DEPOIS DE LATOUR?
NOTAS SOBRE O DEBATE LEMOS & RÜDIGER

Ednei de Genaro (2017)
As notas a seguir propõem uma interpretação do debate entre André Lemos e Francisco Rüdiger a partir de textos publicados na revista Matrizes (Lemos: “A crítica da crítica essencialista da cibercultura”, vol. 9, n. 1, 2015: http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/100672; Rüdiger: “Contra o conexionismo abstrato: réplica”, vol. 9, n. 2, 2015: http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/111719; Lemos: “Contra a crítica abstrata: tréplica”, vol. 10, n. 1, 2016: http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/119470/116875). Arrisca-se, primeiramente, uma leitura pragmática, evitando-se ao máximo o tom polêmico. O que, afinal, podemos extrair de produtivo desse debate? Em seguida, busca-se ponderar sobre as teorias, epistemologias e metodologias que nele se entrecruzam.
O embate articula-se em torno de duas acusações gerais: Lemos sustenta que a tradicional categoria dos Críticos, sobretudo os chamados essencialistas, faz “pouco empírico” e, por isso, produz frequentemente compreensões, argumentos e julgamentos sobre política, economia e cultura que se mostram normativos, idealistas ou abstratos. Rüdiger, por sua vez, afirma que a nova categoria dos teóricos da Teoria Ator-Rede (TAR) faz apenas “muito empírico”, incorrendo assim em um vazio de compreensões, argumentos e julgamentos sobre política, economia e cultura, que ele interpreta como uma forma de conexionismo formal e abstrato.
Nesse contraste entre o “muito” e o “pouco” empirismo, delineiam-se duas ênfases ou posições de pesquisa. A primeira busca uma integração-e-isolamento discursivos (“purificações”, como veremos) ao tratar dos fenômenos ditos humanos e técnicos. A segunda propõe uma inclusão-e-simetria discursivas, analisando conjuntamente fenômenos humanos e não humanos (redes sociotécnicas, fugindo das purificações ou do essencialismo). Os Críticos situam-se na tradição moderna das ciências humanas: em certo ponto, interrompe-se o trabalho empírico e procede-se a um julgamento sociopolítico — sobre poderes dominantes e seus dispositivos, classes sociais e seus principais agentes, ideologias vigentes —, frequentemente “saltando” hermeneuticamente para diagnósticos da cultura mercadológica, do desencantamento ou da miséria do mundo, do niilismo. Já os partidários da TAR alinham-se a uma visão amoderna, agnóstica e perspectivista das ciências humanas: em determinado momento, quando o empírico parece esgotar-se, descrevem sociotecnicamente as conexões e reconexões entre atores e ambientes, os modos de transmissão da informação, as inovações nas materialidades e as mudanças nos designs, com as consequentes mutações em procedimentos e controvérsias.
Assim, os autores erigem duas acusações amplas, com inevitáveis efeitos acusatórios — pois, em alguma medida, torna-se necessário categorizar e julgar negativamente os modos epistemológicos do adversário. Desse gesto resulta um debate que envolve também, de modo inevitável, a defesa de fronteiras acadêmicas: entre um paradigma “vigente” e um paradigma “emergente”.
Os convites parecem bons, pertinentes, corretos? Ora, quem poderia afirmar que, sendo cientista social, fazer “bastante ciência” seria algo negativo? Contudo, desses convites surgem perguntas evidentes, complexificadoras e de diferentes matizes, às quais o texto de Rüdiger procura responder em forma de contra-argumento: a “sociologia compreensiva e crítica” — aquela que interpreta os fenômenos da linguagem, da história, dos signos, isto é, que vai além do domínio dos fatos, observações e associações — deixou de fazer ciência e de funcionar adequadamente, tanto epistemológica quanto politicamente (criticamente)? Por que alguém que estuda a própria sociedade deveria abandonar suas interpretações (hermenêuticas) históricas, políticas, econômicas etc., para enfatizar apenas “descrições” — como um viajante ou antropólogo que chega a terras desconhecidas e registra suas observações em um bloco de notas?
Enfim, está contada a narrativa da polêmica.
Tal como interpretamos, a resposta de Lemos é que a “sociologia compreensiva” e crítica teria ficado excessivamente presa a paradigmas (“frames explicativos”) totalizadores — desencantamento, luta de classes, sistema técnico, razão instrumental, ideologia — que já não contribuem para compreender a sociedade contemporânea. Isso se tornaria evidente, segundo ele, na forma como a técnica foi tradicionalmente percebida pelos Críticos: de modo geral, como uma racionalidade negativa, oposta ao humano. A crítica, nesse sentido, teria se tornado, em muitos casos, demasiadamente “essencialista”, assumindo mais o tom de uma “filosofia social moralista” do que propriamente de ciência social.
