O mundo cabalístico, segundo Borges

O MUNDO CABALÍSTICO, SEGUNGO BORGES

 

Por Ednei de Genaro

“Quero acrescentar duas observações: uma, sobre a natureza do Aleph ; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao círculo da minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes…”

J.L.Borges, no conto “O Aleph”

Borges, em certo momento, dedicou um texto muito específico para falar cuidadosamente de algo que o atraiu durante toda a sua vida, a saber, a forma cabalística de ver o mundo. O escritor escreveu o texto “A Cabala”, isto é, sobre o livro da mística esotérica do pensamento judaico. A obra do escritor argentino é recheada de inspirações da mística cabalística. Atento a algumas coisas interessantíssimas que ele nos fala.

O nome “Cabala” não pode ser confundido como uma simples denominação de um livro. Isto decorre da nossa dificuldade em distinguir a ideia de um “livro sagrado” de um “livro clássico”. Ora, temos a ideia natural de que um livro surge de uma ordem histórica. No entanto, precisamos de uma distinção etimológica.

A palavra “clássico”, nos fala Borges, vem de ‘classis’, de ‘fragata’, ‘esquadra’, algo representante de uma tradição e, portanto, não se confunde com o conceito oriental de “sagrado”. Por sua vez, a palavra “sagrado”, o ‘sacrum’, o que vem dos deuses, recupera uma ideia mística, não racional (porém cheia de inteligência), para entender que o livro sagrado tem as palavras, as letras, ou seja, seu conteúdo divino. O exemplo do Aleph, a primeira letra do alfabeto árabe, explicita totalmente isso.

O valor do sagrado é tão forte a ponto de se argumentar que um livro como o Corão ou Alcorão é considerado como ‘anterior à língua árabe’! É, pois, anterior a própria língua dos homens. E, portanto, não há um autor, nem vários autores. O Pentateuco dos cristãos (ou Torá, para os judeus) são livros sagrados sem qualquer autoridade subscrevendo.

Borges nos passa o valor do ensinamento do grego Pitágoras, pois ele nos disse que os livros ‘normais’ estão atados na língua. Enquanto tais, suas letras estão ‘mortas’ e cabe ao espírito torná-las vivas. Em um livro sagrado, no entanto, cabe o magnífico argumento místico: como se supõe que as letras são anteriores à fala dos homens, o livro só pode ser o instrumento, por excelência, de Deus (ou dos deuses). Aos homens, resta a atitude de ‘decifrar’ o texto de ordem absoluta (como fazem os cabalistas). O livro sagrado, por consequência, é tratado como um ser: um ser que não pensa, não obra e não existe! É um ser infinito e sem função definida… Borges é enfim sutil em evidenciar deduções filosóficas…

Outra nota surpreendente: o problema essencial da Cabala é a resolução da existência do mal. Assim como os gnósticos, os cabalistas pensam que “o universo é obra de uma divindade deficiente, de uma entidade cuja fracção de divindade tende a zero” (resultando em um Deus que não é um Deus, mas que clama por sua construção futura!).

Para os cabalistas, a lenda do Golem é ilustre.  Quando Deus criou o homem, o primeiro Golem, deixou no Pentateuco o seu nome a ser decifrado. Caso ocorra de alguém decifrar seu nome ou encontre as quatro fundamentais letras de Deus – o Tetragrama – e consiga pronunciá-la, seria capaz de também criar o Golem, o homem, e se fazer um Deus!

Ora, a conclusão dos cabalistas (e também dos gnósticos) é de que cada um de nós tem uma partícula de divindade. Cada um de nós, desse modo, não pode é fruto de um Deus prontamente todo-poderoso e perfeito, mas que pode satisfazer isso na dependência de nós mesmos!

“Tal es la enseñanza que nos deja la Cábala”, escreve Borges.