DIDEROT E A CRÍTICA À MORALIDADE SEXUAL NO SÉCULO XVIII
Ednei de Genaro (2008)
Introdução
Introdução
Em uma breve explanação das ideias de Diderot (1713–1784), é necessário notar que este filósofo, diferentemente de muitos outros de sua época, não buscou desenvolver uma filosofia sistemática, metafísica ou “pura”. Isso, contudo, não significa que estamos diante de um pensamento obscuro ou descompromissado com a coerência lógica. Diderot, como lhe atribuíram comentadores e críticos, foi um pensador do paradoxo e do ceticismo[1].
O autor de O Sobrinho de Rameau e da primeira Enciclopédia, não afeito às exposições frias, tratados e axiomas, preferiu uma filosofia capaz de dialogar intensamente com as posições e contextos diversos de sua época, fossem eles contrários ou polêmicos. Diderot foi um materialista que escreveu, ao mesmo tempo, sobre a “hipótese divina”, o ceticismo e os costumes, interessado sobretudo no debate e no esclarecimento do público.
Pretendemos aqui analisar a crítica de Diderot à moralidade sexual. Para isso, seguimos o seguinte roteiro: primeiro, evidenciar as bases materialistas que sustentam o pensamento de Diderot, revelando algumas de suas ideias acerca da moralidade; em seguida, abordar suas concepções sobre a natureza humana e a posição “natural” da mulher na sociedade; depois, discutir as teorias sobre sensualismo, vida dos instintos e causalidade natural; e, por fim, analisar A Religiosa (1760) e Sur les femmes (1772), com referências a outros romances do filósofo, como O Sobrinho de Rameau (1762) e Jacques, o Fatalista (1773).
Considerações sobre a natureza humana no materialismo de Diderot
“Queres saber, diz Orou, um nativo do Taiti, em Suplemento à Viagem de Bougainville, ‘o que é bom ou mau? Apega-te à natureza das coisas e das ações; às tuas relações com teu semelhante; à influência de tua conduta sobre tua utilidade particular e o bem geral’”
(Diderot apud Piva, 2003, p. 302).
Na filosofia de Diderot, a compreensão da ação humana se dá, antes de tudo, pela análise filosófica da matéria — ou da substância, conforme o sentido dado nos séculos XVII e XVIII. A matéria, para Diderot, não pode ser postulada a partir de uma ideia de Deus ou de uma ordem transcendente que governe as almas. Ela precisa ser pensada a partir do sistema físico e da natureza, que explicam tanto a ordem quanto o caos, fundamentando a condição humana: sua natureza e suas ações.
Desde seus primeiros escritos, Diderot investigou teses que contrariavam as filosofias racionalistas e idealistas da época, demonstrando que todos os fenômenos, incluindo os espirituais, dependem de processos físicos reais. Isso implicava a busca por uma organização sistemática da natureza, baseada em “cadeias contínuas”, que explicassem relações desde as formas mais primitivas até as mais complexas, como as do domínio humano.
Diderot reafirmou a tradição do materialismo iniciada pelos atomistas gregos, dialogando com filósofos contemporâneos como La Mettrie (1709–1751) e P. T. Holbach (1723–1789), que priorizavam concepções fisiológicas do humano em detrimento das metafísicas. Para os materialistas franceses, a natureza possui energia poderosa que afeta todos os seres, inclusive a interioridade humana, sendo a matéria sensível e organizada de modo que qualquer restrição à sua expressão provoca desequilíbrio.
Para Diderot, a natureza física é o motor último da conduta humana: a alma não ultrapassa o que dita a vida e a organização material do corpo. Vontade e livre-arbítrio são determinados pelo sistema natural do qual o humano faz parte, e toda matéria (física, orgânica, biológica) interage com o mundo exterior de forma ativa e heterogênea.
A conduta moral deve seguir as necessidades profundas, que são, em última instância, o maior bem, o desejo e a liberdade de fruir do ser humano. Os erros morais não provêm da natureza, mas das convenções sociais viciosas que restringem e embrutecem, impedindo a fruição da natureza humana. Assim, Diderot coloca a essência do homem antes do homem da lei, questionando desvios da ordem natural e da virtude histórica que promovem irracionalidade, supressão das paixões, ausência de liberdade e alienação da verdadeira natureza humana.
Expondo-se delicadamente frente à difícil posição política do século XVIII, Diderot expressava seu descontentamento com dogmatismos religiosos e filosofias idealistas:
“Falaremos contra as leis insensatas até que sejam reformuladas; e, entretanto, nos submeteremos a elas”
(Diderot in Guinsburg, 1966, p. 35).
A natureza do sexo e a condição feminina
“Tão logo a mulher se tornou propriedade do homem, o desfruto furtivo de uma rapariga foi considerado roubo, viu-se nascer os termos pudor, moderação, decência; virtudes e vícios imaginários; em uma palavra, quiseram erigir entre os dois sexos barreiras que os impedissem de se convidar reciprocamente à violação das leis que lhes foram impostas, e que produziram amiúde efeito contrário, aquecendo a imaginação e irritando os desejos”
(Diderot, Suplemento à Viagem de Bougainville, apud Ribeiro, 2003).
No século XVIII, a mulher ocupava uma posição social depreciada, sem reconhecimento de sua sexualidade. O Iluminismo trouxe críticas aos valores e ritos religiosos, bem como aos modos conservadores e moralistas da elite, fomentando uma cultura erótica libertina nas cidades europeias.
