O DESCOMPASSO ENTRE O TEMPO DO MUNDO E O TEMPO DA VIDA

O DESCOMPASSO ENTRE O TEMPO DO MUNDO E O TEMPO DA VIDA

Relógio

Aforismo 174 – Não viver às pressas. “Se sabe organizar as coisas, você saberá desfrutá-las. A muitos sobra tempo de vida já tendo acabado a felicidade. Desperdiçam as alegrias, por não saboreá-las e depois querem voltar atrás. O tempo lhes passa devagar demais, e, postilhões da vida, apressam-na com seu próprio temperamento precipitado. Querem devorar num dia aquilo que mal conseguiram digerir numa vida. Antecipam a felicidade, gastam por conta do porvir e, uma vez que estão sempre com pressa, logo acabam com tudo. Até no desejo de conhecimento é preciso moderação, de modo que as coisas não sejam mal aprendidas. Têm-se mais dias do que alegrias. Seja rápido para agir, lento para apreciar. Os feitos são bons, e a satisfação é pior, quando acabados”.  – Baltazar, Gracián ([1647] 2002).

 INTRODUÇÃO

 A civilização contemporânea vive a insipiência de não organizar o tempo do mundo, isto é, de experimentar a sensação de se perder na cultura material que ela própria criou. Por consequência, é comum encontrarmos em diversas mídias – artigos de jornais, revistas, livros de autoajuda, vídeos na internet, folhetos divulgando cursos etc. – discursos que diagnosticam uma “patologia do tempo contemporâneo”, expondo o quanto o cidadão moderno tem uma crescente dificuldade em pensar e arranjar seu tempo íntimo e social. Experimentam-se hoje os estresses e outras tensões que afligem o cotidiano no meio urbano (mas não mais só nele). Neste âmbito, o indivíduo se vê dilacerado pelas múltiplas exigências e pelo excesso de informações, que aparecem como falsas prioridades, contraditórias ao cuidado de si, e, derradeiramente, desencadeando inúmeras espetacularizações, ideologizações e amnésias sociais.

De tal modo, a figura sintomática do indivíduo ansioso, inconsciente e apressado é premente. A maneira como isso se expressa nas mídias e literaturas diversas não deixa de convocar o cientista social a refletir sobre os variados porquês de tal problema sociológico – e, como veremos, profundamente filosófico e político, também, levando-nos a arrazoar acerca do caráter da modernidade técnica edificada com a volição capitalista.

ONIPRESENÇA E CEGUEIRA

Em um conto intitulado O apressado, publicado na revista LogosofiaFundação Logosófica em Prol da Superação Humana (1995, p. 11), a descrição do homem perdido em seus afazeres era a seguinte:

Andava pelas ruas como quem cumpre urgentes diligências, e, cada vez que encaminhava um assunto qualquer, sempre se referia à escassez de tempo, protestando com ira quando alguém demorava um minuto para atendê-lo / Dava a impressão de sempre estar ocupado com assuntos importantes, embora nada lhe impusesse urgência para ter tais pressas; ao contrário, muitas vezes era visto perdendo lamentavelmente o tempo em coisas pueris […] / Alguém, certo dia, fez com que ele notasse sua lamentável falha, e com tanta clareza, tino e acerto, que, ante a visão mental do desafortunado personagem, rodou integralmente o filme monótono de sua vida, fugazmente vivida, penosamente desaproveitada, na qual sobressaíam projetos malogrados, lacunas sem preencher, anelos e esperanças sem satisfazer, ansiedade indefinida por coisas que jamais puderam ser concretizadas […].

Tal descrição literária de indivíduo perdido em “coisas pueris”, vivendo “fugazmente”, é desdobrada, em outros meios de comunicação, como causa de doenças, síndromes ou transtornos individuais e sociais. Em 2008, a revista Superinteressante (Hueck, 2008, p. 65-75) dedicou uma matéria de capa para tentar explicar a “ansiedade social” que rege a vida urbana. Sua chamada era enfática: “Escolhas demais, informações demais, expectativas demais e tempo de menos. Entenda o que está por trás da maior epidemia moderna: a sensação de que não vamos dar conta de tudo”. Dois dados saltam aos olhos ao leitor desta matéria. O primeiro sobre a relevância do tema para o mundo letrado e científico: “Há mais de 300 mil livros e 100 mil artigos médicos sobre o assunto, e o número aumenta todos os dias”. O segundo sobre a quantidade de informação a que se tem hoje acesso, dando como exemplo emblemático um jornal dominical: “Uma edição dominical do The New York Times tem cerca de 12 milhões de palavras e contém mais informações do que um cidadão do século 17 recebia durante toda a vida”. Uma publicação anterior da mesma revista (Gwercman, 2005, p. 52-55), com matéria intitulada Cada vez mais acelerado, discursou acerca de um comportamento urbano “epidêmico”, lembrando que:

