IDEIAS DO ‘CRÍTICO RADICAL’ ROBERT KURZ
Ednei de Genaro
Mestrando em Sociologia Política (UFSC-2009)
O intelectual alemão Robert Kurz pode ser visto como um dos raros pensadores a realizar uma revisão bem articulada e, no mínimo, significativa do ‘velho marxismo’. É, por conseguinte, um dos poucos a pregar uma forma de pensar emancipatória em tempos de queda das “grandes narrativas” utópicas (seja em tempos de ‘pós-modernismos’). Talvez outro pensador que também faça isso hoje, com considerável peso, seja o acadêmico inglês István Mészáros.
As ideias deste autor alemão são marcadas, no Brasil, por uma produção ensaística inteligente e mordaz. Seus textos, apesar de amplamente traduzidos para a língua portuguesa, estão dispersos em ensaios, manifestos, trechos de livros etc.[1] Penso aqui em elaborar um texto que possa oferecer ao leitor – que ainda não teve contato mais amplo com os textos de Kurz – uma apresentação de suas ideias e questionamentos centrais. Tento, portanto, dar forma a algumas de suas ideias que considero fundamentais. Fico, obviamente, circunscrito às limitações próprias de um ‘texto introdutório’[2].
Há um parecer revolucionário para o século XXI: um pensamento prático-emancipatório “pós-marxista” se funda na revisão crítica das teorias de emancipação e demais construções de críticas categóricas ao capitalismo dos séculos XIX e XX. A proposta constitui-se, sobretudo, sob o escopo da criação de uma forma de ‘libertação’ da razão iluminista (do “progressismo”, principalmente), que perdura em toda a tradição da filosofia política e da teoria social crítica.
Surpreende que Robert Kurz seja um intelectual com grande capacidade de trazer pontos de vista sui generis sobre diversos temas contemporâneos que geram intensos debates nas ciências sociais e na filosofia, tais como: a “revolução sexual”; a “natureza em ruínas” e os “movimentos ambientalistas”; a “globalização e as bolhas financeiras”; as “crises político-mundiais”; a “expropriação do tempo pelo trabalho negativo”; e o “neoliberalismo”. É também um pensador capaz de apimentar posições críticas interessantes a respeito dos pensamentos pós-modernistas, discordando fundamentalmente da substituição do paradigma da economia política pelo do culturalismo.
Veremos, portanto, como o pensamento de Kurz analisa as insuficiências contemporâneas das duas visões de marxismo que imperaram até então. E como ele entende que uma verdadeira práxis política deve expressar uma crítica categórica à “ordem geral do mundo do trabalho”. Esses dois pontos críticos nos levarão à questão mais difícil e capital para Kurz (e, sem dúvida, para qualquer pensador da política contemporânea): a necessidade de continuar a revisão crítica da razão iluminista iniciada no século XX e a pretensão, segundo a visão kurziana, de superar a forma coercitiva do fetiche da mercadoria e da dissociação geral e sexual que o capitalismo contemporâneo reproduz.
AS INSUFICIÊNCIAS DAS INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS DO MARXISMO – O “DUPLO MARX”
“(…) Trata-se agora, inapelavelmente, de libertar a obra de Marx dos modos de interpretação oblíquos e impregnados de incenso, cujo momento quase-religioso remete a uma sombria faceta não redimida (e até hoje irredimível) dessa teoria. O momento quase-religioso do marxismo procede certamente também do conteúdo religioso secularizado do próprio movimento da modernização, que nada mais é que a libertação de uma forma de fetiche (valor e dinheiro). Dentro deste movimento histórico como um todo, no entanto, a forma fenoménica específica da adoração marxista do fetiche nutre-se do temor ante o impossível e irredimível em geral na teoria de Marx, a saber, ante o princípio de uma crítica radical dessa própria forma de fetiche objetivada e interiorizada.”
(Robert Kurz, no ensaio “O pós-marxismo e o fetiche do trabalho”, 1995)
Para Kurz, é necessária a construção de uma consciência pós-marxista, na qual cabe firmar uma crítica às interpretações dadas por um tal “Marx esotérico” – pois esta visão se desenvolveu e centrou apenas na ‘crítica do valor’ do fetiche da mercadoria que domina a sociedade como um todo – e também criticar o seu reverso, o “Marx exotérico”, que buscou a expressão teórico-emancipatória dos ‘proletários’ por meio de uma visão de Marx como mero dissidente do liberalismo burguês, centrando-se apenas na crítica da exploração do trabalho.
