OS LIMITES DO CONTROLE, William S. Burroughs (1975)

OS LIMITES DO CONTROLE

William S. Burroughs (1975)

Evento Schizo culture

Comentário e tradução: Ednei de Genaro

Comentário:

O texto de William Burroughs foi apresentado pela primeira vez em um evento, sob o título preliminar The Impasses of Control. Em novembro de 1975, o escritor americano participou como conferencista do lendário colóquio Schizo-Culture, realizado na Universidade de Columbia. Organizado por Sylvère Lotringer, o encontro tinha como objetivo introduzir ao público norte-americano as proposições político-filosóficas que emergiam na França após Maio de 1968. Foucault, Deleuze, Guattari e Lyotard aceitaram o convite e compareceram. Junto com os franceses, estiveram também artistas da vanguarda americana. Entre os nomes presentes – John Cage, Cunningham, Jack Smith, Keith Richards… – figurava igualmente Burroughs.

A conferência do escritor teve desdobramentos posteriores. Gilles Deleuze, também conferencista do evento, foi um dos que perceberam com intensidade a importância da contribuição de Burroughs. Em várias ocasiões, essa influência tornou-se explícita, sobretudo nos escritos políticos de Deleuze e Guattari, como em Mil Platôs e, mais tarde, no artigo Post-scriptum sobre as sociedades de controle, em que Deleuze incorpora o sentido da palavra “controle” proposto por Burroughs, revisando assim a noção de sociedade disciplinar de Foucault.

Os limites do controle é um texto típico de Burroughs: sua estratégia estilística combina experimentação, imaginação e hiperbolização. Aos olhos contemporâneos, o traço “paranoico” – por vezes atribuído ao escritor – importa menos do que sua capacidade visionária de antever um problema urgente. Esse caráter visionário confere atualidade ao texto: à crítica do esgotamento do modelo colonialista dos EUA e da Inglaterra soma-se uma análise das contradições de um poder nascente, ainda frágil e cheio de impasses.

Nos anos 1960, Burroughs vivenciou intensamente o drama das experiências psiquiátricas conduzidas sob a égide do Estado militar americano. As reflexões presentes no ensaio dialogam com esse contexto. Na conferência, contudo, a dimensão histórica é transfigurada em uma imaginação analítica surpreendente, que cria uma situação exemplar de controle e a desdobra em argumentos e teses avant la lettre.

Qual seria, afinal, o argumento central do autor? A política de autopreservação do controle só pode se sustentar mediante uma política de concessão. Em outras palavras, a retenção do controle depende de uma liberação parcial das populações. “Controle é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro”, escreveu Deleuze (1992, p. 220). Essa espécie anômala dá corpo às novas máquinas cibernéticas de modulação e de transbordamento de fronteiras – antes restritas ao campo da psiquiatria, agora vistas como a própria “alma” da empresa capitalista.

O monstro, observa Deleuze, é uma metáfora precisa para expor a indefinição de seu caráter e as fissuras que alimentam as linhas de fuga. Nos escritos de Negri e Hardt, o termo ganha ainda uma conotação positiva: torna-se sinônimo da noção de multidão. De modo surpreendente, Burroughs antecipa esse desdobramento produtivo: “As novas mídias são incontroláveis por natureza”; “(…) a dissidência em todo o mundo nunca foi tão generalizada nem tão perigosa para os controladores atuais […]. Será que aparece qualquer política clara a partir desta entretida confusão? A resposta é provavelmente não” (Burroughs). Assim, a alternativa de substituir um Estado centralizador, fascista, totalitário e disciplinador não se mostra mais viável – seja pelo modelo do “surf” e da modulação, seja por uma alternativa revolucionária molar e pragmática. A metáfora de Deleuze para essa “confusão política” é ainda mais enigmática: “Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira” (idem, p. 226).

Como observa hoje o teórico das mídias Alexander Galloway, “o mais importante legado de Deleuze talvez consista nas 2.300 palavras do Post-scriptum…”. Essa formulação hiperbólica de Galloway nos indica algo relevante: a importância fundamental atribuída ao ensaio final do filósofo francês deveria ser ampliada, em sua genealogia, para incluir também as duas mil e tantas palavras do ensaio de Burroughs.