[…] existe um consenso entre os editores do mundo todo de que os leitores têm cada vez menos tempo – e paciência – para ler. Por isso, a solução é fazer revistas, jornais e livros cada vez mais acelerados, diz o jornalista canadense Carl Honoré. Para ele, a proliferação de leitura rápida é um dos sintomas de uma epidemia que assola todas as sociedades industrializadas: o desejo de viver em velocidade.

A ansiedade com o ritmo da vida alcança também, evidentemente, o discurso midiático do universo empresarial capitalista. Tanto que a revista Você S.A. publicou um encarte especial com o livreto Administre seu tempo, de autoria de Iain Maitlain (2000). No programa para isso, três regras gerais eram explanadas: identificar os principais perigos do seu desempenho; reprogramar antigos hábitos; e aumentar o seu rendimento. A partir disso, o livreto prescreve variadas economias, regras de condutas, análises de problemas-atitudes, determinações de agendas, listas e separações de prioridades. São prescrições no sentido de adaptação e o adestramento dos indivíduos aos novos parâmetros de competividade neoliberal, de modo que os contextos e determinações vêm, desde o início do livreto, como naturais, isto é, como fatos consumados.

O tempo é algo limitado, transitório e efêmero – e por isso mesmo, difícil de controlar. De modo quase inevitável, você irá perceber que atualmente dispõe de bem pouco tempo, contudo, (só) amanhã, ele será suficiente. No dia seguinte é que perceberemos que o tempo parece tão escasso quanto no dia anterior. Se você puder identificar e eliminar as atividades que geram desperdício de tempo (ou, pelo menos, reduzi-las consideravelmente), vai encontrar um modo de controlar o seu próprio tempo (Maitlain, 2000, p. 7).

Tornou-se do mesmo modo corriqueiro encontrar cartazes em vias urbanas e em meios eletrônicos divulgando cursos de “gestão do tempo” para o público em geral, propondo ganhos extraordinários de produtividade e qualidade de vida ao repensar os nossos “gastos de energia” com a agenda diária. No cartaz promocional da escola de yoga Swàsthya Yôga, de Florianópolis, encontrávamos a seguinte chamada:

Inscreva-se e aprenda a gerenciar um dos recursos mais importantes da sua vida. […]. 90% das pessoas abandonam a maioria dos seus projetos, por falta de planejamento e gerenciamento do tempo. No Curso de Gestão do Tempo você aprende a administrar sua agenda diária, exercendo poder efetivo e controle sobre suas ações e compromissos. Faça o Curso e ganhe também 1 mês de Yôga. Além de, claro, muito mais tempo para praticar as aulas” (Swàsthya Yôga, 2008).

Pois bem. O leitor já percebe que a lista de matérias nas mídias encontradas sobre o assunto estende-se para os mais diversos públicos-alvo, notabilizando assim o quão sintomático é o tema-problema. Por suas dramaticidades, citemos apenas mais duas passagens de dois artigos, o primeiro publicado em uma revista de circulação mensal (Tribuna), o segundo em um jornal diário (O Estado de S. Paulo).

Não parece que ultimamente o tempo anda mais rápido do que o normal? Olha só. Outro dia acabou o ano. Lembra? Foi ontem mesmo! […] Tava na cara que esse negócio da Terra girar em torno do Sol não ia dar certo, agora ela está aí, girando, girando e girando descontrolada! (…) Tenho muito o que fazer, uma lista enorme de prioridades. Nem sei onde começo […] (Pigatto, 2009).

É realmente interessante que a pressa seja a tônica da vida, justamente no momento em que a ciência propicia um aumento expressivo da expectativa de vida. Afinal, se por um lado a prioridade zero é atingir os objetivos rapidamente, por outro a longevidade propicia anos adicionais de vida. A pergunta que não quer calar é o que planejamos fazer com o hiato de tempo entre as conquistas realizadas e a morte? Iniciar o ciclo novamente, de maneira insaciável, sem se permitir desfrutá-lo? Pressa? Pressa, para quê? Pressa, de que? (Toledo, 2007).