As interpretações do “Marx exotérico” e do “Marx esotérico” formaram, em linhas gerais, as duas interpretações enviesadas que permaneceram no marxismo do século XX e que, hoje, são insuficientes.
Quanto à interpretação exotérica, prevaleceu a ideia de que os intelectuais marxistas pregaram uma teoria da modernidade/revolução (“modernização” e “libertação” do mundo) baseando-se na categoria-chave da luta de classes. Referiam-se à ascensão de uma força interna de libertação gerada pelo movimento histórico de desenvolvimento das forças produtivas e consequente exacerbação da contradição entre as classes. Esta foi a visão do chamado “marxismo tradicional” adotada pelo movimento operário. O marxismo exotérico, tal como pensa Kurz, entendeu corretamente que o capital é uma relação social, mas visto apenas sob o foco sociologizante dos ‘dominantes’ e ‘dominados’. Não percebeu, contudo, uma mudança fundamental (principalmente no século XX): que o proletariado também é e gera, de sua parte, o capital. Sua emancipação, como mostraram as experiências socialistas do século XX, não aboliu a relação fetichizada pela mercadoria, originária do capitalismo e distintiva deste modo de produção.
Reduzindo o marxismo a uma mera sociologia de classes, isto é, à aporia política entre burgueses e operários, o marxismo na forma “exotérica” reservou-se a criar um meta-sujeito (o proletariado) mistificado e cultuado religiosamente, que se mostrou insuficiente e, principalmente, ilusório.
A interpretação esotérica, por sua vez, anunciou a ideia radical de mistificação real da forma como tal da mercadoria e do dinheiro, mostrando a imposição do capital como jurisdição e reificação de todas as relações. Tudo se consuma em um sistema dinâmico e autodestrutivo. A emancipação social do proletariado não pode ser efetivada, pois a base ontológica do capital continua a reinar. Conclusão: não há saída possível sem o rompimento do valor fetichista por meio da superação da mercadoria e do dinheiro.
Do mesmo modo, esta interpretação esotérica teve suas insuficiências: o “Marx esotérico” se prendeu a um conceito monista de capital, colocando a sociedade inteira dentro da forma-fetiche, sem exceções, sem “válvulas de escape”. Com razão, contudo, o “Marx esotérico” respondeu que não é mais possível fixar-se nos conflitos de classes como existentes em si mesmos. A classe operária é um momento da relação capitalista – e não sua ‘opositora predestinada’.
Assim, a conclusão do pensador alemão diante deste “duplo Marx” é: somente a interpretação do “Marx esotérico” se voltou teoricamente para a crítica categórica ao capitalismo, e isso ainda contém um germe positivo, mas fica presa a uma formulação filosófica que nivela tudo ao egoísmo da “essência humana” e das relações humanas, sem desenvolver novos conceitos e perspectivas emancipatórias. Por outro lado, a interpretação esotérica criou uma expressão teórica errônea que se voltou para o “desenvolvimento imanentemente positivo” do capitalismo, com grandes consequências negativas no século XX[3].
Uma crítica coerente do fetichismo precisa, portanto, revisitar o “Marx esotérico”, mas sob um novo olhar, irrompendo pela radicalização do conceito de trabalho abstrato, que retira as ilusões românticas a respeito do sujeito como ontologicamente determinado pelo “mundo do trabalho”, elevando a questão emancipatória a outro patamar.
A CRÍTICA CATEGORIAL AO TRABALHO HUMANO
“Desde a industrialização, o moderno foi marcado pelo antagonismo de classes entre ‘trabalho assalariado’ e ‘capital’, entre ‘proletariado’ e ‘burguesia’. Essa oposição parecia ontológica, porque o ‘trabalho abstrato’ era entendido como uma necessidade natural e eterna e, apenas num sentido totalmente externo, como substância do capital. Na ideologia oficial burguesa, a forma capitalista era inseparável da necessidade do ‘trabalho’ mesmo, e na ideologia socialista o ‘trabalho eterno’ deveria supostamente libertar-se da forma capitalista.”
(Robert Kurz, entrevista a José Galisi Filho, Revista Trópico, setembro de 2006)
O período contemporâneo é marcado pela chamada terceira revolução industrial. Dominado pelas revoluções maquinárias e informatizações, este período provoca uma mudança central: a desvalorização da força viva de trabalho.