A conjuntura histórica, para Lemos, nunca foi tão propícia a tais argumentos. As posições críticas, em linhas gerais, procuraram compreender as estruturas de pensamento e de ação da sociedade como um todo, desvelando suas forças dominantes para, então, produzir uma crítica dos processos vigentes e uma imaginação de “emancipação”. Correntes diversas — marxistas, weberianas, fenomenológicas, existencialistas, estruturalistas, pós-estruturalistas — constituíram, de diferentes formas, uma perspectiva crítica. Todas, porém, atravessam hoje crises. (Por motivos históricos que não cabe desenvolver nestas notas, mas que têm muito a ver, como sabemos, com as experiências fracassadas de emancipações ditas “comunistas” no século XX. Lembremos Latour, em Jamais fomos modernos, afirmando que 1989 foi um ano “milagroso”, pois trouxe acontecimentos que romperam definitivamente com os paradigmas prometeicos de “progresso científico” e de “emancipação humana”).
Os textos de Lemos propõem, assim, um “novo olhar” para as coisas. Não mais uma perspectiva crítico-emancipatória, mas de responsabilidade, produzida a partir de uma pesquisa cuidadosa voltada à compreensão dos complexos laços sociotécnicos atuais — sobretudo na cultura digital, mote de sua análise, onde atuam “engenheiros, criadores, produtores de informação, empresas, distribuidores, usuários, leis, softwares e bancos de dados, servidores, redes…” (p. 48, texto 1). A pesquisa deveria derivar fundamentalmente da análise das mediações entre agentes (“actantes”), enfatizando não os agentes em si (epistemologicamente inexistentes), mas os processos que efetivamente estão em curso.
Na posição de um criador de responsabilidades, o pesquisador parece torna-se uma figura comedida, mas autossuficiente. Isto porque ele não desejaria “abraçar o mundo”; não começa a pesquisar sobre um ambiente específico, uma agência de telemarketing, por exemplo, e de repente está falando, com a “ajuda” de Boltanski e Chiapello, sobre os traços macro do capitalismo contemporâneo. Caso seu acompanhando dos rastros não lhe tenha levado a isso, ele não faz “saltos” sobre os fenômenos. O uso de paradigmas tende a ser visto como “muleta”. Ao descrever bem a composição de um ambiente, o objetivo do pesquisador é se tornar um intelectual capaz de ajudar a ver as posições e encargos de cada agentes, para assim, de alguma maneira, auxiliá-los na resolução de controvérsias, problemas de organização, fazendo modificar as formas como os agentes veem as coisas. Portanto, o pesquisador procura adotar uma posição perspectivista e agnóstica, sendo que os temas e enfoques de pesquisa procuram também mudam. Buscam-se mais a descrição de ambientes do que de temas ou poderes, por exemplo.
Em relação ao “essencialismo” dos críticos que versam sobre a técnica, os textos de Lemos recuperam dois autores célebres: Heidegger e Ellul. Seus trabalhos pouco serviriam para a Teoria do Ator-Rede, pois, apesar de justificarem muito bem aos contextos históricos ou sociológicos, os conceitos que tais autores trabalham acabam se fechando em macros “esquemas” crítico-filosóficos sobre a técnica/tecnologia, sejam estes pessimistas ou otimistas. Virilio, Baudrillard, Debord e autores da primeira e segunda gerações da Escola de Frankfurt, e seus partidários ainda hoje, seriam os últimos a abusarem de sentenças “essencialistas”. A questão difícil vem a ser a respeito do diagnóstico de “essencialista” para os mais contemporâneos. Esses realmente produzem aqueles “esquemas”? Morozov, Janier, Keen, ou então Stiegler, são críticos e essencialistas, ou somente críticos? Aqui, podemos dizer que, até onde o presente autor leu os supracitados, nenhum estaria fazendo argumentos essencialistas, e todos são “sucessos” em suas pesquisas empíricas. (E façamos jus, em relação ao último quesito, também são “sucessos empíricos”, o arqueólogo de mídias Virilio e o pesquisador-observador-viajante Baudrillard, citados por Lemos). Tanto que se pode perguntar – e o texto de Rüdiger faz isso – se a questão realmente pertinente hoje é a questão da crítica, e não a do velho argumento de condenação do “essencialismo” … Certamente, para a maior parte dos críticos contemporâneos que versam sobre a cibercultura, o horizonte é desvendar um pouco as “ordens intrínsecas” da técnica, contudo evitando o erro de tratá-las como isoladas, o que seria o pecado dos “essencialistas”. Isso parece ser evidente – e talvez defina uma discussão pertinente hoje – quanto àqueles que se ligaram, uns mais fortemente outros menos, à tradição de Simondon, por exemplo, Deleuze-Guattari, Stiegler, Lazzarato e outros. Em relação a essa tradição, cabe aqui explicitar uma diferença crucial com Latour. Para Simondon, autor que pensa em termos de “transdução”, o