A despeito das variadas formas com as quais os diferentes veículos de mídia abordam o tema da “vida acelerada”, as causas da vida urbana desordenada e apressada, e o questionamento apropriado dela, poucas vezes são desenroladas. Uma matéria da revista mensal Filosofia, Ciência & Vida – de divulgação de assuntos científicos e filosóficos –, foi o único caso de exceção que encontramos.

[…] o correr das horas, que nos oprime, é resultado de uma forma de relação com o tempo que construímos na modernidade (…). Sabemos, sim, que as horas parecem nos faltar e que isso nos oprime. Mas não sabemos é que essa relação com o tempo, que nos traz a sensação de opressão diante da impossibilidade de dar conta de tudo, é própria de nossa época. Isso mesmo, é só uma questão de olhar. Ou melhor, de valores. Isto é, nós que inventamos a forma como nos relacionamos com o tempo hoje. Mas, dá para mudar esse jogo: a solução passa por reformular nossos conceitos sobre o que é útil e reconhecer nossa finitude. (Pereira, 2007, p. 15).

Apesar de coerente, a resposta é ainda genérica (e óbvia), limitando-se a identificar como a causa a “valores” que devem ser modificados. Uma resposta atemporal e antropomórfica, também, pois nada diz sobre os históricos arranjos sociotécnicos e seus dispositivos tecnológicos atuais que expressam e agenciam a nova realidade temporal que solapa o ritmo da vida das pessoas. Assim, os esclarecimentos sobre o tema “vidas aceleradas” raramente se dão a partir de reflexões acerca da cultura material em meio ao modo de produção capitalista. Devemos, pois, perguntar-nos: por que vivemos uma crise na organização do tempo da vida? E o que a técnica tem a ver com isso? Conforme discorre Brüseke (2002, p. 140), a partir da leitura do filósofo social Hans Blumenberg:

[…] a passagem da técnica, de um nível que ajudava a se situar o homem melhor no seu mundo e no seu tempo, para um nível que indica a saída do homem do seu mundo e do seu tempo, foi lenta. A tesoura do tempo da vida e do tempo do mundo abriu-se sem aviso cada vez mais. Hoje dispomos de uma técnica que tende a ultrapassar não somente o horizonte, mas também todos os limites humanos. Ela ultrapassa esses limites como se fosse o horizonte geográfico.

Uma das marcas próprias da sociedade contemporânea é o desacordo entre o tempo do mundo (Weltzeit) e tempo da vida (Lebenszeit), sendo tais termos importantes para distinguir e especificar os horizontes da técnica e do ser humano no mundo.

Tempo da vida expressa os nossos “tempos próprios”, ou seja, a temporalidade que individualiza singulares sentidos biológicos, psíquicos e sociais à existência humana no mundo. Deste modo, podemos compreender o tempo da vida dentro de um ritmo e ciclo de existência próprios à individuação humana – nascer, crescer, amadurecer, morrer; meditar, comer, trabalhar, conversar, descansar – que demandam contínuos cuidados e equilíbrios. Na ordem cotidiana, entremeando e agenciando os ritmos da vida, encontram-se os ritmos dos objetos e sistemas técnicos, que compõem o tempo do mundo. Tal entremear e agenciar dos objetos e sistemas técnicos revelam-se, hoje, problemáticos, uma vez que a ordem do tempo do mundo, a saber, as ordenações ditadas pelo nível macro dos arranjos sociotécnicos e micro dos dispositivos pessoais cotidianos, geram consequentes explorações sociais por via de servidões maquínicas, perpetrando diversas determinações de hábitos e ritmos. Ou seja, é intrinsecamente por via dos arranjos e dispositivos tecnológicos diversos que as ideologias e explorações sociais se estabelecem hoje não somente no “chão da fábrica”, desordenando, desviando ou mesmo solapando os cuidados e equilíbrios que os indivíduos deveriam ter (e as sociedades deveriam ensinar a ter) com o tempo da vida.

Assim, é constantemente mal observado que no mundo moderno a técnica patenteia sobremaneira uma nova experiência temporal, ditando um ritmo da vida às pessoas (como se a situação de onipresença gerasse uma cegueira generalizada a respeito), sendo isto apropriado às formas mais eficientes de administração das subjetividades e de dominação social.

Eis, portanto, o que cremos ser o ponto de partida de nosso problema sociológico (e, tão logo, filosófico). Tentemos agora expor como (alguns poucos) autores da teoria social foram se dando conta dele.