Um sintoma disso é o cenário das “bolhas financeiras” provocadas pelas concorrências mundiais e suas mediações. Isso levou à revisão da antiga visão de Marx de que o trabalho abstrato constitui “a transferência de energia humana com a finalidade de valorizar a substância do capital”. A fórmula já não procede; não é mais adequada. Kurz argumenta que, pela primeira vez, a radicalização da produção capitalista supera a expansão dos mercados, e a questão do trabalho torna-se um grande engodo, sendo sua expressão própria a crise do capitalismo.
A concepção do que seja o trabalho humano fundamentou diferentes visões do marxismo. Segundo Kurz, os marxismos sempre caíram na antiga redução “exotérica”, que caracterizou o trabalho como eterna necessidade natural para mediar o metabolismo entre o homem e a natureza, e, por conseguinte, a vida humana. Esta foi, em suma, a expressão de uma categoria negativa do trabalho: como momento de sofrimento psíquico e social do “reino das necessidades”. As novas sentenças seriam: a categoria de “luta de classes”, baseada na oposição binária proletário/burguês (ou trabalho/capital), não pode mais servir à crítica do capital; a categorização de classe social não é mais uniforme; e a categoria libertadora do trabalho, via teorias “ontologizadoras” (como a de Lukács), estaria destinada ao fracasso. É, portanto, preciso formular uma crítica categórica ao capital “desontologizada”.
Segundo Kurz, o trabalho, na verdade, não é outra coisa senão a forma ativa ou o estado ‘vivo’ (como escreveu Marx) do próprio capital. Assim, “o capital” e “o trabalho” guardam, em conjunto, uma identidade negativa de ordem superior. O conceito de trabalho constitui apenas um aspecto inerente ao conceito de capital. A formação do trabalho é um estágio transitório que deve ser superado. Essa superação implica considerar ambos os momentos da abstração: abstração da forma e da esfera separada do trabalho.
O marxismo incutiu um conceito ontológico de trabalho para legitimar a forma histórico-filosófica que se libertaria pelo restabelecimento romântico do valor de uso das coisas produzido no interior do próprio trabalho. Contudo, segundo Kurz, o conceito de trabalho não pode ser entendido como uma condição existencial supra-histórica da humanidade. Concebê-lo assim equivale a criar um conceito fetichista. Portanto, é imprescindível destruir a ideia de trabalho como uma ontologia todo-poderosa.
Na verdade, o conceito de trabalho não tem (e não deve ter) ancoragem ontológica. Uma teoria crítica da sociedade baseada na ontologia do trabalho é redutora e limitada, pois desemboca na ontologia do “valor”: o sujeito – também no sentido ontológico – permanece preso a um conjunto de conhecimentos e ações pautadas pela forma mercadoria.
Na modernidade, a libertação abstrata da forma-trabalho só é possível quando o trabalho se diferencia como esfera separada e “realmente abstrata”, ou seja, quando ele é separado do restante do processo vital – quando o homem produtor de mercadorias “desconsidera” (abstrai) a qualidade sensível de seus objetos realizados em vista do trabalho como um assunto perpétuo.
O grande exemplo para Kurz é a modernização e o colapso capitalista da “história socialista” da URSS. Enquanto o consumo de força de trabalho preenchia o horizonte da reprodução social, o gigantesco módulo contabilístico era absorvido pela burocracia, que se voltava para a forma do valor e da mediação monetária.
O diagnóstico subsequente de Kurz é que o capitalismo atual, após as experiências (pseudo)comunistas, torna-se cada vez mais “incapaz de explorar” o trabalho humano, na medida em que os padrões de produtividade e rentabilidade produzidos pelo capital não ocorrem mais por uma reprodução alargada em termos econômicos reais. A tese sustenta que a crise do capitalismo contemporâneo é conduzida pela constante “hiperacumulação estrutural” ao nível global: crise “incapaz de explorar”, mas que trouxe uma forma monetária do capital que radicaliza a contradição entre a pobreza e a “riqueza abstrata”.
O resultado dessa hiperacumulação manifesta-se em constantes situações de desemprego estrutural em metrópoles, em estruturas financeiras superinflacionadas que concentram o capital (as “bolhas financeiras”), no declínio das classes médias e na decadência geral do mundo social.
A modernidade e a diminuição do sofrimento da reprodução social, proporcionada pelo potencial atual das forças produtivas, não modificam em nada a forma direta e concreta do trabalho. Para Kurz, o problema decisivo é a superação das formas humanas de relacionamento, ou seja, a superação do modo como o trabalho foi historicamente empregado pelo sistema capitalista. Essa superação deve ser mediada e refletida, e não apenas tecnológica.