 

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Tradução:

OS LIMITES DO CONTROLE  – William S. Burroughs[1]

 

Existe um interesse crescente por novas técnicas de controle da mente. Dizem que Sirhan Sirhan[2] foi objeto de sugestão pós-hipnótica; ele sentava-se tremendo violentamente na mesa de vapor da cozinha do Hotel Ambassador, em Los Angeles, enquanto uma mulher ainda não identificada o segurava e sussurrava em seu ouvido. Alega-se que as técnicas de modificação de comportamento são usadas em prisioneiros problemáticos ou em pessoas internadas, muitas vezes sem seu consentimento. O Dr. Delgado[3], que uma vez capturou um touro por controle remoto, a partir de eletrodos no cérebro do animal, deixou os EUA para prosseguir seus estudos em seres humanos na Espanha. Lavagem cerebral, drogas psicotrópicas, lobotomia e outras formas mais sutis de psicocirurgia: os aparatos de controle tecnocrático dos Estados Unidos têm desenvolvido novas técnicas, que, se bem exploradas, podem deixar o 1984 de G. Orwell parecendo uma utopia benevolente. Contudo, as palavras são ainda os principais instrumentos de controle. Proposições são palavras. Persuasão é palavra. Ordens são palavras. Nenhuma máquina de controle até agora planejada pode operar sem palavras, e qualquer máquina de controle que tente fazê-lo dependerá inteiramente de força externa ou de controle físico da mente – e, assim, encontrará limites de controle.

Um embaraço básico de todas as máquinas de controle é este: controle necessita de tempo para exercer o controle. Isto porque controle também necessita de oposição ou de assentimento; caso contrário, deixa de ser controle. Eu controlo um sujeito hipnotizado (pelo menos parcialmente); eu controlo um escravo, um cão, um trabalhador, mas se eu estabeleço o controle completo de alguma forma, como por meio da implantação de eletrodos no cérebro, então o meu subordinado é um pouco mais do que um gravador, uma câmera, um robô. Você não controla um aparelho gravador – utiliza-o. Considere a distinção e o impasse implícito aqui. Todos os sistemas de controle tentam fazer o controle o mais estreito possível, mas, ao mesmo tempo, se o atingissem completamente, não haveria mais nada para controlar. Suponhamos, por exemplo, um sistema de controle que instala eletrodos nos cérebros de todos os futuros trabalhadores no momento do nascimento. O controle então estaria completo. Mesmo o pensamento de rebelião seria neurologicamente impossível. Nenhuma força policial seria necessária. Nenhum controle psicológico seria preciso, a não ser pressionar os botões certos para alcançar certas ativações e operações. Os controladores poderiam ligar a máquina, e os trabalhadores iriam realizar suas tarefas – pelo menos assim pensariam. Porém, os controladores teriam parado de controlar os trabalhadores, uma vez que estes teriam se transformado em algo como um aparelho gravador.

Quando não há mais oposição, o controle é uma proposição sem sentido. É altamente duvidoso que um organismo humano possa sobreviver sob controle completo. Não restaria mais nada lá. Não existiria indivíduo. A vida é vontade, motivação, e os trabalhadores não seriam mais vivos, quiçá literalmente. O conceito de sugestão (suggestion), enquanto técnica de controle, pressupõe controle parcial e não total. Você não tem como reprimir o seu gravador nem submetê-lo à dor, coerção ou persuasão.

No sistema de controle maia, no qual os sacerdotes conservavam os louvados Livros das Estações e dos Deuses, o calendário impunha o analfabetismo universal, na medida em que operava como meio de comunicação de massa – um instrumento de controle de dois gumes, como o caso Watergate demonstrou. Os sistemas de controle são vulneráveis, e as novas mídias são incontroláveis por natureza, pelo menos na sociedade ocidental. A imprensa alternativa é notícia, a sociedade alternativa é notícia, e, como tal, ambas são absorvidas pelos meios de comunicação. Uma vez que Hearst e Luce obtiveram o monopólio, ele foi quebrado. De fato, quanto mais completamente hermético e aparentemente bem-sucedido é um sistema de controle, mais vulnerável ele se torna. A fraqueza inerente do sistema maia é que ele não precisava de um exército para controlar os seus trabalhadores; e, portanto, não tinha um exército quando, na verdade, precisaria dele para repelir os invasores. É regra das estruturas sociais que qualquer coisa que não é necessária se atrofiará e se tornará inoperante ao longo do tempo. Ao se retirarem do jogo de guerra – lembrem-se, os maias não tinham vizinhos para brigar –, logo perderam a capacidade de lutar. Em The Mayan Caper[4] eu sugeri que tal sistema hermético de controle poderia ser completamente desorientado e abalado por uma única pessoa que alterasse o calendário de que o sistema de controle dependia cada vez mais fortemente. De tal maneira, suas mídias definhariam.

