MICHEL SERRES – TIC’s & REVOLUÇÕES CULTURAIS E COGNITIVAS
A extensa obra do filósofo francês Michel Serres tem, sem dúvida, produzido um pensamento bastante original, refletindo sobre as relações “contratuais” de uma maneira não apenas circunscrita ao que denominamos “sociedade”. É um autor que expõe um sentido não antropocêntrico ao discurso, incluindo os universos da natureza e da técnica. Por esta via de sentido, seu pensamento explora as redes compostas de ligações humanas/não humanas: “A Terra, na verdade, nos fala em termos de forças, ligações e interações, o que basta para fazer um contrato. Cada um dos parceiros em simbiose deve, de direito, a vida ao outro, sob pena de morte”.
Serres interliga a ética e a ecologia, de modo que elas possam ter referências comuns para pensar a condição humana diante das transformações tecnológicas. Especialmente em seus últimos escritos, o pensador expressa claramente alguns pontos fundamentais que norteiam sua perspectiva sobre a revolução informacional. A fim de evidenciar isso, procuro dar um conciso comentário à sua interessante conferência “Les nouvelles technologies: révolution culturelle et cognitive’’ (2007).
Repensar os parâmetros epistemológicos em meio à tecnociência é, hoje, uma tarefa árdua. Para Serres, a análise das tecnologias da comunicação e da informação pode nos revelar novos caminhos de compreensão. Pensando assim, ele nos mostra como o corpo humano pode ser visto como dispondo de uma função quádrupla, a saber: 1) a de acúmulo (stock); 2) de tratamento (traite); 3) de emissor (émet); e 4) de receptor (reçoit) de informações. Em diferentes épocas, a informação se insere na individuação do humano de modo e intensidade diferentes, abrindo, portanto, características e problemas distintos para o ser humano.
A partir de sua antropotécnica, Serres afirma que, com a invenção do computador (ordinateur), a produção de informação se transformou, por excelência, na “ferramenta universal” que exacerba mudanças nas dimensões temporal, espacial e individual do humano. De tal modo, uma nova etapa da humanidade seria expressa, e ele passa a explicar o porquê a partir de três momentos-chave.
1° momento (escrita): no “estado oral da humanidade”, pensa Serres, o cérebro e o corpo eram os “suportes” da memória/informação, de modo que o estoque, o tratamento e a emissão correspondiam diretamente ao corpo, à memória e à voz, ou seja, correspondiam às relações comunicacionais diretas entre os seres humanos. No entanto, no período posterior, no qual aparece a escrita, ocorreu a primeira grande mudança do “suporte”, quebrando a relação direta entre suporte e memória. Essa “quebra” fez com que, no pensamento grego, a partir de Platão, comentando Sócrates no “Fedro”, houvesse o temor de “perda da memória” no momento de crise da oralidade e ascensão da escrita. Contudo, para o autor, essa mudança se refletiu, na verdade, em uma nova potencialidade humana, correspondendo a um período de muitas invenções: moeda, geometria, arquitetura das cidades etc.
2° momento (imprensa): a invenção da imprensa correspondeu à etapa de intensa reprodução e circulação de livros, tratados, contratos, bulas, recibos, copiados o quanto fosse necessário, sendo assim capaz de provocar uma transformação radical nos modos de vida econômico, político, jurídico e científico. Desse modo, o suporte “externo” da memória/informação “sai” dos pergaminhos das raras bibliotecas para se expandir por todos os ramos da vida pública. Serres nota, como marcos históricos, o florescimento do comércio de Veneza e a expansão da ciência experimental.
3° momento (algoritmo): corresponde à época atual, em que o computador predomina. Ocorre um novo status de “quebra” da relação entre suporte e memória. Aqui, com a informação de caráter digital ou algorítmico, dá-se uma intensa mundialização da economia, política e cultura. A moeda volátil, as novas relações pedagógicas, os novos relacionamentos afetivos e tantas outras coisas são forçados a passar por profundas transformações. Possibilidades e problemas aparecem. Neste terceiro momento, portanto, as relações em rede (virtuais) são centrais: “e quem precisará (necessariamente) do espaço físico para se comunicar com outras pessoas?” Ao se perguntar, Serres pensa, obviamente, no e-mail, celular, cinema, rádio etc., para afirmar a tese de que, se o espaço físico agora é “revogável”, de modo a conformar novas relações humanas, fatalmente o direito e a política terão uma porção de coisas a repensar. Ora, estas duas instâncias da vida nunca chegaram a um estado de tão forte definição “fora” do espaço físico.
Embarcamos, pois, naquilo sobre o que Serres procura refletir com mais ênfase. No atual estado de “quebra” da relação entre suporte e memória, de nova relação corpo e cérebro, a questão vem a ser: de que modo as novas tecnologias irão repercutir em nossa maneira de viver e, sobretudo, em nossa maneira de conhecer?
Obviamente, aqui seria preciso, por exemplo, iniciar uma reflexão estabelecendo os avanços das pesquisas que procuram pensar o funcionamento da condição humana a partir não somente da faculdade da memória, mas também de outros dois fatores: a faculdade da imaginação e a da razão. A reflexão filosófica a respeito ajudaria a compreender tais faculdades, que a ciência cognitivista começa somente hoje a estudar melhor. A preocupação de Serres é, portanto, pensar a noção segundo a qual, na medida em que se avança nas tecnologias cognitivas, o ser humano vai “perdendo” funções, pois as externaliza para as tecnologias.
Mas se engana quem pensa que, para este filósofo, o sentido de “perda” seja puramente negativo. Tal sentido é caracterizado a partir de uma ordem humana nova, mais complexa, “inventiva” e “indefinida”. « Voilà la différence qui peut exister entre perdre et gagner : perdre dans le domaine du reconnaissable pour gagner dans l’ordre inventif, indéfini, c’est-à-dire dans l’ordre humain. Si j’ai défini « perdre » par rapport à « gagner », le verbe « perdre » prend un tout autre sens dans la langue française. / L’homme est un animal dont le corps perd ». (“Eis a diferença que pode existir entre perder e ganhar: perder no domínio do reconhecível para ganhar na ordem inventiva, indefinida, ou seja, na ordem humana. Se eu defino ‘perder’ em relação a ‘ganhar’, o verbo ‘perder’ assume um sentido completamente outro na língua francesa. / O homem é um animal cujo corpo perde.”)
Michel Serres aparece como uma referência importante nos estudos das tecnologias da informação e comunicação. Podemos citar, afinal, um trecho de vídeo em que o filósofo aborda essa questão bastante delicada da “perda” da memória/corpo, estabelecendo uma defesa de sua perspectiva antropotécnica otimista.