É esse problema que leva Kurz a repensar o conceito de sujeito, tal como utilizado pela tradição iluminista. Uma nova figura meta-reflexiva – um novo sujeito – só será possível caso compreendamos melhor a questão contemporânea da “dominação social sem sujeito”. A “dominação do homem pelo homem”, diz Kurz, não pode ser entendida de modo externo ou subjetivo, mas como uma “constituição abrangente de uma forma compulsória da própria consciência humana”.
No ensaio “A dominação sem sujeito”, Kurz explica:
“Repressão interna e externa se acham no mesmo plano de codificação inconsciente. Dominação das tradições, poder militar e policial, repressão burocrática, ‘coerção muda das relações’, reificação, auto-reificação, autoviolação e autodisciplina, opressão sexual e racial, auto-opressão, etc., são apenas formas fenomênicas de uma única constituição da consciência fetichista, que lança uma rede de poder e, portanto, de dominação sobre a sociedade. O poder nada mais é do que o fluido universal e penetrante da constituição do fetiche, forma fenomênica tanto interna quanto externa – presente desde sempre – da própria inconsciência formal.”
Todos, trabalhador e capitalista, tornam-se personas do capital – submetidos ao processo de “dominação sem sujeito”. O caráter do sujeito é sempre entendido como submisso à constituição do fetiche. Nesta constituição, prevalece o “automatismo” que rege o sujeito e retira por completo sua subjetividade.
A visão de Kurz sobre o sujeito é histórica: a imposição exercida pela forma-mercadoria é produzida historicamente (não antropologicamente). Assim, ela é superável historicamente: não é o sujeito (o homem) em si que está corrompido, mas a construção que a história moldou nele.
Para Kurz, a superação do “todo-poderoso” conceito ontologizado de trabalho humano exige continuar a realizar a ‘tabula rasa’ da razão iluminista e, consequentemente, da condição moderna. Só assim a consciência pós-marxista poderá ser conquistada, abrindo espaço para as questões mais difíceis e polêmicas.
A CRÍTICA À RAZÃO ILUMINISTA E À CONDIÇÃO MODERNA
“O fundamento de todas as teorias e ideologias modernas é a filosofia do Iluminismo, que, como ‘mãe de toda reflexão afirmativa’ (até no marxismo tradicional), contribuiu substancialmente para a formação do sistema produtor de mercadorias global. Por isso, a crítica radical do valor e da dissociação precisa incluir também uma crítica radical do Iluminismo. Não se trata, contudo, de uma crítica no sentido do contra-iluminismo conservador ou da antimodernidade irracional, mas de uma crítica às raízes do pensamento moderno, fixado na metafísica real do valor.”
(Robert Kurz, entrevista a Sonia Montaño, 10/06/2006)
O pensamento iluminista sempre enalteceu a “autonomia” e a “liberdade” dos indivíduos, promovendo a divinização do individualismo. Segundo Kurz, uma autêntica ideologia do Iluminismo se produziu quando formulou um conceito único do indivíduo, no qual o “Eu” abstrato se tornou o signo de uma sociedade atomizada, aplicada na teoria do valor e nas modernizações liberais capitalistas.
Nesse modelo, a originalidade dos indivíduos é destituída. O Iluminismo, ao equiparar idealmente sujeito e indivíduo, ignorou a dimensão do “Eu” abstrato da modernidade, que se manifesta na violência do valor, das dissociações gerais e sexuais e do fetichismo da mercadoria exercido pela sociedade produtora de mercadorias. Esta é, segundo Kurz, a “ilusão” do pensamento iluminista burguês. A modernidade caracteriza-se pela aniquilação da capacidade do sujeito de possuir uma “individualidade organizada”, ou seja, consciente da coisificação presente no mundo fetichizado. Marx foi o primeiro a compreender essa situação ao descrever a formação de “sujeitos automáticos” na modernidade capitalista.
O Iluminismo está imerso em antinomias e aporias impossíveis de superar dentro de seu próprio âmbito, perpetuando contradições sociais. Seu pensamento baseia-se em um processo de polarização que sustenta a própria negação imanente: conceitos opostos como progresso/reação, racionalidade/irracionalismo, civilização/barbárie, cultura/natureza, liberdade/servidão, democracia/ditadura, indivíduo/sociedade, igualdade/diferença e sociedade/comunidade coexistem sem resolução.
