[Artigo] TEMPORALIDADES EM JOGOS DIGITAIS: uma breve arqueologia

TEMPORALIDADES EM JOGOS DIGITAIS:

UMA BREVE ARQUEOLOGIA

Autores:

Ednei de Genaro, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.É Doutor em Comunicação (UFF). E-mail: ednei.genaro@yahoo.com.br

Gustavo Denani, mestre em Meios e Processos Audiovisuais (USP). E-mail: gustavohdenani@gmail.com.

Artigo apresentadonao Eixo Temático 16 – Games / Processos de aprendizagem / Cognição do IX Simpósio Nacional da ABCiber.

Download do paper publicado no evento: 2016 – Artigo – Temporalidades em jogos digitais’ (Abciber)

Resumo

Procura-se neste artigo explorar a produção de temporalidades em jogos digitais, fazendo uma breve arqueologia de algumas tecnologias que condicionam o acesso ao jogo e o modo como o jogador permanece nele. No lugar de se deter sobre um jogo específico, um gênero ou um aparelho onde eles são rodados, tem-se como objeto as pequenas tecnologias que permeiam jogos digitais, tais como fichas em fliperamas, o botão pause e a memória RAM em cartuchos de consoles domésticos, e mecânicas de progressão em jogos free to play, sendo que estas últimas terão maior ênfase na análise proposta. O modo como elas se projetam sobre o jogador não se dá sob uma ordem discursiva ou simbólica, mas a partir de processos que condicionam a relação estabelecida com a máquina. Relação esta que absorve- se ao cotidiano, produzindo novos hábitos, novas sociabilidades, novos sujeitos. No que diz respeito aos jogos mobile, pretensamente gratuitos, os modos de monetização engendram lógicas perversas acerca do dinheiro, e sobretudo do tempo do público-alvo. Dessa forma, “alvo” não é somente jargão publicitário, mas termo sintomático do modo predatório pressuposto por esse modelo de negócios.

INTRODUÇÃO

Tomando como panorama investigativo a arqueologia de mídias, propõe-se neste artigo uma abordagem sobre tecnologias que modulam o tempo em jogos digitais. Pensa-se, junto com Jussi Parikka, em “um materialismo de processos, fluxos e signos ao invés de ‘somente’ hardware e máquinas” (PARIKKA, 2011, p. 55), sendo este um dos méritos quando o escopo se dá sob o crivo de uma arqueologia das mídias. Propõe-se uma alternativa à abordagem que busca remontar sua história, levemente bifurcada mas predominantemente linear, compartilhada pelo discurso publicitário, mídia especializada e consumidores ávidos de entretenimento, que recaem sobre a evolução incremental das tecnologias em jogos digitais. Esses avanços, mesmo resultando em maior sofisticação na experiência do jogador, como por exemplo em imagens com maior resolução, interação simultânea entre jogadores de qualquer parte do mundo conectada à internet e execuções de cálculos complexos para o funcionamento de regras em uma partida, passam ao largo de pequenas lógicas que condicionam o modo pelo qual a atenção e a rotina do jogador é capturada.

Levar em consideração o tempo do jogador como algo em disputa entre publishers ressalta o caráter eminentemente micro-político4 em evidência na contemporaneidade. As diferenças entre hábito e vício, ou entre atividades casual e hard core dependem do quanto o tempo é intensivamente e extensivamente gasto. De fato, a própria possibilidade de imaginá-lo como algo a ser gasto ou investido conota o seu caráter produtivo, seja em termos de riqueza e valor, seja em desejo e subjetividade. Longe de desconsiderar o objetivo que subjaz a produção de qualquer jogo digital comercial, o lucro, acredita-se que tempo é algo ao mesmo tempo percebido e produzido pela relação com a teia de tecnologias que o sujeito se deixa capturar. As que interessam aqui muitas vezes têm uma única e simples função, como por exemplo um ficheiro de fliperama, mas os efeitos que elas produzem são difusos e alheios ao propósito pelo qual foram designadas. Tais efeitos incidem tanto no game design que estrutura um jogo, quanto na maneira pela qual o jogador vai se investir em seu entretenimento, sendo, via de regra indiferentes a um determinado gênero ou tipo de jogo. Como será argumentado adiante, trata-se do inverso: são elas que podem restringir ou estimular uma determinada exploração estética e lúdica de um jogo digital. Como já foi dito, diferentemente das gerações de hardware que sucessivamente cedem espaço para as mais novas e potentes, compondo etapas linearmente evolutivas, as tecnologias a serem tratadas neste artigo nunca são totalmente ultrapassadas, mas manifestam-se enquanto tendências, submergindo em determinado momento para mais tarde emergir novamente.