TEORIA SOCIAL E CULTURA MATERIAL

Uma característica peculiar de nossa época é a convivência com o “novo”, sendo a “era moderna” aquela da constante instabilidade gerada pelas variadas e sucessivas dimensões de progresso. Habitamos um mundo em rupturas permanentes (disrupção, dizem). A partir do século XX, especialmente, a aglutinação dos campos da ciência (epistéme) e da técnica (tékhne) – a tecnociência –, além de aumentar espantosamente a produção de materialidades tecnológicas, acarretou contínuas alterações na capacidade de autonomia da ação humana, produzindo novas experiências espaciais e temporais, intermediada com as tecnologias, que modificaram as formas humanas de relacionamento com o mundo e com si mesmo.

Foi Simmel (1979), no início do século XX, um dos pioneiros a dar ênfase às consequências mais sutis do aumento da cultura objetiva na administração e consciência do indivíduo urbano[1]; em outras palavras, de domínio da cultura material no processamento, esmagamento ou regressão da cultura subjetiva das pessoas, sendo a metrópole, por excelência, o lócus de intensificação dos estímulos e de racionalização da vida, lugar em que ela passaria a exigir mais ‘razão do que coração’. Simmel argumentava, pois, que a relação de paralisia da cultura subjetiva e hipertrofia da cultura objetiva constituiria a “tragédia da cultura moderna”. Para ele, o ideal de cultura – a realização do processo dela própria enquanto cultivada a partir dos indivíduos – fora desvirtuado.

O indivíduo é reduzido a uma quantidade negligenciável, talvez menos em sua consciência do que em sua prática e na totalidade de seus obscuros estados emocionais derivados de sua prática. O indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-lo de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva. Não é preciso mais que apontar que a metrópole é o cenário dessa cultura que extravasa de toda vida pessoal. (Simmel, 1979, p. 26).

Rüdiger (2003, p. 20), analisando a amplitude dos questionamentos de Simmel sobre a condição humana, salienta que com Simmel é pela primeira vez claramente esboçado o problema do avanço do “[…] processo de racionalização tecnológica da existência, cujo foco não é mais a economia, a política ou mesmo a produção cultural, mas, mais diretamente, o próprio modo de ser humano”, assinalando, por fim, um diagnóstico importante sobre as alterações nas percepções espacial e temporal do ser humano – agora permeadas pelos atributos transitórios, mutatórios, ligeiros, descontínuos, caóticos e fragmentários.

A cultura material, ao alterar as experiências individual e coletiva, altera, precisamente, o conjunto de disposições e cognições humanas – instintos, memórias/esquecimentos, consciências, hábitos etc. As mudanças nas percepções espacial e temporal geram outras formas de experiência no mundo e trato com a vida (Domingues, 1996). Em meio a uma cultura do excesso – de informação, de consumo, de afazeres, de lazeres, de capacitações, de necessidades de conquistas e mutações – o efeito incipiente nas pessoas é de não se sentirem “contemporâneas” de si mesmas, “perdidas”, pois continuamente à deriva, incapacitadas de conciliar, contemplar, absorver o tempo da vida e o tempo do mundo.

As ciências sociais disseminaram as noções de “desordem temporal” e “aceleração da história” a partir da percepção dos processos de globalização. No livro Mundialização e cultura, Renato Ortiz (1998) nos mostra como o período histórico anterior – a era mecânica –, já ficou no passado e deu lugar ao imperativo de mundo muito mais efêmero. Na era mecânica, um desenvolvimento tecnológico em particular poderia ser visto como paradigmático para a compreensão dos processos que levaram a relações humanas cada vez mais rápidas e preocupadas: o trem. “O trem revoluciona a concepção de espaço e de tempo. Por um artifício de aceleração, ele ‘devora’ o espaço. O vapor libera o esforço físico do trabalhado braçal, distanciando o homem do ritmo da natureza” (Idem, p. 48)[2]. A “aceleração da história”, concluirá Ortiz, tem a ver com o aumento do descompasso das pessoas com a “ordem das coisas”.

No mundo moderno o tempo é uma função da inter-relação de um conjunto de atividades, entre elas: morar, vestir, fazer compras, trabalhar, passear, etc. Adaptar-se ou não a seu ritmo passa a ser uma questão fundamental. ‘Perder tempo’ significa estar em descompasso com a ordem das coisas (Idem, p. 83).

A tecnologização da vida, ou de tecnomorfização da existência humana, é aproveitada enquanto construção ideológica do tempo. Sobre isso, Jean Chesneaux (1996a) observa que a instantaneidade dos acontecimentos históricos no moderno transformou-se, na verdade, em um imperativo moral na cultura ocidental. “A urgência transforma-se em ideologia”, escreve, tão logo que “o tempo pode ultrapassar a si mesmo e confirmar seu domínio sobre o espaço, é o critério superior para os utensílios e para as pessoas, é o sinal do poder social ao ponto de Paul Virilio poder falar de ‘dromocracia’” (Idem, p. 24).