olhar para a questão da individuação técnica é uma forma pensá-la enquanto fixação dos gestos humanos, “cristalização”, mesmo que temporária, tendo isso efeitos diversos nos ambientes (“tecnicidade”) – sendo “melhor ou pior” para as individuações psíquicas e coletivas, dependendo dos tipos de entropias e neguentropias vigentes. Para Latour, no entanto, autor pensa em termos de “tradução”, o olhar recai para os actantes não-humanos, que tende sempre à mediação, ao movimentos, criticando Simondon por ainda compreender a técnica como “objeto”, “coisa”, “sujeito”, e não como “advérbio” ou “verbo” – consideração esta que faz Latour eliminar de uma vez por todas os discursos críticos (“purificadores”) sobre dispositivos, objetos técnicos, máquinas, sistemas técnicos. Deixemos claro: ambos os autores, contudo, estão abertos aos contextos a partir dos modos de existência dos seres ou objetos, criticando, ambos, o “substancialismo”. Mas podemos desvelar agora algo crucial: um adotando uma posição muito mais perspectivista (Latour). Assim, parece haver uma consequência importante na forma como os textos de Lemos, a partir de Latour, observa a “purificação” (compreendida como o gesto de dar algum tipo de “substancialismo” aos fenômenos). As “purificações” dos críticos pessimistas Morozov, Keen e Lanier, autores que estariam na linhagem mais típica dos modernos, de “pouco empirismo”, presumiriam exacerbadas e antecipadas distinções e nivelações de poderes, instituições e valores, concluindo sobre um “todo assimétrico”; enquanto que, por exemplo, os modernos críticos otimistas Lévy, Jenkins e Johnson, também de “pouco empirismo”, presumiriam exacerbados e antecipados acordos, mediações, horizontalidade de poderes, instituições e valores, concluindo sobre um “todo simétrico”. Latour, por sua vez, estaria “no meio”, no espaço do antropólogo que observa, perspectiva e agnosticamente, tais roteiros empíricos “fracos” dos críticos pessimistas e otimistas, com suas marcas e diagnósticos apressados, abusando de palavras de ordem, chavões e enunciados políticos “mobilizadores”. O erro destes críticos estaria em sempre querer enxergar um “aquém” ou um “além” dos limites das redes sociotécnicas presentes.
Caso se entenda qualquer tipo de “purificação” como sinônimo de “essencialismo”, então as coisas realmente se complicariam para os críticos. Ora, críticos — pessimistas e otimistas — sempre buscaram esclarecer formas de estabilização, automatismos, cristalizações ou delegações nas redes sociotécnicas que duram mais tempo do que o “normal”. O crítico, afinal, não se abstém do julgamento ético-político, expondo, conforme o caso, um mundo de violência ou de justiça, de dominação ou de liberdade etc. (Mesmo críticos simondonianos ou deleuzianos, com suas sofisticações para tratar dos “dispositivos”, “sistemas técnicos”, “domínios sociais” e “domínios técnicos”, não escapariam: para Latour, que hipervaloriza mediações e hibridismos, o crítico seria sempre um “demônio simplificador da modernidade”).
Mas cabe perguntar: não teria sido o “hibridismo total”, entendido como “desterritorialização contínua”, o sonho de Deleuze-Guattari? Os reajustes, reformulações, desvios, dobras, desacoplamentos, o fim de um tempo que dura demais, produzindo hierarquizações, rigidez, vida arborescente? Se, para Deleuze-Guattari, o fim desse tempo seria o sonho de emancipação pela multiplicidade, para Latour isso é pura realidade — e até banalidade — no mundo contemporâneo.
Latour teria formulado a definição crítica mais sucinta do que significa ser moderno: aquele que está sempre produzindo e negando híbridos (purificação). Para escapar disso, buscou investir, como lembra Lemos, em “ultrapassar as fronteiras do senso comum entre signos e coisas” (p. 44, texto 1), entre representação e realidade empírico-material, entre ideologia e infraestrutura… O objetivo era não alimentar qualquer hipóstase de significados para as coisas; caso contrário, recair-se-ia em alguma forma de negação dos híbridos, os “quasi-x”, “quasi-y”. Influenciado por Latour, Lemos formula: “As infraestruturas técnicas são sempre pontuais, provisórias, sendo que as controvérsias ajudam a revelar o imbróglio que as constitui, ou seja, abrir as caixas-pretas e desnudar as redes até então estabilizadas” (p. 41, texto 1). A disposição intelectual pelo hibridismo seria, portanto, a meta mais importante da TAR (Rüdiger, provocativamente, afirma que isso evidenciaria uma “nova metafísica”… E não está sozinho. Ver, por exemplo, a entrevista de Latour a Carolina Marinda: “À métaphysique, métaphysique et demie: L’Enquête sur les modes d’existence forme-t-elle un système ?” [http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/140-TEMPs-MODERNES-SYSTEME.pdf]).