Daí a possibilidade em abordar máquinas de natureza tão heterogêneas, e a princípio contextualmente tão distantes entre si, como por exemplo uma ficha e uma linha de código. Para tanto, não se pensa em uma evolução linear das tecnologias empregadas em jogos digitais e suas tendências, mas em um contínuo de técnicas cujo surgimento, desaparecimento e modificações tornam-se aparentes de acordo com determinados modelos de negócio e disposições do público em questão. Não se trata, portanto, necessariamente de tecnologias que dão visibilidade aos produtos de empresas como Microsoft, Sony ou Nintendo. Serão enfatizados fragmentos de tecnologias que, apesar de serem distantes tanto no modo como funcionam quanto nos propósitos pelos quais foram implementadas, têm uma proximidade no que diz respeito aos efeitos que exercem sobre o jogador. Mais precisamente, trata-se aqui de efeitos sobre experiência de temporalidade de tais tecnologias, que incorporam-se sutilmente no cotidiano do jogador pelo seu uso sub-reptício.

Incorporação é aqui tomada em seu amplo sentido: ao passo que ela é absorvida na memória e nos afetos do jogador, uma tecnologia anexa-se ao seu corpo, seja como prótese, seja como parasita, ou algo no meio. Desnecessário dizer que essas mudanças são sempre algo em andamento, uma vez que diferentes hábitos e práticas rearranjam o sujeito em seus aspectos cognitivo e motor. No que diz respeito ao tempo, tal rearranjo implica nas capacidades produtivas e perceptivas que emergem da relação com uma tecnologia, de modo que essa dimensão deixa ter o fluxo rígido marcado em sistemas como o relógio de quartzo ou a translação da Terra. É claro, não se sugere que jogadores-usuários de jogos digitais produzam distorções temporais quando manipulam suas máquinas, mas que tempo passa a ser algo passível de divisões, recombinações e acumulações.

Assim, reduções como “perda de tempo” ou “passa-tempo”, apesar de submeterem jogos digitais a um juízo de valor em relação a outras atividades e mídias, têm um sentido residual importante para a análise que se propõe. Para Kristoffer Gansing, “mídias operam de acordo com uma micro-temporalidade que, ao invés de histórica e discursiva, é processual e baseada em eventos”(GANSING, 2011, p. 97). Em outras palavras, o arranjo entre a luz que perpassa quadros de um filme que se move no projetor de uma sala de cinema é um exemplo do movimento de uma realidade específica dessa mídia. Entender o funcionamento dessa mídia e brincar com os limites dessa realidade implica no esforço de operadores, como foi o caso, por exemplo, de Dziga Vertov. Nada mais adequado para uma abordagem sobre jogos digitais, uma vez que seu apelo está principalmente na relação usuário-máquina mobilizada pela sua teia de processualidades.

1 – Modelos de negócios e suas tecnologias

Para fins de objetividade na argumentação deste artigo, optou-se por uma divisão arbitrária e generalizante de três momentos em que articulou-se um determinado modelo de negócios com uma tecnologia correspondente. Apesar de oferecer um panorama inicial, tal divisão não esgota as diversas ramificações e especificidades que o mercado de jogos digitais assumiu ao longo dos anos.

