticos e éticos de seu tempo.

Nosso ensaio propõe uma breve interpretação das ideias-chave que conferiram à autora uma percepção original e radical da ação (práxis) política na democracia[1]. Observaremos na obra desta pensadora uma fenomenologia inovadora na definição de liberdade, que conduz à concepção de política como modo de existência, assim como uma importante distinção entre os termos trabalho, labor e ação. Essa distinção permitirá localizar a instância da ação como essencialmente pública e política, bem como constatar as manifestações decorrentes da “crise da política” que afetam as sociedades democráticas modernas.

As bases da teoria política de H. Arendt originam-se da condição cíclica do homem no mundo. Esta percepção fenomenológica, conforme a reflexão apresentada na epígrafe, evidencia a brevidade da vida humana diante da História: não somos os primeiros nem os últimos a habitar a Terra. Ao surgirmos no mundo, somos educados segundo a dimensão cultural de uma determinada época, com seus problemas e prazeres. Estamos imersos em um universo cultural do qual somos formados e ao qual conferimos sentidos e funções para a política na vida pública.

Para Arendt, o conjunto de tradições que nos são transmitidas e que mobilizamos constitui o atributo fundamental do conceito de liberdade, uma vez que envolve as atividades do mundo comuns aos homens – isto é, a esfera da vida pública. A dimensão da vida pública é, portanto, o estado que possibilita a expressão da liberdade humana[2]. Se somos livres, teremos uma vida pública que manifesta essa liberdade. H. Arendt adota uma concepção de liberdade dita negativa: ela advém da capacidade da ação humana em fundar e preservar corpos políticos nos quais os homens, por meio de seus feitos e palavras, se apresentam uns aos outros.

A liberdade prática dos homens no mundo, em Arendt, não se afirma pelo livre-arbítrio da consciência individual (como em “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de I. Kant), mas pela realidade dada pela vida activa no mundo. “O mundo humano”, escreve H. Arendt (2004, p. 120), “é sempre produto do amor mundi do homem, um artifício humano cuja imortalidade potencial está sujeita à mortalidade daqueles que chegam a viver nele”. Não há vida sem as atividades que a tornam possível; é o amor do homem ao mundo que convoca sua existência.

Para a pensadora, a distinção – e, sobretudo, a relação – entre vida activa e vida contemplativa é crucial para uma existência orientada por reflexão criativa e por uma postura política autêntica no mundo. O homem, além de possuir inteligência, é, antes de tudo, o animal laborans, que desempenha ciclicamente suas necessidades vitais.

Cumpre analisar que a vida activa é constituída por três noções fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor refere-se aos esforços que um ser vivo realiza para manter sua vida e perpetuar a espécie. O trabalho diz respeito aos esforços voltados à produção do mundo dos artefatos, objetos úteis à reprodução e facilitação da vida. Arendt ressalta que o trabalho não constitui a raiz da socialização, mas é uma atividade à parte do “mundo político”, ligada apenas à subsistência (ARENDT, 2004, p. 56). O problema é que – como adiantamos – no decorrer da História, as atividades humanas evoluíram de “fabricantes de instrumentos”, meros artesãos, para a figura do animal laborans moderno: o operário ou trabalhador. A vida moderna, segundo Arendt, situa-se na perspectiva de um mundo que eleva a emancipação do trabalhador (ou a superação do “reino da necessidade”, como sustentam os marxistas) como o único interesse da vida humana, centrado na abundância de bens materiais e no domínio da Natureza.

É na noção de ação que Arendt repensa a política. A pensadora distingue internamente dimensões da vida activa e contemplativa: pensar, querer e julgar são propriedades da vida contemplativa[3]. Esta última é um atributo presente, em regra, a todos os seres humanos. Arendt enfatiza que não é necessário ser especialista ou profissional para se tornar um pensador (no sentido amplo) e ter capacidade de realizar julgamentos políticos autênticos. Ela recorre à Grécia Antiga para iluminar sua reflexão. O ato de pensar é, acima de tudo, uma atitude socrática. Sócrates mostrou que o pensamento é o maior artifício humano para confrontar o mal. Em última análise, Arendt sustenta que, como em Sócrates, pensar e agir não podem estar em contradição; uma vida sem exame e reflexão não é uma vida plena.

A. BERTEN (2004, p. 79) ajuda a compreender que, em Arendt, a ação (práxis) e a palavra do homem (o ser “dotado de linguagem”) “se ligam à ‘pluralidade’ dos homens que vivem juntos, revelando também ‘esta única individualidade’ que pertence a cada um. A ação é o que instaura o novo, o inesperado”. “O fato de que o homem é capaz de ação”, escreve Arendt (apud BERTEN, 2004, p. 79), “significa que de seu lado podemos esperar o inesperado; significa que ele está à altura de realizar o que é infinitamente improvável”.