Nunca há resolução desses “contrários inimigos”. Para Kurz, essa polarização é o eixo da vida capitalista, sustentando a dinâmica interna da socialização do valor e da dissociação capitalista.
Assim, Kurz oferece uma meta-crítica que mostra como a polaridade aprisiona a modernidade, produzindo socializações sempre cindidas e negativas, e garantindo a “estrutura esquizóide” do Iluminismo. No ensaio “Ontologia Negativa” (jan., 2003), ele observa:
“O mercado, sob a forma de gigantescas organizações empresariais, adota cada vez mais funções do Estado; os aparelhos estatais, por seu lado, vão-se transformando em empresas quase comerciais, cada vez mais adaptadas à economia de mercado. O público é privatizado sob a forma dos media capitalistas; o privado é tornado público de modo voyerista no conteúdo ordinário desses mesmos media (desde a miséria pessoal das vítimas até à vida sexual dos políticos).”
Para escapar a essa lógica polarizadora, seria necessário pensar em uma negatividade crítica capaz de mediar teoricamente a História, coincidindo com uma crítica emancipatória do poder. A formulação kurziana enfatiza o caráter positivo de uma anti-modernidade emancipatória – não irracional, não destrutiva – que supera as perspectivas de “filosofias burguesas”, as quais redefinem continuamente a modernização capitalista e alienam a atuação dos sujeitos em relação a seu mundo interior e exterior, subordinando-os à auto-regulação do mundo fetichizado.
Duas aspirações teórico-políticas são apresentadas:
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A compreensão histórica “antimoderna”, emancipatória, que rejeita a ideia de progresso inevitável e a glorificação ou romantização de quaisquer relações de fetiche pré-modernas.
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Uma crítica ao materialismo histórico, considerado insuficiente e superável, visto que se revelou mero apêndice da metafísica histórica iluminista.
Kurz mostra que formulações críticas sobre materialismo histórico e o sujeito no Iluminismo foram realizadas, de modo acabado, por T. Adorno e M. Horkheimer na “Dialética do Esclarecimento”. Contudo, ele considera essa crítica da metafísica subjetiva do Iluminismo incompleta. Adorno inverteu o otimismo iluminista em pessimismo histórico, expondo apenas a estrutura do valor presente e deixando vestígios irrecuperáveis de um sujeito emancipado do passado, bem como questões de um presente potencialmente destrutivo.
A “mercantilização” crescente do mundo é resultado do processo histórico de valorização do capital e da “metafísica do valor iluminista”, à qual o próprio marxismo esteve sujeito. Uma ruptura só é possível ao confrontar o fetiche moderno que move os “opostos polares”: a lógica identitária destrutiva do capitalismo que coisifica o pensamento e a ação, absorvendo o mundo, a natureza, a sociedade e todos os objetos à abstração do valor capitalista.
A CRÍTICA DO VALOR E DA DISSOCIAÇÃO COMO FORMA DE SUPERAÇÃO TOTAL DO CAPITALISMO
“O objetivo da crítica radical do valor é, portanto, uma sociedade para lá do ‘trabalho abstrato’, do valor, do mercado, do Estado e da dissociação entre os sexos. Naturalmente, isso levanta problemas enormes, pois há séculos os seres humanos têm sido ‘socializados dentro’ destas categorias e as internalizaram. Por isso, não existe um caminho direto para fora da ordem existente, mas há necessidade de um processo de mediação histórica. Mediação significa encontrar uma nova relação entre lutas imanentes por dinheiro, serviços estatais etc., resistência social contra a administração capitalista da crise, por um lado, e os objetivos da crítica categorial, por outro. Trata-se, de certa maneira, do antigo problema da relação entre ‘caminho e destino’, mas sob condições novas e com um modus de crítica inteiramente diferente, mais profundo.”
(Robert Kurz, entrevista a Sonia Montaño, 10/06/2006)
Para Kurz, “pós-moderno” é, na verdade, a crise do moderno – o colapso da modernização.
Durante a terceira revolução industrial, o indivíduo preso à relação de valor e dissociação tornou-se refém de um mundo iluminista que destituiu sua originalidade, reduzindo-o à ação irracional e destrutiva de suas próprias necessidades e possibilidades. Uma crítica do valor “além do marxismo” visa compreender o processo de desvalorização e abolição do valor do trabalho abstrato como forma básica do sistema produtor de mercadorias.