1.a. – Fliperamas e suas fichas

Arcades

A primeira manifestação de comercialização de jogos digitais e da circulação destes como entretenimento de massa deu-se com o advento dos fliperamas, que compreendem de uma só vez o aparato audiovisual (monitor e caixas de som), os componentes de processamento e armazenamento de informação, o(s) controle(s), por onde o jogador insere seus comandos, além dos dispositivos que recebem fichas ou créditos do jogador. Como se sabe, tratam-se de máquinas grandes e caras, cada qual com um único jogo, tornando-as inviáveis para que o consumidor final as comprasse, tampouco tê-las em suas casas. Elas ficam ligadas o tempo todo, enquanto o estabelecimento que as abriga estiver aberto. Pode-se jogar nelas quando o jogador insere fichas, sendo que cada uma delas garante a oportunidade de disputar partidas, geralmente em forma de “vidas” ou “continues”. Em jogos onde é possível enfrentar outro oponente humano, inserir fichas é o meio de desafiá-lo, de modo que o derrotado perde sua vez de jogar para o vencedor.

Apesar dessa descrição ser trivial, pode-se deduzir algumas generalizações que norteiam a respeito do modo como se dá a relação entre usuário e jogo em fliperamas: a) se as fichas garantem uma oportunidade de se jogar, até que o jogador seja derrotado ou derrote o jogo, quanto mais rápida essa sessão durar, mais fichas tendem a ser vendidas. Daí, por exemplo, rounds de 99 segundos em jogos de luta ou a inflexível contagem regressiva em jogos de corrida; b) salvo exceções, esses jogos estão disponíveis somente em horário comercial, quando os shopping-centers, bares e fliperamas estão abertos. Joga-se, portanto, quando a cidade está acordada, e mais precisamente, no tempo em que se está livre do trabalho ou da escola; c) isso revela também outro fator desses lugares, o de que trata-se de espaços abertos para a livre circulação de consumidores. Jogadores encontram-se pessoalmente nesses lugares, e mesmo sem se conhecerem previamente, podem jogar juntos.

Levando em consideração os ritmos delimitados entre o aberto e o fechado dos estabelecimentos com fliperamas e entre as partidas com seu início e fim, a ficha é um objeto com importância central. Em conjunção ao ficheiro conectado ao sistema da máquina de fliperama, ela estabelece um temporalidade indivisível para o início de uma nova partida. O mesmo pode ser dito a respeito do conteúdo do jogo: ele está inteiramente pronto para ser descoberto pelo jogador, desde que este resista à progressão de dificuldade. Ela torna literalmente palpável uma rígida equivalência entre um determinado valor de dinheiro e o acesso ao jogo. Daí também a tendência de jogos que desafiam a capacidade cognitivo-motora dos jogadores, exigindo reflexos rápidos, não sendo rara a memorização dos eventos do jogo, pressupondo assim uma repetição de tentativa-e-erro, e claro, muitas fichas consumidas nesse processo.

Assim, o modelo de negócios em torno de um fliperama acaba por estabelecer distâncias a partir de uma dupla temporalidade, pois a disponibilidade das máquinas depende do horário de funcionamento dos estabelecimentos, alheios à vontade do jogador, além das fichas que a máquina engole, pressupondo partidas relativamente curtas, e com o progresso sempre voltando à estaca zero ao fim de uma sessão de jogo (exceto quando o jogador insere suas iniciais na tela de high score). A outra distância, mais óbvia mas não menos pertinente, é de ordem espacial. O jogador deve se deslocar para fora de casa, da escola ou do trabalho, a fim de que tenha acesso a essas máquinas e jogar. Circunscreve-se, portanto, esses lugares com uma estrita finalidade, marcados pela oposição entre onde se mora e onde se entretém, organizando disciplinarmente a experiência do jogador (pois não depende apenas da vontade do jogador, mas também do funcionamento da casa de fliperama -cujo modelo de negócios depende da circulação de fichas-, assim como da posse de dinheiro proporcional ao número de partidas que este pretende jogar).