O tempo da modernidade se contrai no imediato, impõe à nossa vida cotidiana as formas diversas do instante. O ‘fastfood’ é preparado tão rápido quanto consumido, desprezando a arte tradicional dos cozidos gradualmente na duração, a diferente maturação dos gostos e dos sabores, a combinação dos ingredientes que precisam de tempo para se harmonizar progressivamente. Os relógios ‘digitais’ não são capazes de indicar o tempo como duração, mas somente o instante pontual, por isso efêmero, enquanto que o movimento dos ponteiros sobre um mostrador tradicional inscrevia o tempo no espaço e tornava perceptível sua progressão; cada momento se definia pela relação com o anterior e o posterior, um passado e um futuro (Idem, p. 23).

Jean Chesneaux e Renato Ortiz estabelecem, pois, a noção de que quanto mais envolvidos na ‘ordem das coisas’, mais determinados (cegos temporalmente e perdidos no espaço) ficamos[3]. Cabe lembrar aqui o artigo de Ruiz (2000), Universal Time’: a estandardização horária num mundo globalizado, que acrescenta a respeito do caráter de aceleração temporal que estaríamos vivendo. Para ele, estamos em meio a um problema de sincronização que ‘esvazia’ o tempo dos indivíduos e institui o ‘tempo oficial’, o ‘Universal Time’, coordenado principalmente pelos mercados financeiros e legitimado pelos Estados-Nação. Com a informatização da sociedade contemporânea, logrou-se um crescente fenômeno de sincronização de práticas globais e, ao mesmo tempo, uma desincronização das práticas locais, que vivem a falência constante de suas ordens tradicionais.

A contribuição de Foucault (2006) para a teoria social complementaria, por fim, a nossa problematização teórica sobre a cultura material. Para ele, o caráter das tecnologias pode ser dividido em quatro tipos, sendo que os três primeiros – as tecnologias de poder (aquelas que determinam a conduta dos indivíduos), as tecnologias de produção (que transformam, produzem, manipulam) e as tecnologias de sistemas de sinais (que transmitem os signos, sentidos, significações) – passaram, na conjuntura da modernidade, a sucumbir a tecnologia do governo de si, isto é, o quarto tipo de tecnologia, precisamente aquele que oferece condições aos indivíduos efetivar sua maturidade e estados de sabedoria (saber-viver e saber-fazer), ética e felicidade.

DESCOMPASSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

A tese aqui levantada – a cultura material confere uma temporalidade própria à modernidade e expressa com toda força o descompasso entre o tempo da vida e o tempo do mundo – evidencia um problema muito elementar, cheio de intrincadas consequências. Preliminarmente, a situação de sujeição às constantes e fragmentadas solicitações dos arranjos sociotécnicos e objetos desviam e desordenam as pessoas do cuidado que deveriam ter com o tempo da vida. Por conseguinte, o “aperfeiçoamento” do humano torna-se pernicioso, pois a cultura tecnológica substitui, essencialmente, o ritmo natural por um artificial, descompassado e ideológico da vida.

À medida que o ritmo da vida moderna continua a acelerar, passamos a nos sentir cada vez mais fora de contato com os ritmos biológicos do planeta, incapazes de experimentar uma conexão próxima com o ambiente natural. O mundo do tempo humano não está mais ligado às marés que vêm e vão, ao nascer e ao pôr do sol e às mudanças das estações. Em vez disso, a humanidade criou um ambiente de tempo artificial pontuado por dispositivos mecânicos e impulsos eletrônicos: um projeto de tempo que é quantitativo, acelerado, eficiente e previsível (Rifkin, 1987 apud Adam, 1990, p. 104)[4].

Os sistemas maquínicos diversos e, especialmente, os aparelhos técnicos de informação e comunicação (a televisão, o cinema, o rádio, o computador etc.) como veículos ideológicos de “industrialização das realidades temporais” são explorados por importantes autores franceses contemporâneos – Paul Virilio, Baudrillard e Bernard Stiegler, por exemplo –, estabelecendo questões difíceis, mas cruciais. Vivemos em um mundo de temporalidade industrializada que busca a homogeneização neurótica, empobrecedora e limitada da vida? O universo cotidiano restringe a heterogeneidade reflexiva e criativa da vida? Uma vez que a técnica age hoje por sistema de objetos próprios, seguindo uma tendência à autonomização, o ser humano tenderia a uma “miséria simbólica”? Como podemos entender o fim da cultura tradicional e a ascensão da cultura tecnológica?