Considere uma situação de controle: dez pessoas em um barco salva-vidas. Dois autointitulados líderes armados forçam os outros oito a remarem enquanto os líderes dispõem do alimento e da água, mantendo a maior parte para si e distribuindo apenas o suficiente para manter os outros oito remando. Os dois líderes agora precisam exercer controle para manter uma posição vantajosa que não poderiam manter sem isto. Aqui, o método de controle é a força – a posse de armas. O descontrole seria produzido pelo desgoverno dos líderes e a tomada de suas armas. Feito isto, seria vantajoso matá-los de uma vez. Logo que se iniciasse uma política de controle, os líderes continuariam com a política por uma questão de autopreservação. Quem precisa controlar os outros, senão aqueles que resguardam, com tal controle, uma posição de vantagem relativa? Por que eles precisam exercer o controle? Ora, eles precisariam controlar porque, se abandonassem o controle, perderiam imediatamente a posição de vantagem e, em muitos casos, também suas vidas.

Agora examine as razões pelas quais o controle é exercido no cenário do barco salva-vidas: os dois líderes estão armados, digamos, com revólveres calibre 38 – doze tiros e oito oponentes em potencial. Eles poderiam dormir em turnos. No entanto, ainda teriam de tomar cuidado para não deixar que os oito remadores tivessem a intenção de matá-los quando a terra fosse avistada. Mesmo nesta situação selvagem, a força é mediada por decepção e persuasão: os líderes vão desembarcar no ponto A e explicam que deixam alimento suficiente para os outros atingirem o ponto B. Eles têm a bússola e estão contribuindo com suas habilidades de navegação. Em resumo, eles irão se esforçar para convencer os outros de que este é um empreendimento cooperativo, em que todos trabalham para o mesmo objetivo. Eles também podem fazer concessões: aumentar as rações de alimento e água. A concessão significa, é claro, a retenção do controle – isto é, a disposição dos alimentos e da água. Por meio de persuasões e concessões, eles esperam evitar um ataque conjunto dos oito remadores.

Na verdade, eles pretendem envenenar a água potável assim que deixarem o barco. Se todos os remadores soubessem disso, teriam atacado, não importa de que maneira. Vemos agora que outro fator essencial do controle é ocultar dos controlados as intenções reais dos controladores. Estendendo a analogia do barco salva-vidas para o Navio do Estado, poucos governos existentes poderiam resistir a um súbito ataque em massa de todos os seus cidadãos desfavorecidos, e tal ataque poderia ocorrer se as intenções de certos governos existentes fossem inequivocamente manifestas. Suponha que os líderes do barco salva-vidas tivessem construído uma barricada e pudessem resistir a um ataque concentrado, matando todos os oito remadores, se necessário. Eles teriam então que remar por si mesmos e nem estariam seguros um do outro. Da mesma forma, um governo moderno, armado com armas pesadas e preparado para o ataque, poderia acabar com 95% dos seus cidadãos. Mas quem faria o trabalho, e quem os protegeria dos soldados e técnicos necessários para manter homens e armas? Controle bem-sucedido significa obter um equilíbrio e evitar um confronto no qual todas as forças fossem necessárias. Isto é conseguido por meio de várias técnicas de controle psicológico, também equilibradas. As técnicas tanto de força como de controle psicológico são constantemente incrementadas e refinadas, e mesmo assim a dissidência em todo o mundo nunca foi tão generalizada nem tão perigosa para os controladores atuais.