1.b. – Consoles: controle do tempo e da memória

consoles

Apesar de não haver uma distância contextual grande o suficiente, nem um salto tecnológico substancial para separar fliperamas e consoles em termos de gerações, a popularização e consolidação dos consoles foram posteriores às dos fliperamas. Isso não significa que estes tornaram-se obsoletos, mas que a fruição de jogos digitais abre-se para novas possibilidades quando passam a habitar novos ambientes e a transitar de novas maneiras.

A história individual das inovações a serem apresentadas a seguir pertencem a uma época em que era um desafio fazer da tecnologia militar algo palatável para o consumidor doméstico. Diversos atores, como por exemplo Jerry Lawson, Wallace Kirschner e Lawrence Haskel, apesar de não terem se imortalizado em biografias cinematográficas tal como seus contemporâneos, foram verdadeiros gênios e pioneiros na consolidação dos consoles. Contudo, não se pretende deter-se nos meandros entre invenção e inventor, mas explorar algumas das consequências que pequenos adventos como o botão pause e a memória estática de acesso randômico tiveram sobre a temporalidade do jogador. Trata-se de características avulsas que, apesar de serem dadas por garantidas em praticamente qualquer jogo digital nas últimas duas décadas, foram implementadas gradualmente e trouxeram mudanças sutis e profundas sobre o modo como se joga. O próprio fato de elas passarem ao largo de uma discussão e análise de jogos digitais, como se fossem elementos constitutivos óbvios destes, reitera sua absorção irreflexiva e a necessidade de maior detimento.

Portanto, pouco importa se a separação entre o software onde subjaz as informações de um determinado jogo e todo o resto da máquina que o processa foi fruto de um salto tecnológico ou se foi mera execução de uma estratégia de mercado. Identificar uma causa primeira diz muito pouco quando trata-se de fenômenos heterogêneos e complexos, sendo assim mais interessante explorar seus efeitos. Foi a partir de meados dos anos 80 que os aparelhos capazes de transformar televisores em videogames passaram a se proliferar nas lojas e a fazer parte das residências de quem podia comprá-los.

A capacidade de interromper o andamento de um jogo a partir de um botão no controle ou joystick foi introduzida na criação de Jerry Lawson, o Fairchild Channel F. Chamado de “hold”, esse botão não apenas pausava uma partida, mas também abria opções para a mudança de parâmetros tais como a velocidade do jogo. De certa maneira, trata-se do ancestral de outros botões e funcionalidades como o pause, start, select, menu, options, etc. Para além das utilidades mais práticas (mas não menos importantes), como a possibilidade de ir ao banheiro ou atender ao telefone sem prejuízo ao desempenho do jogador, ressalta-se o ineditismo na possibilidade de negociar os termos do ritmo em que se dá a interação com a máquina. Jogos em que o tempo transcorre initerruptamente, em “tempo real”, passavam a estar alheias ao tempo da vida jogador, desde sua dimensão fisiológica (como ir ao banheiro) até social (atender ao telefone, afazeres domésticos, etc). Isso se desdobra também em novas possibilidades de exploração estética e lúdica dos jogos, uma vez que a configuração de um jogo pausado não se limita somente a critérios externos à realidade do jogo, mas passa a se integrar ao próprio esquema de regras interno dele, como por exemplo a visualização de informações do avatar, o manuseio de itens que ele carrega, e sua posição no mapa.

Mais do que isso, a possibilidade controlar o fluxo dos processos executados no jogo implica na negociação do seu tempo, tornando mais porosa a fronteira entre o tempo deste (seus processos, a execução de seus algoritmos) e o do jogador, perpassado por pensamentos, afetos e sensibilidades.

