Angústia e miséria humanas em “São Bernardo”.

A ANGÚSTIA E A MISÉRIA HUMANAS NO PERSONAGEM PAULO HONÓRIO, EM SÃO BERNARDO
Ednei de Genaro
Mestrando pela UFSC (2008)
A escrita de Graciliano Ramos cativa e faz pensar. Ele teve o dom de colocar em palavras os sentimentos arraigados de tipos humanos quase mudos, embrutecidos pelo destino indigente e desencorajados pela vida. Não por acaso, pode-se tê-lo como um dos mais autênticos escritores do país e como um dos que mais projetou o Brasil “profundo” na prosa do século XX.
Neste texto, daremos algumas notas críticas acerca do personagem Paulo Honório, em torno do qual se organiza o drama da obra São Bernardo.
São Bernardo é uma de suas obras-primas. Foi escrita em 1934. O livro retrata aspectos da sociedade nordestina do final da década de 1920, que, no seio da política e da economia, misturava o arcaico sistema coronelista com um capitalismo ainda atravancado. Graciliano finca sua ficção nas raízes dessa realidade. As mudanças históricas e suas consequências aparecem por meio de vários elementos. Sobressai, porém, a descrição das “marcas” do uso do poder e da ideologia da classe dominante sobre a população rural, pobre e ignorante.
Uma das capacidades literárias de Graciliano foi amplamente admirada: a de criar a dimensão psicológica das personagens atrelada ao contexto social vivido. O crítico literário Antonio Candido não deixou de notar isso, lembrando que, em romances como os de Graciliano, “não se trata mais de situar um personagem no contexto social, mas de submeter o contexto ao seu drama íntimo”.
O romance conta a vida de Paulo Honório, um homem rude, dominado pela aspiração imoderada de ascensão social e econômica. Seus desejos o tornam cego pela arrogância e brutalidade de seu espírito. Tendo convivido com as mesmas tradições das pessoas que o rodeavam e o acolhiam, o progressista Honório passa a se tornar alheio aos costumes, ao amor e às dores do povo ao seu redor. Dois exemplos: quando busca a “velha” Margarida, demonstra algum afeto por ela, mas, em seguida, resume a racionalidade que o move: “Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu”; ou quando manda construir a escola e a igreja em sua fazenda, demonstrando, ao final, que não tinha intenção de educar as crianças nem possuía religiosidade.
Honório torna-se, assim, o fazendeiro a quem somente interessa o mundo para cumprir e receber os apoios do governo. As instituições sociais convertem-se em partes de sua fazenda. O mundo público é, na verdade, apenas mais um componente de sua propriedade: tanto a escola quanto a igreja eram investimentos, capital.
Honório é o arquétipo do homem que passa a reificar as coisas e a coisificar as pessoas. Seu mundo rude contamina toda a sua família e vida social. Do mesmo modo que tomou posse da fazenda, quer tomar posse também de Madalena, torná-la sua mulher, mesmo que isso signifique transformá-la em alguém de autonomia nula, um objeto. Para Madalena, dirá o pragmático Paulo Honório: “A senhora, pelo que mostra e pelas informações que peguei, é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de família (…) Se chegarmos a acôrdo, quem faz um negócio supimpa sou eu”.
Graciliano nos mostra que os sentimentos de posse e de poder transformam Paulo Honório em um homem dotado de intolerância e ciúme. São esses sentimentos que o fazem indignar-se e esquivar-se da maior educação e inteligência de Madalena. “Não gosto de mulheres sabidas”, ele diz a ela. Ela, porém, para desgosto do marido, passa a se preocupar com os trabalhadores e a cultivar ideais de comunitarismo e socialismo. As diferentes formas de ver o mundo entre Paulo Honório e Madalena abrem um abismo entre ambos. Os desencontros tornam-se constantes.
Entre eles, podemos dizer, há um divisor de águas que separa uma vida governada pela libertação do ser e outra pela necessidade do ter. E havia ainda um mundo que o realismo de Graciliano expunha em sua raiz histórico-social: o retrato da sofrida e impraticável inclusão do Brasil agrário e arcaico no Brasil capitalista que avançava para os lugares mais recônditos.
O humanismo de Graciliano constrói um livro que pode ser, portanto, uma aguda visão crítica da sociedade pré-capitalista em processo de transformação no país. Visão esta produzida a partir do retrato de Paulo Honório, o homem que se desumaniza, degrada-se no individualismo e na cegueira diante das injustiças sociais. Ser que vive, assim, toda a angústia e a miséria humanas de ser um homem burguês em “terras brasileiras”. Sua brutalidade é suavizada — e ganha lampejos de esperança — apenas quando escreve seu “testamento”: “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins (…) Foi êste modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma bôca enorme, dedos enormes. (…) Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!”.