A originalidade radical reside em compreender a ação política como não finalística e não teleológica, admitindo sua existência diante da contingência e, frequentemente, de ordens que não se vinculam a propriedades éticas. O amor ao mundo frequentemente exige que as ações políticas dos indivíduos estejam, do ponto de vista moral, em desacordo consigo mesmos. Ao conceber a política como “um fim em si mesmo”, Arendt exerce crítica, por exemplo, à “Declaração dos Direitos Humanos”, proclamada pela Revolução Francesa, e à concepção de “Contrato Social”. BERTEN (2004, p. 80) observa que “para Arendt, em todo caso, esses ‘procedimentos’ [da constituição do viver juntos] não podem, em hipótese alguma, ser pensados independentemente dos conteúdos de sentido oferecidos pelas tradições: a ideia de contrato social é absurda, pois sugere que podemos conceber um modelo de sociedade independente daquilo que realizamos ao longo da história”.

A impossibilidade de separar filosofia moral e moral política implica que se pode amar a si mesmo e ser prejudicial ao mundo (ARENDT, 2004, Cap. 7). A incapacidade de pensar na vida moderna traduz-se, sobretudo, na dificuldade de julgamento sobre os acontecimentos e, consequentemente, na inabilidade de lidar com o que é esteticamente ou moralmente danoso à vida pública.

Ao refletir sobre a virtude diante das questões de sua época, H. Arendt sublinha o caráter problemático da conciliação entre princípios morais e política desde os gregos. Se a ética grega tinha como eixo o “cuidado com a alma”, a política tem como eixo o “cuidado com o mundo”.

Não é a conformidade com a moralidade social que assegura a plenitude da vida. A mobilidade criativa da ação e a necessidade de fundamentar nossas decisões são imprescindíveis na política. Ao repensar a ação política, Arendt, filósofa de origem judaica, buscou respostas para as crises e catástrofes da Europa da primeira metade do século XX. Entre esses eventos, destacam-se a crise das tradições, a ascensão da individualidade diante do declínio da esfera pública e o surgimento de ideologias que culminaram em uma nova forma de organização política: o totalitarismo.

Para Arendt, a principal manifestação dessas crises é a perda do senso comum, entendido não em sua acepção corrente (como oposição ao saber científico), mas como ausência de significados compartilhados por uma comunidade política.

As consequências mais graves dessa perda são a anulação da responsabilidade individual frente ao mundo comum. Com os investimentos humanos voltados para o eu ou a família, a redução do animal laborans à esfera do trabalho limitou sua busca por bem-estar e felicidade à dimensão do consumo. “A sociedade [do século XX], sentenciou ARENDT (2004, p. 56), é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública e na qual as atividades voltadas à mera sobrevivência são admitidas em praça pública”. A ascensão dos regimes totalitários evidenciou dramaticamente essa crise. Neles, a alienação do “amor do homem ao mundo” criou uma sociedade, como na Alemanha nazista, em que a perda total da liberdade e do valor da esfera privada e pública foi agravada por uma ingênua colonização tecnológica do mundo.

Sua leitura da história do século XX levou Arendt a compreender tanto a crise da política quanto a solidão vivida pelas massas. A experiência do povo alemão foi marcada por profunda solidão[4] – uma aversão total ao amor mundi. Foi assim que o “mundo judaico” pôde ser desumanizado, uma vez que a solidão representou, por excelência, a paixão anti-política, ou seja, a radical perda do domínio sobre si e sobre os outros. Para Arendt, o Holocausto e a frieza nazista evidenciaram a expressão mais desumana da ignorância em relação à autenticidade da ação política e ao domínio aterrorizante das formas banais de conduta maliciosa.

Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hannah, 2004, A condição humana. 10. ed., Forense Universitária, Rio de Janeiro.

ARENDT, Hannah, 1997, “O que é Liberdade?”, pp. 188-220. In: Entre o passado e o futuro. Perspectiva, São Paulo.

BERTEN, André, 2004, “A política do bem comum e da vida boa. A tradição aristotélica”, pp. 70-85. In: Revista Filosofia Política, Paulus, São Paulo.


[1] Apoiamos, para tanto, em partes da obra “A Condição Humana” (2004), no artigo “Que é Liberdade?” (1997), ambos de H. Arendt; e no artigo de A. BERTEN (2004).

[2] “(…) para ser livre, o homem deveria ter se liberado das necessidades da vida. O estado de liberdade, porém, não se seguia automaticamente do ato de liberação. A liberdade necessitava, além da mera liberação, da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e também de um espaço público comum para encontrá-los – um mundo politicamente organizado em outras palavras, no qual cada homem livre poderia inserir-se por palavras e feitos” (ARENDT, 1997, p. 194).

[3] Para o entendimento pleno destas noções dadas pela autora, ver Capítulo I, “A Condição Humana” (ARENDT, 2004, pp. 15-30).

[4] “Nas circunstâncias modernas, [a] privação de relações ‘objetivas’ com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornou-se o fenômeno de massa da solidão, no qual assumiu sua forma mais extrema e mais anti-humana” (ARENDT, H., 2004, p. 68).