Diderot enfatizou a individualidade feminina, considerando a mulher um ser de desejo sexual e estudando as formas de controle social a que era submetida, pensamentos ousados para a época (Ribeiro, 2003). A mulher era um objeto que precisava ocultar desejos diante de uma cultura repressora, rejeitando a concepção de passividade restrita à maternidade. Romano (1987, p. 125) destaca a marginalização histórica de judeus, mulheres e homossexuais, marcada por discursos masculinos e pelo controle social.
Em Sur les femmes (2000 [1772], p. 226), Diderot lamenta:
“Mulheres, como eu vos lastimo! Não havia senão uma compensação para vossos males; e eu fosse legislador, talvez a tivésseis obtido. Libertas de toda servidão, vós seríeis sagradas em qualquer lugar em que tivésseis aparecido”.
O sexo é, para Diderot, força motriz da vida humana, independente do gênero. A repressão dessa força provoca desequilíbrios, e a mulher é particularmente vulnerável. O comportamento histérico, segundo a medicina da época, teria causa material no útero, cuja insatisfação geraria histeria. Assim, a organização biológica feminina torna suas paixões mais intensas e vulneráveis a desordens (Romano, 1987, p. 127).
Essas ideias encontram expressão em A Religiosa, em que Diderot descreve os costumes e injustiças nos conventos, articulando reflexões filosóficas e políticas.
A crítica à moralidade no romance A Religiosa
O romance centra-se em Suzanne, que tenta escapar das regras monásticas que reprimem sua natureza. Sensível e compassiva, Suzanne não suporta a escravidão imposta a corpo e sentimentos, revelando que “não há nada pior do que ser religiosa à força” (Diderot, 1962, p. 54).
O romance mostra a vida monástica como sistema que ignora a natureza humana, gerando mesquinhez, perseguições, torturas e degenerações morais. Segundo Piva (2003, p. 259), “a castidade e as continências radicais, além da maceração da carne, serão a causa dos vários casos de desvarios, de excessos de comportamento e dos muitos sofrimentos nos três conventos pelos quais Suzanne passou”.
Diderot analisa a repressão sexual no convento, especialmente na relação entre Suzanne e a Madre Superiora, cuja coerção sexual leva a uma escalada de histeria e morte. Suzanne sofre represálias, mas consegue fugir, embora sua reputação e saúde fiquem comprometidas.
Romano (2003, p. 83) interpreta o romance como denúncia de como a moral sexual repressora domestica paixões e subtrai liberdade, felicidade e humanidade. Diderot mostra que desejos reprimidos podem gerar anomalias fisiológicas e problemas sociais.
Em outras obras, como Jacques, o Fatalista e seu Amo e O Sobrinho de Rameau, Diderot questiona igualmente a moral sexual, criticando os costumes que privilegiam reputação em detrimento da natureza humana (Diderot, 2006a, 2006b).
No romance A Religiosa, a crítica não recai sobre a religião ou textos sagrados, mas sobre instituições religiosas que perpetuam a repressão sexual, contrariando a natureza biológica humana. Assim, a crítica diderotiana à moral sexual denuncia aprisionamentos e julgamentos que negam necessidades fundamentais do ser humano. Embora suas explicações fisiológicas não tenham respaldo contemporâneo, seu humanismo crítico permanece relevante, destacando-se na denúncia das instituições que controlam a moral sexual no século XVIII.
Referências:
DIDEROT, D. 1962, A Religiosa. In: Obras Romanescas. VOL.I. Tradução de Antonio Bulhões e Miécio Tati. Introdução e notas de Henry Bénac. São Paulo, Difusão Européia do Livro.
________, 2000, Sobre as mulheres. In: Obras I. Tradução, organização e notas de J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva.
________, 1772, Sur les femmes. In: ________, 1772, Sur les femmes. In:http://www.larevuedesressources.org/article.php3?id_article=634
________, 2006, Jacques, O Fatalista e seu Amo. In: Obras III. Tradução, organização e notas de J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva.
________, 2006, O Sobrinho de Rameau. In: Obras IV. Tradução, organização e notas de J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva.
GUINSBURG, J., 1966, A Filosofia de Denis Diderot. São Paulo: Cultrix.
PIVA, Paulo Jonas de Lima, 2003, O ateu virtuoso: materialismo e moral em Diderot. Prefácio de Eliane Robert Moraes, São Paulo: Discurso: Fapesp.
RIBEIRO, V. B. 2003, A intimidade feminina do séc. XVIII em Diderot. CienteFico. Ano III, v. I, Salvador, Janeiro-Junho.
ROMANO, R., 1987, Lux in Tenebris: meditações sobre filosofia e cultura. Campinas: Editora da Unicamp.
___________, 2003, Moral e Ciência: A monstruosidade no século XVIII. São Paulo: Editora Senac de São Paulo. Série Livre Pensar, vol. 15.
[1] Invertendo o sentido do princípio do pensar de Santo Agostinho, Diderot sentenciava: “O primeiro passo para a filosofia é a incredulidade”.
[2] Para escrever este esboço, foram valiosas as obras dos seguintes comentadores: PIVA, P. (2003); GUINBURG, J. (1966); ROMANO, R. (1987; 2003).
[3] Em Sur le Femmes (1772, p. 255), Diderot escreveu: “La femme porte au dedans d’elle-même un organe susceptible de spasmes terribles, disposant d’elle, et suscitant dans le délire hysterique qu’elle revient sur le passé, qu’elle s’élance dans l’avenir, que tous les temps lui sont présents. C’est de l’organe propre à son sexe que partent toutes ses idées extraordinaire” .
