DEVIR E HYPOMNEMATA DIGITAL
« Il n’y a pas de pensée hors de ses supports », Bernard Stiegler
Sumariamente, para Stiegler, a relação entre homem e técnica exige uma (re)formulação que revele a constituição do humano e, derradeiramente, demarque a condição psíquica e social deste no mundo. Ora, a questão da memória técnica estaria implicada na constituição e na demarcação do devir humano.
A técnica, escreveu Foucault em A escrita de si [1], é melhor compreendida pelo sentido grego da palavra hypomnemata, isto é, como dispositivos ou suportes da memória e modalidade de constituição de si (STIEGLER, 2007).
“Não há interioridade que preceda a exterioridade” (STIEGLER, 2009). Essa sentença, originalmente cunhada pelo antropólogo Leroi-Gourhan, evidencia um discurso no qual os movimentos de criação e história das técnicas são simultâneos aos de criação e história do homem. Ambos sustentam a posição de sujeito e objeto na constituição do humano e na demarcação psíquica e social do mundo (STIEGLER, 1998). Na formulação stiegleriana, “a relação que vincula o ‘quem’ [técnica] e o ‘o quê’ [homem] é a invenção” (idem, p. 134).
Para o filósofo, a qualidade da “memória viva” (anamnèse) consiste na capacidade de projetar-se para fora de si mesma (hypomnèse). A “memória viva” humana constitui-se pela memória genética (celular) e pela epigenética (somática e nervosa): ambas são finitas e desaparecem com a morte do ser. No entanto, a memória epifilogenética (técnica) é capaz de atuar sobre a finitude das duas primeiras, ao transpassá-las, alimentá-las e gerar novos atributos epocais da vida humana. Em uma formulação lapidar: a técnica seria aquilo que prolonga a vida por outros meios que não a própria vida.
O suporte da memória — seja ele escrito, digital ou oral — é a “retenção terciária”, que retoma o discurso fenomenológico husserliano acerca das retenções da consciência. Para Stiegler, se quisermos entender o processo de gramatização — o “alfabeto” que regula a descrição, formulação e discrição do gesto e da voz humanos —, é fundamental apreendermos os ajustamentos e conflitos entre o meio exterior artificial das retenções terciárias e o meio interior da vida psíquica e coletiva (idem, p. 57). Tal perspectiva admite, concomitantemente, uma preocupação com as individuações técnica, psíquica e coletiva.
As conclusões de Stiegler têm aqui grande relevância, uma vez que o suporte técnico — entendido como “exteriorização da memória” — permite estudar a espacialização da experiência e captar os processos cognitivos e as práticas sociais recorrentes com a memória digital. Como afirma Stiegler (1998, p. 13):
“Hoje, isto é, no momento da industrialização da memória, que chamamos de mídia (ao mesmo tempo analógica e digital), o meio associado informacional torna-se o espaço público mundial, por meio dos fenômenos da velocidade de captação, de transmissão, de cálculo e de processamento (de sinais analógicos ou numéricos); e afeta de maneira radical a capacidade de antecipação humana em si mesma”.
Essa “capacidade de antecipação” refere-se à competência própria do indivíduo para realizar a constituição de si e de sua “maioridade”, como consciência reflexiva e crítica. Na visão de Stiegler (2004), a modernidade até o século XIX — marcada pela Bildung alemã — construiu toda uma rede de dispositivos que instituíram um modo próprio de gramatização da vida psíquica e coletiva. No século XX, contudo, houve uma transformação aguda do modelo de gramatização, sobretudo pelo pleno desenvolvimento dos objetos temporais industriais (fonógrafo, cinematógrafo, fotograma, videograma etc.) (STIEGLER, 2004).
A formação da consciência humana é indissociável da relação entre a temporalidade humana e a temporalidade técnica [2]. Para Stiegler, o sentido geral da palavra cinema — como “montagem do tempo” — constitui uma forma de compreender o funcionamento da consciência. Desde o século XX, com o desenvolvimento dos objetos temporais de massa — televisão, rádio, cinema etc. —, emergiu uma fenomenologia de “sincronização das consciências”. Para o autor, o século XX teria sido o momento de estabelecimento da “baisse de la valeur esprit” (P. Valéry). Essa épochè tecnológica em curso alterou, fragmentou e dissociou as vidas psíquicas e coletivas. As individuações técnicas, em vertiginosa velocidade de inovações e modas, investiram e transformaram as individuações psíquicas e coletivas. O resultado seria, hoje, a necessidade da criação de uma “política industrial das tecnologias do espírito” (STIEGLER, 2010).
Os fenômenos da informática hiperindustrial, desde o final do século XX e neste início do século XXI, instauraram uma nova vigência paradigmática. Assim, sobressai uma constatação: com a memória digital, o paradigma anterior da memória escrita entra em declínio e, desse modo, os dispositivos digitais no capitalismo contemporâneo — formados simultaneamente por redes corporativas, colaborativas, lineares e múltiplas — podem, ao mesmo tempo, produzir efeitos positivos e negativos na individuação psíquica e coletiva.
Essa ambivalência é própria dos dispositivos contemporâneos. Para Stiegler, as formas de hypomnemata analógicas e digitais não deixam de renovar, no contexto capitalista, antigas questões da filosofia política. Há, enfim, uma nova dimensão (hiper)industrial e um estado próprio de gramatização (STIEGLER, 2009, p. 39). Para compreender essa ambivalência, o filósofo resgata o sentido platônico da palavra pharmakon, que designa tanto remédio quanto veneno [3]. Stiegler explica que toda tecnologia deve ser sempre analisada em chave farmacológica, isto é, dentro de uma ambivalência originária (STIEGLER, 2007). Ambivalência que também se faz presente nas tecnologias da informação e comunicação, as quais vêm modificando a estrutura de nossa memória.
Para o filósofo francês, enfim, a “questão da técnica”, em sua primeira significação, não é propriamente “como deveríamos agir?” (questão central para H. Arendt) ou “como devemos viver?” (M. Heidegger), mas antes indagar o devir: “o que estamos a nos tornar?” — e, por conseguinte, remeter ao bem agir e viver [5].
Ora, uma questão final poderia ser formulada: o que a gramatização atual, da memória digital, nos força a ser?
[1] Cf. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
[2] Cf. GENARO, Ednei. O tempo da técnica. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) — UFSC, 2010.
[3] Cf. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 2. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. Obra de influência fundamental, nesse aspecto.
[4] Nootechniques: nous (em grego), “intelecto” ou “pensamento”. Para Stiegler, o meio nooético é capaz de abrir o indivíduo ao espaço público e, assim, possibilitar um meio simbólico associado em favor da coletividade.
[5] A rica articulação conceitual de Stiegler mostra-se bastante motivadora para o estudo empírico e crítico da tecnicidade contemporânea. Se o tema fosse abordado a partir dos avanços propostos por autores como P. Lévy ou Paul Virilio, as questões aqui tratadas talvez se mostrassem menos politizadas ou, possivelmente, mais peremptórias.