A história contemporânea é, efetivamente, a “história da relação de fetiche”, e não mais a “história da luta de classes”. O princípio motor da crítica radical é a ideia de que o capital deve ser criticado e superado não como categoria isolada, mas como forma sistêmica do valor e da dissociação. Assim, os marxismos baseados na emancipação do proletariado também são alvos, pois se reduziram à razão iluminista e à categoria do trabalho como modo positivo e ontológico.
O mundo entendido pela ontologização do valor tornou-se um mundo no qual categorias como Estado, política, democracia e nação são vistas “de dentro” do processo de socialização e internalização do capital. Logo, são categorias políticas que apenas refletem a socialização negativa do valor. “O homo politicus é apenas o alter ego do homo economicus”, sentencia Kurz.
A posição dialética de Kurz propõe um pensar prático-emancipatório voltado à luta pela exaustão e destruição final dos “contrários inimigos” produzidos pelas relações de valor e dissociação. Ao fim da modernização, a identidade destrutiva desses contrários será efetivamente superada.
A dimensão política da bandeira feminista é central na crítica radical de Kurz. A luta pela igualdade entre os sexos aborda uma das aporias do iluminismo. As relações de gênero são decisivas para compreender a reprodução da vida capitalista, visto que o sistema de polaridades imanentes se mantém estruturado por relações masculinas: política e economia, Estado e mercado, poder e dinheiro, planejamento e concorrência, trabalho e capital. Assim, teoria e prática se situam na relação de dissociação geral e sexual: masculinidade (dissociadora) e feminilidade (dissociada).
A sociedade inconsciente de si própria permanece imersa no conjunto de polaridades. A crítica de Kurz vai além das disputas eternas entre trabalho-capital ou mercado-Estado, mostrando que uma oposição política dual é apenas um maniqueísmo interno ao próprio capitalismo. Estado e mercado são polos da socialização capitalista, não opostos absolutos.
A leitura de Kurz indica que a “sociedade do trabalho” entra em processo de “economia das horas de trabalho”. A grande “máquina do mundo” é a força produtiva da tecnociência, gerada pelo próprio capitalismo. Nunca o controle social esteve tão assegurado pela autonomização do emprego científico e tecnológico, em detrimento da produção e responsabilidade individual ou empresarial. Isso cria potências substancialmente incompatíveis com as formas básicas de reprodução capitalista, constituindo um “engate” para novas lutas populares.
A crise do trabalho é consequência da crise do Estado e, portanto, da instância política como um todo. A política, até então vinculada ao Estado, perde força com a desestatização. As pessoas somente se insubordinariam mediante movimentos sociais de magnitude desvinculada da forma política estatal. Kurz enfatiza a “filosofia da conscientização”: a resistência é possível apenas via consciência, restaurando o contexto perdido e criticando os fenômenos apocalípticos do mundo atual.
Para superar a crise e a subordinação social ao valor, não há outro caminho: é preciso absorver a crítica social, por meio da “força de negação anti-valor” e de movimentos de conscientização, sem modelos revolucionários pré-definidos ou constituição utópica. O resultado seria a desfetichização: uma sociedade além do valor, do mercado, do Estado e da dissociação entre os sexos.
Robert Kurz, em “Tabula Rasa” (nov., 2003), afirma:
“A consciência social desprincipializada é a consciência, o saber e a sensibilidade do homo sapiens existente, mas sem o anel de ferro de uma relação de coação que o oprime. As instituições de uma sociedade desfetichizada, os ‘conselhos’, já não executam um princípio formal (a autogestão com base na produção de mercadorias seria uma contradição em si), mas negoceiam livremente sobre a diversidade qualitativa dos objetos de sua reprodução. A instância da forma organizada de estar em sociedade dos indivíduos, e com ela a síntese da reprodução, apresenta-se como consciência viva, aberta e inconcluída, com referência livre aos objetos; não como forma fechada e morta que pesa sobre a consciência como pesadelo. Este é o sentido radical de toda crítica do valor.”
[1] A melhor relação de artigos, ensaios e capítulos de livros de Robert Kurz que encontrei na Internet foi na página portuguesa: http://obeco.planetaclix.pt/robertkurz.htm (último acesso em: 21/06/2008).
[2] Para a construção de um texto mais ágil, fujo à regra acadêmica, abstendo-me de me alongar detalhadamente em referências e citações. Para uma relação bibliográfica do autor, ver a página de internet da nota acima.
[3] No livro intitulado “O Colapso da Modernização”, Robert Kurz analisa atentamente os destinos (terríveis e fadados ao fracasso) que tiveram as repúblicas socialistas, lideradas pelas ideias do marxismo “exotérico” da antiga URSS.
