REDES SOCIAIS COMO CATALISADORAS DE DESEJOS E PULSÕES
O aparecimento das redes sociais e sua intensa disseminação são um dos eventos mais importantes da história da Internet. O deslocamento da conexão por hierarquias para a conexão por pontos, diretamente entre as pessoas, trouxe uma reviravolta na forma de produção e circulação de comunicações. O resultado disso, como estamos vendo, foi a queda da hegemonia da construção da “realidade” por corporações de mídia e ordens estatais. Desde o fim do século XX, tem-se acompanhado uma mudança nos modelos de indústria cultural e no capitalismo fordista. Desde então, o capitalismo cognitivo aumentou a importância da “expressão individual”.
Se, por um lado, na história atual, a concentração de riqueza no mundo não diminuiu – na verdade, aumentou! –, por outro, os indivíduos, ou a “multidão”, ganharam uma inédita potência de construção de desejos, de protagonização de devires, multiplicidades e diferentes espacialidades. Contudo, se o nosso desejo – de produção, criação, invenção, individuação – não é anulado ou decidido por uma “ideologia”, ele está, a todo momento, sujeito a ser subvertido pelas novas estratégias biopolíticas ou de controle.
Como pensa Tim Berners-Lee – um dos fundadores da internet que mais se posicionou publicamente sobre os rumos desta mídia –, a internet, nas mãos dos conglomerados corporativos americanos, corre o grande risco de se tornar um “jardim murado”. Sua preocupação recai, como podemos perceber, sobre as contenções e deturpações das “vozes da multidão”.
Essa expressão, que conota o cerceamento da produção da subjetividade, é uma hipótese já bastante investigada. Observa-se que a construção da subjetividade e a cooperação entre as pessoas alcançaram o nível “cerebral” ou cognitivo e possibilitaram a releitura e o movimento de pensamentos de filósofos sociais diversos, de épocas pré-internet – como Saint-Simon, Gramsci, Simondon, Perroux, Moreno ou Marx. Essa releitura é rica e bem-vinda, pois evidencia a importância do cultivo de redes “abertas” ou de “jardins sem muros”.
Todos esses pensadores, de épocas e filiações diferentes, convergem em um ponto fundamental: miravam formas mais dinâmicas de socialização, que partissem de agregados comuns (“redes”), de horizontalidade coletiva, em uma “sociedade civil”; ou seja, buscavam condições que favorecessem individuações coletivas, não baseadas em formas rígidas e hierárquicas, capazes de anular transformações das sociabilidades vindas de “baixo”, da maioria. Assim, como esses autores, a questão relaciona-se à transformação das formas de “philia”.
Como tem sido corrente equacionar, as mudanças trazidas pelas redes sociais não provêm apenas das inovações tecnológicas de cunho informático, mas também das experiências político-culturais pós-maio de 1968. A partir desses dois elementos, podemos começar a pensar nas diferentes possibilidades e efetividades de individuação psíquica e coletiva, as quais se repercutem em novas formas de construção estética, econômica, política e cultural.
Não obstante, o “novo espírito do capitalismo”, como mostraram Boltanski & Chiapello, tenta incessantemente forjar a “exploração” a partir das novas formas de liberdade e produtividade. O contemporâneo evidencia que o argumento deleuziano merece um debate cada vez mais aprofundado. O modelo hegemônico, que busca a desindividuação das pessoas, dá continuidade às novas formas de proletarização e exploração, provocando um novo tipo de atarefamento e buscando, tão logo, cercear a vida que foi “liberada”. Assim, argumenta-se que a subjetivação e a cooperação nas redes colocam simultaneamente em xeque o modelo de cerceamento por “instituições fechadas” e revelam um novo assalto à vida, baseado em estratégias informáticas neocorporativas destinadas a explorar afetos e desejos.
A luta política contemporânea, nas ruas e nas redes, ocorre contra um controle da economia libidinal que se expressa de forma geral por meio de estratégias de marketing em ambientes virtuais. O otimismo em relação ao contemporâneo não deve ser uma cegueira. Vivemos em um mundo descentralizado, marcado por novas e complexas estratégias de biopoder e de hegemonias culturais.
É a partir desse ponto que o contemporâneo pode ser compreendido em diálogo com as tradições de Freud e Marx. A produção de subjetivação nas redes sociais conecta-se com a tensão dos investimentos corporativos na disseminação e controle da economia libidinal – e isso não diz respeito apenas à exploração tradicional pelo marketing, mas também às formas que estruturam e criam as próprias redes sociais. Esse caminho permite pensar nas novas experiências que ligam redes e ruas, avaliando o pêndulo entre dois futuros díspares: o das potências democráticas e criativas – onde a energia libidinal se transformaria em riqueza simbólica, favorecendo a individuação psíquica e coletiva e a economia da contribuição; e o das forças corporativas – capazes de catalisar e explorar pulsões individualistas e consumistas, convertendo as energias libidinais em “miséria simbólica”.