Enquanto nos fliperamas o ritmo do jogo é ditado unilateralmente pela máquina, nos consoles a possibilidade da pausa coloca esse ritmo sob a prerrogativa do jogador. A separação entre consoles e os jogos, propriamente, que passavam a ser encapsulados em cartuchos ROM (ou fitas, ou CDs, dependendo da região e da época em questão) traz consequências acerca dos lugares onde se joga e o ritmo das sessões de jogos. A mais óbvia é a de que não é mais necessário sair de casa para um lugar com fliperamas. No lugar disso, bastava ao dono de um console comprar um cartucho ou alugá-lo. As visitas fortuitas às locadoras e lojas especializadas passavam a ser uma alternativa para se ter acesso a jogos, enquanto o lugar de fruição deixava de ser público, para ser a sala, o quarto, ou qualquer outro cômodo que comportasse a televisão, o console e seu jogador. Passava-se, portanto, a jogá-los em lugares privados, de modo solitário ou com um círculo mais restrito de pessoas, como amigos ou familiares.

Sem a limitação das fichas ou de estranhos para disputar sua permanência no jogo, vidas e “continues” deixam de ter a função monetizante dos fliperamas. Isso não quer dizer que a progressão linear de dificuldade deixa de fazer sentido ou é abandonada. Pelo contrário, ela permanece até hoje em grande parte dos jogos lançados, de modo que o desafio de um jogo ganha novos sentidos. Jogando-se Super Mario World (Nintendo, 1990) em um console SNES o único risco quando não restam mais vidas para o encanador italiano recomeçar sua jornada pela fase é o de recomeçar o jogo desde o início. A penalização em não corresponder às regras do jogo deixava de ser convertida em fichas (ou seja, dinheiro), para ser sentida apenas no tempo de progresso perdido. Além disso, tornava-se possível a configuração de diversos parâmetros acerca do jogo, como o nível de dificuldade, o número de vidas e o tempo de duração de uma fase ou round. Assim, a premissa de partidas rápidas deixa de ser a única possível, e jogos com narrativas e mecânicas que exigem um investimento de tempo contínuo começam a aparecer para consoles e computadores. Ressalta-se também que, isolados da paisagem sonora poluída que é característica dos estabelecimentos com fliperamas, passa-se a explorar em consoles e computadores pessoais expressividades até então inviáveis, a partir da articulação entre arquitetura e iluminação, e ruído e silêncio, como é o caso de Doom (ID Software, 1993) e Myst (Cyan Worlds, 1993).

Não por acaso, é também nessa época que surgem jogos do tipo Adventure e Role- playing games, com narrativas que duram horas, mas também com quebra-cabeças impossíveis de serem resolvidos em poucos minutos. Jogar começa a se desdobrar em uma atividade contemplativa, lenta. Com mais tempo para a apreensão de uma determinado sistema de regras, estes passam a ser mais complexos, para além da lógica do hitbox presente desde jogos como Space Invaders (Taito, 1978) e Double Dragon (Taito, 1988). Se desviar de ataques inimigos e ter uma boa noção de balística são competências exigidas até hoje, elas passam a dividir espaço com outras mais sutis e persistentes, como por exemplo o desenvolvimento quantitativo de atributos (pontos de vida, força, inteligência) de um avatar, assim como os equipamentos e acessórios que ele encontra no decorrer de uma aventura. Isso não seria possível se não fosse pela implementação de outra tecnologia, a memória estática de acesso randômica (static random-access memory- SRAM).

Enquanto nos fliperamas o tempo das partidas pode ser generalizado no curto intervalo entre o começo e o fim de alguns minutos, salvar o progresso na memória RAM do cartucho (e dos cartões de memória avulsos que vieram depois) estende a duração de uma partida, às vezes indefinidamente, como é o caso dos simuladores de cidade. É precisamente no ato de armazenar o desempenho de seu usuário que jogar deixa de ser apenas um dispêndio, como é nos fliperamas, para ser também um investimento. Assim, com a possibilidade de salvar o progresso percorrido, uma partida não está condenada ao fim quando alcança-se o estado de jogo “game over” ou desliga-se o aparelho, de modo que seus resultados deixam de ser auto- contidos. É nela que são gravadas, por exemplo, o progresso que Link, em The Legend of Zelda (Nintendo, 1986), faz em sua jornada.