Abrem-se, enfim, entre os críticos e o perspectivismo latouriano, diferentes olhares e ênfases, com consequências epistemológicas e políticas.
Poder-se-ia, em primeiro lugar, ressalvar que a razão crítica, na maior parte dos autores contemporâneos citados por Lemos, não busca exatamente “negar as mediações”, mas, ao realizar o julgamento ético-político, identificar onde elas não ocorrem de forma democrática. Questão: explicitar a realidade que nega as mediações democráticas não seria diferente de negar as mediações em si? E, nesse caso, o problema estaria em um “fracasso empírico” ou na constatação de sua ausência (isto é, da mediação democrática)?
Bachelard observava que um conhecimento “novo” é sempre produzido contra um anterior. Isso talvez ajude a compreender por que, na disputa entre dois “programas de pesquisa” e na luta pela identificação das “anomalias” desses programas, o leitor se vê encurralado entre duas acusações.
Os críticos modernos diriam: apenas uma purificação radical, instrumental e essencialista, pode nos levar a acreditar que há humanos de um lado e instrumentos de outro. Já os acríticos amodernos inverteriam a ordem: apenas uma hibridização radical, abstrata e anti-essencialista, pode nos levar a acreditar que não há humanos de um lado e instrumentos de outro.
Lemos e Rüdiger não estariam, assim, forçando uma dicotomia, cada qual com seu anseio metafísico “purificador”?
É possível fazer algumas considerações finais, aproveitando elementos de ambos os lados. Diferentemente de Rüdiger, poderíamos argumentar que a questão dos híbridos em Latour cumpre, na verdade, um papel altamente material e real — e não abstrato por antecipar princípios epistemológicos. Diferentemente de Lemos, poderíamos notar duas problemáticas: (1) as acusações de “essencialismo”, “determinismo tecnológico” e “fracassos empíricos” pareceram mais pertinentes nos anos 1980, e não hoje; (2) é possível divergir de uma posição central de Latour, expressa em vários livros e sintetizada por Rüdiger: “a crítica nos põe no mau caminho ao nos afastar dos fatos em vez de nos fazer chegar mais perto deles; ela nos impede de dar nova vida a um empirismo com o qual poderíamos nos libertar da epistemologia moderna e suas dicotomias” (p. 128). Quanto ao “afastar dos fatos” ou ao “pôr no mau caminho”, já respondemos: isso não se deve à crítica em si, mas ao nível de compromisso científico dos pesquisadores. Quanto à crítica propriamente dita, sejamos diretos: ela é essencialmente dissensual, demanda a radicalização democrática (as verdadeiras mediações!) em um modo de vida capitalista que, paradoxalmente, gera a legitimidade política para tais litígios. (Sobre o assunto, ver O desentendimento, de Jacques Rancière).
O ponto inicial de divergência entre Lemos e Rüdiger, acreditamos, está em duas posições ético-políticas distintas no contemporâneo: a de responsabilidade e a de crítica. (A primeira, pouco esclarecida nos textos de Lemos; a segunda, insuficientemente tratada nos de Rüdiger). A partir daí, cada um acusa o fetichismo do outro: o abuso de empirismo e a miséria do iluminismo crítico (no caso do latourniano Lemos); a miséria do empirismo e o abuso do iluminismo crítico (no caso do teórico crítico Rüdiger).
Há, por exemplo, quem leia muito — o presente autor incluído — Deleuze-Guattari, Lazzarato, Stiegler e também Latour, levantando a pergunta: é possível trabalhar com redes sociotécnicas, adotar muitas posturas epistêmicas latourianas e, ao mesmo tempo, assumir uma atitude crítica? Cremos que sim, e sugerimos nestas notas que a tradição aberta pela epistemologia de Simondon pode constituir um caminho crítico “não-substancialista” hoje retomado por alguns autores.
O que parece certo — e vem sendo apontado enfaticamente por muitos intelectuais — é que a crítica contemporânea não pode pretender ressuscitar a “velha crítica”, onde ela ainda se encontra melancolicamente depositada. Ela deve, antes, encontrar “novas armas”, capazes de explicitar as realidades que negam as mediações democráticas e, ao mesmo tempo, alimentar novas estéticas de vida e de mundo possíveis.