Essas questões nos fazem refletir, sobretudo, como é realmente problemático conquistar o domínio de si, da realidade e convívio social frente uma crise de organizar do tempo da vida[5]. Ora, os indivíduos têm necessidade de um devir aberto, isto é, a possibilidade de construção de sua própria história, arrazoando projetos de edificação de suas identidades. A construção do indivíduo (individuação) exige uma consciência do tempo para habitar e agir no mundo. Em suma, ao analisarmos profundamente o atual capitalismo, com toda a sua ilusão de liberdade e multiculturalismo, teríamos, na verdade, a manufaturação de gestos rigidamente funcionalizados e homogêneos, em diferentes facetas.

URDIDURA FILOSÓFICA

A discussão sobre a tecnologia traz, portanto, um campo fértil para discutir a nossa ética e cultura política, de modo que interrogações politizadas como às do personagem Matias Pascal, no livro O Finado Matias Pascal, de Pirandello (1970, p. 151), no início do século XX, seguem aflitivas:

– Oh, por que os homens – perguntava a mim mesmo, ansiosamente – se esforçam tanto por tornar cada vez mais complicado o funcionamento das suas vidas? Por que todo este aturdimento de máquinas? E que fará o homem quando as máquinas fizerem tudo? Perceberá então que o assim chamado progresso nada tem a ver com a felicidade? Diante de tôdas as invenções com que a ciência que honestamente enriquecer a humanidade (e a empobrece, pois custam tão caro), que alegria experimentamos, mesmo se as admiramos?’ (…) E, no entanto, a ciência tem a ilusão de tornar mais fácil e mais cômoda a existência! Mesmo admitindo que a torne realmente mais fácil, com tôdas as suas máquinas tão difíceis e complicadas, pergunto: – Para quem está condenado a uma luta vã, existe pior colaboração do que a tornar fácil e quase mecânica?

Enfrentamos, pois, o problema da crise de organização do tempo da vida a partir do fenômeno técnico. A construção de políticas tecnológicas, hoje cada vez mais concebidas e implementadas pelas grandes empresas, a partir de seus vieses de inovação e disrupção nos mercados –, é sempre carregada de dúvidas éticas e políticas, assim como encampa discussões especializadas em áreas como a cibernética, automação, sistemas, comutação, cinemática, mecânica etc. Não obstante, importa-nos agora aprofundarmos um pouco sobre as consequências do descompasso a partir do horizonte fenomenológico (e político) da vida: o objeto técnico como veículo de inserção e definição da temporalidade humana, perante uma lógica na qual quanto mais envolvidos em tecnologia, mais temporalmente determinados ficamos.

Uma observação importante vem de Gianni Vattimo (1996, p. 36): “a técnica representa a crise do humanismo não porque o triunfo da racionalização negue os valores humanistas, como uma análise superficial nos levou a crer, mas sim porque, representando a consumação da metafísica, chama o humanismo a uma superação”[6]. Especialmente, o humanismo clássico, baseado na escritura e oralidade, encontra-se em crise. Vattimo esclarece acerca da falência das doutrinas baseadas em um antropocentrismo, estando ciente de que hoje os sujeitos ficam expostos a um processo de individuação em que as realidades tecnológicas (“debilitadas”, “secularizadas” e “simulacrizadas”) têm papel evidente na formação da temporalidade humana. Para ele, é preciso compreender a dificuldade ou a impossibilidade de se pensar o homem como consciência plena, como cogito ou substância, que predominou na filosofia moderna, assim como pensar o impasse que o desenvolvimento sem precedentes das tecnologias, na medida em que vivemos em uma sociedade organizada e regida pelos ambientes massificados da informação e comunicação possibilitadas pelas tecnologias contemporâneas.

O nosso problema sociológico aqui exposto carrega, portanto, uma verdadeira urdidura filosófica em relação ao fenômeno técnico. Cabe agora anotar, derradeiramente, alguns outros pontos importantes desta última. O modo como o tempo do mundo – ou, poderíamos dizer, o tempo da técnica –, se insere na temporalidade humana se dá a partir de uma verdadeira tecnosfera ou tecnicidade (Goffi, 1998; Santos, 1999)[7].