Nos jogos em cartuchos, o progresso, seja ele em fases mais avançadas ou em um avatar com atributos e acessórios mais poderosos, passa a ser um “custo afundado”, uma vez que o tempo investido para alcançar o estado de jogo desejado é irrecuperável. Nos fliperamas, o que sobra do esforço empreendido pelo jogador está justamente fora do jogo, na satisfação de superar o jogo e no reconhecimento que os outros têm da proeza alcançada. Mesmo a score screen, uma manifestação germinal de uma memória RAM, só é relevante quando se sabe a quem pertence as iniciais referentes à pontuação.

Já no caso dos consoles dotados de memória RAM, e por extensão, os computadores pessoais, gravar o estado do jogo dota-o de um caráter contínuo e cumulativo, latente para ser retomado após alguma interrupção. Assim, enquanto nos fliperamas o subproduto da interação com a máquina encontra-se apenas do lado do jogador, com seus reflexos a raciocínios apurados na medida em que ele incorpora os algoritmos do jogo, com a memória RAM em

cena, ela acumula outro subproduto, dessa vez em forma de dados. No auge do modelo de negócios que compreendia a venda de consoles domésticos relativamente baratos para o lucro vindouro com a venda dos jogos, salvar e pausar o jogo eram acréscimos que visavam tão somente uma fruição mais confortável e rica dos jogos, sendo assim neutros se comparados à instrumentalização que viriam a ter no contexto atual de jogos freemium.

Em suma, considerando somente esses dois adventos, a saber, a pausa disponível nos joysticks e a memória RAM nos cartuchos, há uma mudança radical acerca da temporalidade que emerge dessa interação. Ao ocupar a casa do jogador, a prerrogativa de gastar seu tempo jogando é inteiramente dele, e não mais do horário de funcionamento do fliperama, passando assim a permear (e a criar) lacunas no cotidiano para tal fruição. O recurso da pausa permite que tais lacunas sejam quebradas em tamanhos menores ou suficientes para se encaixarem nas pequenas atividades que entremeiam a vida do jogador, interrompendo uma sessão de jogo. A memória RAM, por sua vez, rearranja essas lacunas, colocando-as em continuidade quando uma sessão de jogo passa por interrupções mais profundas, como quando se desliga o console ou o jogador atinge o estado de jogo “game over”. Pausar o jogo nada mais é que um complemento mesmo que contemporâneo aos fliperamas, e não raro disputando a atenção de seu usuário com eles, o console doméstico representa uma diferença radical com o modelo apresentado nos fliperamas.

1.c. – Jogos caros, gratuitos e na palma da mão

Lan

O modelo de negócios que compreende jogos do tipo freemium resulta de adaptações e estratégias de sobrevivência que o mercado de jogos digitais se viu obrigado a adotar frente a mudanças sistêmicas advindas das tecnologias que foram se consolidando a partir de meados dos anos 1990. Tomando apenas como exemplo a comunicação entre computadores, desde as comunicações TCP/IP, as redes de área local LAN até os servidores que compõem a Internet, seria possível uma análise extensa sobre os caminhos tomados em jogos com interação multijogadores, desde o game design adotado até a formação de hábitos, comunidades e culturas dos jogadores. Isso evidencia o caráter sistêmico composto por agentes humanos e não-humanos (ou seja, publishers, tecnologia touch, comunidades em fóruns, modeladores 3D que moram em países em desenvolvimento, servidores, e a lista aumenta a cada novo agenciamento) afetando tanto a produção e distribuição, quanto o mercado consumidor. A proliferação da pirataria e de comunidades de modders são dois sintomas dos efeitos advindos das redes de comunicação entre computadores e seus usuários. Publishers e desenvolvedoras

deixam de ser os únicos agentes capazes de produzir conteúdo e distribuí-lo. Pode-se dizer que parte das inovações em game design respondem a essas mudanças, de modo que mecânicas de progressão de dificuldade, disponibilidade de ferramentas para o jogador agir em uma partida e modos de se disputar e cooperar surgem, ascendem e decaem de acordo com as tecnologias disponíveis e modos de monetização em voga.

