REDES SOCIAIS E MUDANÇAS COGNITIVAS

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A questão acerca dos modos de ver, saber e fazer na internet – e, em particular, nas redes sociais – desdobra-se também em um significativo debate sobre as alterações cognitivas que dela decorrem. Como sabemos, a midiatização por meio de blogs, microblogs, chats, posts, links etc. nos proporciona novos impulsos para a produção e transmissão de informações e pensamentos.

Fundamentalmente, as novas formas de produção e transmissão de informação e saber, caracterizadas pela instantaneidade, imprevisibilidade, efemeridade, velocidade, traceabilidade etc., criaram novas subjetividades nos corpos. Alteraram-se as formas de desempenho e as atividades essenciais dos humanos: seus trabalhos de memória, atenção, percepção e raciocínio. Ora, o virtual produziu outras formas de compreender a consistência do humano.

O esclarecimento sobre isso começou nos horizontes da fenomenologia e do pós-estruturalismo (vide Husserl, Heidegger; Deleuze, Derrida). Terminantemente, quanto mais a materialidade ultrapassou os “limites do visível”, ou quanto mais a performatividade da vida passou a ser agenciada por atribuições maquínicas, mais se tornou significativa, para o pensamento filosófico e político, a tese de que os objetos técnicos são, essencialmente, uma questão de “exteriorização da memória” humana. Nota-se uma íntima relação entre técnica e homem – exposta pelo fascinante conceito de hypomnesis e anamnese entre os gregos –, que hoje, como dissemos no post anterior, evidencia a relevância do pensar organológico, de “composição”. Isso altera, enfim, profundamente, proposições fundantes da sociologia moderna, colocando novas noções e temas (sobre isso, ver, por exemplo, o livro Technique et Temps, vol.1, de Stiegler; http://arsindustrialis.org/glossary).

De tal forma, a problemática das mudanças semânticas e cognitivas vem sendo colocada assim: os seres humanos (e as máquinas) se expressam por meio de linguagens. Assim, as construções semânticas e cognitivas estão intimamente ligadas, uma vez que o processamento das informações passa pela cognição humana. Propriamente, a categorização das informações ou da realidade (as ordenações e discretizações espaço-temporais dos objetos e fenômenos, a formulação de problemas e suas resoluções) constitui-se por mecanismos cognitivos.

No contexto contemporâneo, as revoluções nas formas de produção e acesso às informações evidenciaram a crise da cultura do livro. A experiência tecnológica da leitura de um livro – isto é, sentar-se e folhear linearmente as páginas de um objeto retangular segmentado e numerado em papéis – selecionava um tipo especial de cognição (de hábito mental ou atenção). Essa prática sujeitava o indivíduo a um tipo de concentração e meditação (pense-se nas reflexões de Marcel Proust a respeito; talvez a ocasião mais elevada, pois inserida em um elogio melancólico, vislumbrando a crise).

A leitura pela estrutura tecnológica do livro: eis um dos hábitos mais valorizados do Ocidente, do humanismo ocidental… Na experiência da leitura, a produção da memória, atenção, percepção e raciocínio coincidia com uma singularidade ou subjetividade forte (a interioridade do “eu”). Costuma-se dizer que a subjetividade, nos termos da “cultura do livro”, conforma um indivíduo com decisões “arquitetônicas”, projetos de vida e criatividades voltadas para a construção do “eu” ou para a realização dos problemas “por si mesmo”. Certamente há tanto grandes elogios quanto grandes críticas em relação a essa consistência humana. Quanto aos elogios, permita-me uma observação: parece ser cada vez mais raro encontrar pensadores com a carga literária, política e filosófica que tínhamos até o século XX. Como dizia Deleuze, um grande pensador é, antes de tudo, um grande escritor – e isso talvez explique a raridade. O que perdemos com isso? Não sei. Contudo, no plano político e na realidade histórica, sabemos que esse tipo de vida acabou sendo elitista, reservado a muito poucos, não evitando as consequências drásticas e até apocalípticas, se avaliarmos o século passado.

