Estado em Hegel e a crítica do jovem Marx: Marx contra Hegel ou contra os Utilitaristas?

O ESTADO EM HEGEL E A CRÍTICA DO JOVEM MARX:

Marx contra Hegel ou contra os Utilitaristas?

Ednei de Genaro

Mestrando pela UFSC (2008)

Na discussão sobre a existência (ou não) de uma verdadeira teoria marxista do fenômeno político, Norberto BOBBIO (1979: 20-1) chama atenção para o que seriam duas “deformações graves” das escolas marxistas. A primeira seria pensar que a expressão “sociedade civil” em Marx e Engels é apenas uma contraposição a Hegel. A segunda seria acreditar que a crítica de Marx à teoria do Estado de Hegel se resume ao seguinte silogismo: Marx é crítico da sociedade e dos Estados burgueses, enquanto Hegel seria o maior representante da teoria burguesa do Estado.

Concordamos com Bobbio e propomos estender brevemente suas refutações às duas “deformações dos Marxismos”. O propósito deste breve estudo é mostrar, primeiro, elementos que afastam Hegel de uma teoria política do Estado burguês; em seguida, demonstrar como Marx realiza sua crítica à concepção hegeliana do Estado. Sustentamos a tese de que, de acordo com o texto Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), a crítica do Estado realizada pelo jovem Marx é imanente a Hegel, sendo que, na verdade, tanto Marx quanto Hegel se opõem principalmente aos utilitarismos disseminados na filosofia e na economia políticas.

Na Filosofia do Direito de Hegel, o Estado aparece como o fim da atividade da vida ética de uma comunidade, que integra família e sociedade civil. Em outras palavras, a forma estatal tem primazia ontológica enquanto “efetividade da vontade substancial, efetividade que ela tem na autoconsciência particular erguida à universalidade do Estado” (HEGEL, 1998, §257). Assim, o conceito de Estado não surge apenas como aparato institucional, mas como a forma que efetiva plenamente a realização social finita, ou seja, que integra toda a vida ética.

Hegel aborda o problema da representação política moderna ao conceber o Estado como agregador das liberdades subjetivas (individuais) na vontade substancial universal. Introduz a ideia de uma autoridade pública suprema que, por meio de instituições, leis e ações, efetiva o equilíbrio das formas de eticidade. Isso lhe permite afirmar que todo direito natural (jus-naturalismo) é resultado de movimentos de objetivações históricas, e não de um contrato social, como pensaram Locke e Hobbes, por exemplo.

No Prefácio à Filosofia do Direito, Hegel esclarece a posição do Estado dentro de seu idealismo especulativo: a ciência, “no desfraldar do pensamento e do conceito”, consiste em encontrar:

“a rica articulação do ético em si, que é o Estado, a arquitectónica da sua racionalidade que, mediante a nítida distinção das esferas da vida pública e suas respectivas competências, graças à força da proporção em que se sustém cada pilar, cada arco, cada contraforte, faz, da harmonia dos seus membros, sobressair a força do todo. Tal como o mundo em geral, segundo Epicuro, o mundo ético não está abandonado, mas, de acordo com esta concepção, deveria abandonar-se à contingência subjetiva da opinião e da arbitrariedade.” (HEGEL, [1820], p. 6)

Hegel (assim como Marx) critica a concepção do Estado como mera constituição de “muitos”, de uma multidão amorfa, que caracterizaria uma visão não-política “burguesa”, isto é, a liberdade individual deixada “à contingência subjetiva da opinião e da arbitrariedade”. Contra essa concepção de “Estado burguês”, Hegel afirma o Estado político como espírito objetivo, a liberdade concreta [1].

A filosofia do direito hegeliana reage ao Utilitarismo. Segundo essa doutrina dominante no século XIX, o indivíduo – e não o todo – é o fundamento. O princípio da utilidade orienta a ética, de modo que o indivíduo deve agir visando o valor positivo máximo, calculando as consequências de suas ações para alcançar maior prazer e menor dor.

O Utilitarismo é, portanto, a ética da consequência ou do “capitalismo”. Hegel (e Marx) rejeitam principalmente a concepção individualista moderna que considera o indivíduo como realidade primeira e auto-referente. O indivíduo não é o fim nem o princípio do Estado, que opera com categorias do direito privado (contratualismo) e com o princípio ético do benefício pessoal (utilitarismo). Enquanto, para Hegel, o fim é o Estado, para Marx o “fim” é o povo, a sociedade civil.

Hegel concebe a sociedade civil como um conjunto de subjetividades e particularidades dos interesses individuais. Esse conjunto forma apenas um aspecto do Estado, uma “necessidade exterior, uma potência exterior” (HEGEL, 1998, §281). A sociedade civil é um sistema de autoridades e órgãos autônomos, “egoístas”, que estabelecem redes de relações privadas e espontâneas e assumem fins particulares. É um “sistema de necessidades” autônomo (como propõe o ideal utilitarista), mas que depende do Estado para organizar direitos e deveres das esferas do direito privado e público [2].