Vivemos uma modernidade técnica[8] (Brüseke, 2002). Como já salientamos, a presença massificante da técnica moderna faz com que ela seja, no senso comum, algo onipresente e inapercebida. Porém, contra esta impercepção, a definição da técnica, e de sua relação com a nossa experiência temporal, foi ganhando corpo aprofundado na filosofia, uma vez que os constantes desequilíbrios provocados pela emergência da tecnificação da vida modificaram decisivamente a condição humana.

A urdidura filosófica a respeito da técnica moderna nos leva a pensar em como esta compõe um tempo do mundo, e que influi, tão logo, na experiência humana no trato com o tempo. Tal como aprofundou Don Ihde (1990), uma fenomenologia da técnica compreende que esta configura a base da interação humana com os mundos naturais e humanos. Ora, experimentamos nossas interações com o mundo por meio da técnica. Nossas percepções e práxis nunca são ‘puras’ (como pensaríamos que seria com Adão e Eva), mas definitivamente mediadas pelas tecnologias. Isto designa, fundamentalmente, uma mediação tecnológica que constrói nossa percepção do tempo e espaço.

Diferentemente dos animais, o ser humano acumula experiências temporais através dos objetos técnicos; ou seja, é por meio do processo de exteriorização que a cultura sobrevive. O ser humano inventa a técnica e é inventado por ela. De tal maneira, conforme argumenta Bernard Stiegler (1993; 1994), a essência humana é, na verdade, um verdadeiro processo de ‘desnaturalização do ser humano por meio da tecnogênese (tecnoantropomorfização). Assim, a técnica é a prolongação da vida por outros meios que não a vida. Sua evolução prolonga a evolução biológica. O objeto técnico pode ser visto como o suporte artificial básico da memória humana e, portanto, condição ao processo de individuação humana. Possuímos duas vias principais de memória: a memória orgânica (viva) e a memória técnica (não-viva). A memória técnica cria uma ruptura com a vida “pura”, pois os instrumentos tornam-se portadores de uma nova temporalidade que interfere em nossas individuações psíquicas e coletivas.

Em uma leitura heideggeriana, os instrumentos surgem como resultado e condição de toda antecipação temporal do ser-no-mundo. Se no passado o ritmo social variava localmente e aos parâmetros dos ritmos biológicos, hoje, com a massificação da técnica em todos os domínios (pelas automações no trabalho, pelas diversas tecnologias de comunicação e informação que se inserem no lazer e na vida doméstica), temos uma temporalidade formada crescentemente pelo caráter das técnicas modernas. E qual é o caráter da técnica moderna? A autonomia (sistêmica) e ontológica. O primeiro primordialmente desenvolvido por Gilbert Simondon e o segundo, por Martin Heidegger.

Apesar de não ser o objetivo deste ensaio, a exposição destas dimensões fundamentais nos ajudaria a expor o horizonte em que a técnica moderna (Gestell, para Heidegger) satisfaz uma disponibilidade que empreende a eficiência, a compressão do tempo e do espaço, a performatividade e a evolução para o ganho do status de velocidade, informação, virtualidade – em uma palavra: cibernético –, tornando-se um objeto de estudo de sua dimensão temporal. O tempo do mundo ou o tempo da técnica é do contínuo atarefamento regular que se repete de forma instantânea e à exaustão, quebrando a cadência dos elementos da ordem temporal natural do mundo. A interferência da técnica é sempre de uma objetivação e aceleração das coisas ao entorno – ou seja, em direção a um horizonte cibernético que enseja quebras de paradigmas das formações sociais tradicionais.

O relógio é, sem dúvida, a grande metáfora do mundo moderno. Um ícone para um mundo que foi guiado pelo pensamento mecanicista e pela racionalização da existência humana. O cronômetro é o instrumento, por excelência, da ordem artificial da vida. Assim, para nós, este artefato crucial pode ser visto e estudado como símbolo para o valor mais amplo da ordem artificial da vida. Isto perfaz uma percepção mais aguda da organização e dos engajamentos coletivos diversos que trazem problemas para o tempo da vida.