Assim, da mesma forma que tecnologias como a do ficheiro, memória RAM e o botão pause não estão circunscritas a um determinado tipo de jogo ou de plataforma de hardware, as de monetização em jogos freemium estão pulverizadas em diversos tipos de jogos e plataformas. No entanto, acredita-se que elas têm maiores sinergias com aparelhos mobile em razão de especificidades que caracterizam esses aparelhos e ajudam a explicar sua disseminação. Por isso, tal como foi feito com fliperamas e consoles, cabe neste ponto delinear tais características.

Se dos fliperamas para os consoles houve um movimento em direção ao espaço privado do jogador, dos consoles e computadores pessoais para aparelhos móveis esse movimento se dá em direção ao corpo de usuário. Mais do que estar sempre junto dele, esses aparelhos estão sempre ligados e conectados à internet. Além disso, se comparado aos aparelhos que o antecederam, seu usuário é estimulado sensorialmente de outras formas, e muitas vezes sem sua requisição. Assim, não é incomum o dia de um usuário de smartphone ser pontuado por alarmes em forma de som e vibração, avisando-o de atualizações em redes sociais, emails e mensagens recebidos, e claro, de eventos nos jogos. Ainda outra característica digna de nota é a capacidade que seu usuário tem de realizar diversas tarefas ao mesmo tempo. Uma partida de Candy Crush pode ser jogada enquanto ele espera um email, para ser interrompida por um telefonema e ser retomada depois que anotar alguma informação em seu aplicativo de notas. Um usuário de smartphone tende a não ter tempo ocioso, pois a espera sempre pode ser preenchida com outras atividades disponíveis nos aplicativos. De fato, um caráter idiossincrático desse aparelho (e em certa medida, das sociedades que vivem imersas em redes digitais e gadgets).

Cabe notar também que a conjunção da tecnologia touch, aliada a portabilidade e capacidade de computação permitem seu uso em locais e situações onde muitas vezes qualquer atividade seria inviável, como no espaço minúsculo de um vagão de trem lotado ou nos interstícios de tempo ocioso que fazem parte de uma determinada rotina de trabalho. É claro, não se busca aqui equivaler uma mesma atividade no contexto de um usuário de smartphone com contextos sem smartphones ou outros aparelhos e infraestruturas. A escuta de uma música em uma vitrola com seu aparelho estéreo em uma sala de estar é totalmente

diferente se comparada a uma escuta feita via fones de ouvido in-ear em um ruidoso vagão de metrô. O mesmo vale para quaisquer outras atividades como ler, conversar e jogar: os verbos continuam os mesmos, mas o sujeito que resulta dessa atividade certamente é outro.

Tal mobilidade está fortemente ligada à ubiquidade da internet. Desde que o usuário tenha acesso a uma rede Wi-Fi ou a uma conexão 3G, ele sempre está a alguns instantes do servidor para o qual ele pode requisitar informações como sites, músicas ou jogos. Ressalta-se aqui a influência disso em dois aspectos: primeiro, de que o jogador tem à sua disposição uma quantidade de jogos sem precedentes para serem legalmente baixados e jogados, mesmo considerando apenas os gratuitos; acesso e mobilidade mais fluídos permitem novos meios de monetização, que, por sua vez, passam a extrair valor do jogador de modos mais sutis. O que há de singular nesse modelo de negócios é essa extração não ser feita exclusivamente em termos de dinheiro, mas da captura dos gestos e hábitos do jogador, transformados em metadados e acumulados em Big Data. Ressalta-se também o caráter complementar desses dois valores, os metadados e o dinheiro, uma vez que a captura daquele, ao mapear tendências do comportamento de seu usuário-consumidor, produz ferramentas mais eficazes para a extração do segundo.