Essa discussão, de ponderação difícil, é, porém, de extrema pertinência. Em relação às mudanças cognitivas e semânticas provocadas pelas redes sociais, ela tem se mostrado um divisor de águas. Nicholas Carr é um autor que enfrentou tal discussão, apresentando apontamentos críticos a respeito. Expõe as “angústias” vividas pelas novas consistências humanas em ambientes hiperconectados. Para ele, nesses ambientes, a regra geral é que as pessoas fiquem presas a um universo de fragmentações múltiplas, ou seja, contrárias a uma construção “arquitetônica”. Os indivíduos afogados nas informações e nos zappings digitais permanecem na “inconstância de projetos”, ficando expostos a uma sobrecarga cognitiva e à perda da capacidade de atenção “profunda”, que levaria a melhores capacidades de reflexão e meditação. A inteligência cognitiva, nesses termos, estaria mais próxima de uma produtividade ligada aos estados de “alerta” e “vigilância”. Aqui, é notável a reação de Carr a essas produtividades “superficiais”: “a leitura profunda, que se efetivava naturalmente, tornou-se um combate” (no livro The Shallows).

Do mesmo modo que K. Hayles, autora do artigo “Hyper and Deep Attentions”, Carr tende a estabelecer uma cisão profunda entre dois modos de cognição: a “profunda” e a “hiperestimulada”. Encaminhando uma crítica da cultura contemporânea a partir de uma dicotomia inconciliável, pode-se ficar diante de uma decisão difícil e anacrônica: resistir à vida hiperconectada.

Acredito que não vale a pena basear-se em pesquisas neurocientíficas e psicológicas de cunho fortemente determinista. Se o cérebro é dotado de plasticidade, há, sem dúvida, capacidade para conviver com os dois modos de trabalho cognitivo. Não estou convencido de que um elimina o outro. O cotidiano é cheio de trabalhos cognitivos diferentes. As serendipidades e flutuações dos momentos de hiperconectividade não podem coexistir com momentos de “depuração meditativa” em torno de um único fenômeno ou objeto? Afinal, levando o argumento a outros campos, quem pratica esportes como tênis de mesa ou joga videogames – ou seja, quem exerce atividades de alta estimulação da atenção e multitarefas – ficará impedido de ler um texto de Heidegger? Penso que sempre existam espaços para diferentes tipos de trabalho cognitivo, que podem ser complementares. Contudo, a questão maior parece residir tanto na educação que se deve oferecer quanto nas estruturas das redes sociais que estamos construindo.

Esses dois últimos pontos – educação e estruturação das redes – são preciosos e de grande valor para o debate. O momento de crise da “cultura do livro” é, evidentemente, também o da “crise da escola”. Como evitar um ambiente baseado em atividades intensamente performáticas? É preciso refletir e atribuir caminhos para essas questões; caso contrário, corre-se o risco de apenas louvar inocentemente o modo hiperconectado, sem perceber o quanto ele satisfaz, simultaneamente, o controle das subjetividades na cidade.

Cabe lembrar que Michel Serres, em seu último livro, Petite Poucette, elogia a nova geração que surgiu com a conectividade. Seu livro é instigante, e salta aos olhos que um homem da idade de Serres fale com tanta naturalidade sobre um assunto tão contemporâneo. Contudo, seu declarado otimismo amortiza um discurso no qual se evidencia que este mesmo momento de “liberação” vem acompanhado de cerceamentos, e que a crise vivida pela instituição escolar deve ser pensada exatamente nesses termos (para uma crítica desse ponto em Serres, ver: http://skhole.fr/petite-poucette-la-douteuse-fable-de-michel-serres).

O contemporâneo aponta para um horizonte no qual o futuro possível da internet é uma luta política que passa por formas mais plurais de construção e disseminação das estruturas algorítmicas e, consequentemente, de vivências cognitivas diversas, menos compulsivas. Vivemos a tensão deste momento histórico.