BOBBIO (1979, p. 20) afirma corretamente que a sociedade civil em Hegel “não significa absolutamente uma sociedade econômica contraposta ao Estado, mas sim uma primeira manifestação do Estado, que o próprio Hegel denomina ‘Estado do intelecto ou da necessidade’”.

No estudo do jovem Marx, o Estado ético de Hegel aparece como uma aparência ideológica, uma mistificação filosófica e um formalismo que encobre a verdadeira essência: a sociedade civil. Marx não busca criticar um suposto “liberalismo” de Hegel, mas sim o idealismo da concepção de Estado hegeliano [3].

Se, para Hegel, o Estado retoma – pelas categorias do idealismo especulativo – a tese clássica da anterioridade lógica do todo político (presente já em Aristóteles, o primeiro grande anti-utilitarista), para Marx isso constitui a essência do “misticismo lógico”: o povo só se evidencia de forma real nos momentos relacionados à vida do Estado.

A sociedade civil, em Marx, não se manifesta em especulações que encobrem suas tensões. Marx critica Hegel por conceber a soberania popular como uma “massa informe”, representando a multidão em desordem, de modo que somente a república política, organizada pelos três poderes (monarquia, governo e legislativo), pode oferecer a ordem social.

Marx (2005, p. 95) não concorda que, em Hegel, o cidadão

“para se comportar como cidadão real [efetivo] do Estado, para obter significado e eficácia políticos, deve abandonar sua realidade social, abstrair-se dela, refugiar-se de toda essa organização em sua individualidade; pois a única existência que ele encontra para sua qualidade de cidadão do Estado é sua individualidade nua e crua (…)”.

O Estado é um abstrato; o povo, um concreto (idem, p. 48). Na verdadeira democracia, o Estado abstrato deixa de ser preponderante, e os modos de existência particulares (propriedade, matrimônio etc.) nunca alcançam o próprio Estado político. Este é, paradoxalmente, “ele mesmo um elemento particular [não universal], como uma forma de existência particular do povo (…), ou seja, não é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos” (idem, p. 54).

A ideia de verdadeira democracia em Marx é radicalmente moderna. Ela se expressa como autodeterminação do povo e constitui a essência de todas as formas de Estado. A pretensão é retirar a alienação política da objetivação constitucional no Estado.

Marx realiza uma crítica imanente a Hegel, invertendo seus termos: a soberania do povo é real; o Estado, abstrato – lugar de estagnação, castas, burocracias, corporações, interesses particulares e formalidades. Como afirma BOBBIO (1979, p. 30), a originalidade de Marx está em “não ver o Estado como a forma mais alta de convivência racional”. Segundo Bobbio, Marx nega, todavia, o problema das instituições modernas porque as pensa apenas a partir de sua dissolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOBBIO, Noberto, 1979, “Existe uma doutrina marxista do político?”. In: BOBBIO, N. (et al.). O Marxismo e o Estado. Tradução de Frederica L. Boccardo e Rennée Levie. Rio de Janeiro: Edições Graal (pp. 13-31).

MARX, Karl, 2005, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel(1843). Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo.

HEGEL, G. W. F., [1820], “Prefácio”. In: Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Tradutor Artur Morão. (http://www.lusosofia.net/textos/hegel_prefacio_linhas_filosofia_direito.pdf). Acessado em: 18/05/2008.

HEGEL, G. W. F., 1998, “O Estado”, Terceira Parte, Terceira Seção, §257-360. In: Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Tradução de Marcos Muller. Textos Didáticos/IFCH/N°32. Campinas: UNICAMP.

HABERMAS, Jürgen, 2000, “O conceito hegeliano de modernidade”. In: O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes.


[1] Uma vez que medeiam suas autoconservações (moralidades) por meio das relações com as outras pessoas jurídicas (sociedade civil) no Estado, os indivíduos só têm objetividade, verdade e eticidade enquanto ele é membro do Estado.

[2] Conforme interpreta HABERMAS (2000, p. 54), Hegel foi o primeiro “a dar expressão terminológica a uma conceituação adaptada à sociedade moderna, separando a esfera política da ‘sociedade civil burguesa’. Ele recupera, por assim dizer, em termos de uma teoria social, a contraposição da teoria da arte entre modernidade e Antigüidade”.

[3] Como notou BOBBIO (1979, p. 21): “Que o Hegel da Filosofia do Direito seja o maior teórico do Estado Burguês, é uma afirmação que não cabe nem no céu nem na terra (…). Marx sabia muitíssimo bem o que não sabem mais certos marxistas, ou seja, que a filosofia da burguesia era o utilitarismo e não o idealismo”. Indivíduos em Hegel valem politicamente, “não como Uti singuli, mas como membros de uma corporação”. Iremos, pois bem, ir um pouco adiante desta leitura.