A partir das bases fenomenológicas abertas por D. Ihde e do o entendimento filosófico do processo histórico de humanização e tecnização proposto por B. Stiegler, poderíamos seguir estudando, enfim, a urdidura filosófica que esclarece o distanciamento do tempo da vida com o tempo do mundo. Como argumentamos centralmente no ensaio, os ritmos sociotécnicos que as máquinas conferem destacam o problema da relação entre o ritmo da evolução técnica e o ritmo da formação cultural (dos indivíduos e sociedade). Como salientamos, faz-nos revelar o descompasso entre o tempo do mundo e o tempo da vida, uma vez que hoje a “cultura objetiva” da técnica se desenvolve mais rápido que a “cultura subjetiva” do indivíduo e sociedade. No nível filosófico (fenomênico), argumentamos que o problema está no fato de que o fluxo temporal dos objetos e a nossa consciência do fluxo temporal dos indivíduos se encontram em divórcio. Ora, os indivíduos se ajustam inconscientemente ao tempo do mundo e subvertem assim a individuação que constituiria a identidade e singularidade de seu tempo da vida[9].

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[1] Conferir aqui o interessante comentário de José L. Garcia (2003), no artigo “Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social. A visão pioneira e negligenciada da autonomia da tecnologia de Georg Simmel”.

[2] Seguiremos apresentando apenas os resultados de Renato Ortiz (e Jean Chesneaux), sabendo, contudo, que outros autores, Anthony Giddens (1991) e David Harvey (1989), por exemplo, exploraram a tese da “compressão espaço-temporal”, relacionando as novas tecnologias e as suas consequentes maximizações espacial e temporal das relações sociais.

[3] Em outro texto, Chesneaux (1996b, p. 37) expressa o entendimento escrevendo que: “La pression multiforme et quotidienne du temps maillé est aussi obsédante pour les simples citoyens que pour les décideurs technico-économiques. Les barreaux à la fois horizontaux et verticaux qui quadrillent chaque page de nos agendas personnels, avec une rigueur quase carcérale, en sont l’expression très symbolique, très fonctionelle aussi”.

[4] No original: “As the tempo of modern life has continued to accelerate, we have come to feel increasingly out of touch with the biological rhythms of the planet, unable to experience a close connection with the natural environment. The human time world is no longer joined to the incoming and outgoing tides, the rising and setting sun, and the changing seasons. Instead, humanity has created an artificial time environment punctuated by mechanical contrivances and electronic impulses: a time plane that is quantitative, fast-paced, efficient, and predictable” (RIFKIN, 1987, p. 12 apud ADAM, 1990, p. 104).

[5] Interessante citar aqui duas produções cinematográficas do século XX, uma vez que exemplares para refletir sobre a radicalidade distópica na qual o controle total do tempo do mundo e a abolição do tempo da vida podem danificar a temporalidade humana. As obras Alphaville (1965), de F. Godard e 1984 de Orwell (1984), de M. Bradford expressam um mundo futuro dominado por regimes totalitários e tecnocráticos. Em ambos os filmes a vida é policiada por meio de aparelhos tecnológicos. Em ambos o cotidiano é reprimido por um universo tecnológico em que todos se adaptam a uma máquina planificadora da cidade e da vida íntima. O objetivo último deste cenário não é outro que a tentativa de abolição do passado, presente e futuro dos indivíduos, isto é, do devir humano, uma vez que a vida segue por uma eterna ‘ordem única’. O mundo é um cálculo probabilístico da máquina. E quem não se adapta é banido por uma indústria de execução humana.

[6] O humanismo, esclarece Vattimo (idem, ibidem), “é a doutrina que atribui ao homem o papel de sujeito, isto é, de autoconsciência como sede da evidência, no quadro do ser pensado como Grund, como presença plena”. O humanismo, diríamos, entendido como pleno domínio de si, da realidade e convívio social capaz de alcançar a consciência do tempo para habitar e agir no mundo.

[7] A tecnosfera pode ser entendida como a armação artificial que o homem constrói no espaço da biosfera. As cidades, as indústrias, as redes transportes, os instrumentos e as máquinas diversas etc. formam o ambiente que se denomina tecnosfera.

[8] Brüseke (2002) justifica o termo: “O fato de que a modernidade, como época histórica, nasce com a ciência e a técnica, mostra hoje toda a sua virulência. Podemos dizer que essa modernidade é tão penetrada pela “técnica” que ela pode ser denominada e caracterizada como “modernidade técnica”.

[9] Conforme já destacamos, extraímos as noções e os problemas entre a “cultura objetiva” e “cultura subjetiva” de Simmel (1979). Interessante lembrar, no entanto, que Norbert Elias (1998; 1994) traz uma distinção que também poderia nos interessar. Ele distingue entre civilização e cultura. Enquanto a ideia de civilização está associada às de modernidade, progresso e tecnologia. A cultura, por outro lado, associa-se aos domínios da tradição e às esferas da vida cotidiana em que os ‘projetos civilizadores’ tentam conquistar e domesticar.