Todos os modernos sistemas de controle estão cheios de contradições. Olhe para a Inglaterra. “Nunca vá longe demais em qualquer direção” é a regra básica sobre a qual a Inglaterra é edificada, e há alguma sabedoria nisso. No entanto, ao evitar um impasse, entram em outro. Qualquer coisa que avance demais já encontra as margens. Certo, nada dura para sempre. O tempo determina o que termina, e o controle precisa de tempo. A Inglaterra está simplesmente tentando ganhar tempo em virtude dos seus fundamentos lentos.

Olhe para a América. Quem realmente controla este país? É muito difícil dizer. Certamente os muito ricos são um dos grupos mais poderosos de controle, uma vez que estão em posição de manipular toda a economia. No entanto, não seria vantajoso para eles configurar ou tentar formar um governo excessivamente fascista. Força, uma vez implantada, subverte o poder do dinheiro. Este é outro impasse do controle: a proteção dos protetores. Hitler formou a SS para protegê-lo da SA. Se tivesse vivido o suficiente, teria enfrentado o problema da proteção contra a própria SS. Os imperadores romanos estavam à mercê da Guarda Pretoriana, que em um ano assassinou vinte imperadores. Além disso, nenhum país industrial moderno foi fascista sem um programa de expansão militar. Não há mais lugar algum para se expandir – depois de centenas de anos, o colonialismo é uma coisa do passado.

Não pode haver dúvida de que uma revolução cultural sem precedentes aconteceu na América durante os últimos trinta anos e, uma vez que a América é agora o modelo para o resto do mundo ocidental, esta revolução é mundial. Outro fator é a mídia de massa, que espalha em todas as direções diversos movimentos culturais. O fato de que esta revolução mundial ocorreu indica que os controladores foram obrigados a fazer concessões. Evidentemente, uma concessão é ainda retenção de controle. Aqui está um centavo, eu guardo um dólar. Facilita-se via censura, mas, lembremos, nós poderíamos ter isso tudo de volta. Bem, é justamente este ponto que é questionável.

Concessão é outra forma de controle. A história mostra que, tão logo um governo começa a fazer concessões, é uma rua de mão única. Certamente, eles poderiam ter todas as concessões de volta, mas isso os sujeitaria ao duplo perigo da revolução e do muito maior risco do fascismo escancarado – ambos altamente arriscados para os controladores atuais. Será que aparece qualquer política clara a partir desta entretida confusão? A resposta é provavelmente não. Os meios de comunicação têm se mostrado um instrumento de controle muito instável e até traiçoeiro. Isto se deve à sua necessidade incontrolável por news. Se um documento, ou mesmo uma série de documentos de propriedade da mesma pessoa, faz com que a história seja mais quente como news, outros documentos serão procurados. Qualquer imposição de censura do governo sobre a mídia é um passo na direção do controle do Estado, um passo que se torna cada vez mais restritivo para obter big money.

Eu não quero sugerir que o controle automaticamente destrua a si mesmo, nem que o protesto seja, portanto, desnecessário. Nada pode ser mais perigoso do que um governo que embarca em autodestruição ou em um curso inteiramente suicida. É encorajador que alguns projetos de modificação de comportamento tenham sido noticiados e cessados, e certamente essa exposição e publicidade continuarão. Na verdade, eu defendo que nós tenhamos o direito de insistir que toda pesquisa científica seja sujeita ao escrutínio público, e que não deve haver tal coisa como pesquisas top-secret.

(Fim)

[1] Texto publicado originalmente na revista Semitotex(e), vol.3, n° 02, New York, 1978, p.38-43.

[2] Sirhan Sirhan (1944), nascido em Jerusalém e refugiado nos EUA, foi condenado pelo assassinato Robert Francis Kennedy, irmão do presidente americano John Fitzgerald Kennedy (NdT).

[3] Professor José Manuel Rodriguez Delgado (1915-2011), da Universidade de Yale, ganhou notoriedade nos anos 1960 por realizar experimentos de implantes de rádio transmissor (stimoceiver) em cérebros de animais, de modo que pudesse controlar movimentos destes (NdT).

[4] Capítulo do livro “The Soft Machine”, publicado pela editora Grove Press, 1992 [1961, 1966] (NdT).

Referência::

Deleuze, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.