Dessa forma, a análise feita a seguir buscará explicitar algumas dessas ferramentas de extração, que, de modo concomitante, manifestam-se em uma temporalidade específica.

2 – SimCity: Administração contemplativa

Simcity

A análise do objeto em questão interessa colocando-o em comparação com suas versões nas plataformas que o antecederam. Trata-se de SimCity Buildit (Electronic Arts, 2014), a versão mobile do famoso simulador de cidades. Em sua versão original, o escopo do jogo gira em torno da administração de uma cidade. O jogador, no papel do prefeito, é responsável pela delimitação do território em zonas (residencial, comercial, industrial e agrícola), provendo os elementos básicos de infraestrutura (energia elétrica, água, ruas e estradas). Realizados esses procedimentos, a cidade começa a florescer, com casas, indústrias, carros circulando, assim como a renda obtida pelo imposto cobrado de seus moradores. Assim, uma alocação ótima de recursos permite ao prefeito investir mais dinheiro em projetos urbanos mais sofisticados, de modo que não há necessariamente um objetivo final no jogo, mas sim uma fruição contínua, acompanhando a lógica bottom-up da cidade. Levando em conta a descrição feita anteriormente acerca do tempo do console, SimCity beneficia-se das disposições dadas por essa plataforma: joga-se sozinho, dispõe-se do tempo que o jogador

considera necessário para administrar a cidade, inclusive pausando e salvando uma sessão de jogo.

É interessante notar que nas versões mais antigas de SimCity o único recurso possível de ser acumulado é dinheiro, seja ele recolhido de impostos, seja advindo de acordos de cooperação feitos com cidades vizinhas, que são parte dos algoritmos do jogo. No entanto, mesmo dispondo de quantia vultosa de dinheiro, uma cidade de sucesso depende do esforço do jogador em distribuir adequadamente as zonas, investir dinheiro nas infraestruturas necessárias, visando sinergias que melhorem os indicadores de administração. O tempo de espera para as decisões surtirem efeito não é negociável. Isso quer dizer que ele flui de maneira linear e uniforme (pode-se acelerar o tempo, mas esta afirmação continua válida, dado que os eventos do jogo também se aceleram, exigindo maior rapidez de resposta por parte do jogador). A mecânica central de SimCity, desde sua aprendizagem até seu domínio, exige de seu jogador tentativa-e-erro, e sobretudo, paciência.

2.a. – Administração ansiosa

Apesar de ter a mesma premissa das versões anteriores, SimCity Buildit traz uma experiência completamente diferente. O crescimento emergente da cidade cede lugar a um planejamento mais modular, inserindo uma residência de cada vez, o que implica na repetitiva tarefa de acessar o menu de construções residenciais, escolher o tipo de residência desejada e arrastá-la exatamente no lugar desejado. As condições para que um bom planejamento ocorra ainda estão atreladas ao posicionamento entre residências, serviços públicos e poluição industrial. Tal posicionamento, no entanto, passa a ser de maneira individual, construção-por- construção. Cada residência, fábrica e outras construções são escolhidas em um menu com modelos individuais e específicos, em oposição ao surgimento randômico delas pela mecânica de zoneamento das versões anteriores. O destrancamento de construções mais avançadas se dá pela progressão de XP, ou seja, pontos de experiência dados ao jogador quando ele avança as residências e faz upgrades delas na cidade, tornando-as capazes de abrigar mais moradores.

Dinheiro continua sendo a “matéria criadora” principal para que se faça investimentos na cidade. No entanto, o jogador de SimCity passa a lidar com dois tipos de moedas: Simoleons e Simcash. Se o fluxo aos simoleons é mais abundante e perene, sendo a prerrogativa para que se construa, o Simcash revela a principal mecânica de captura do desejo do jogador: de acordo com o próprio tutorial disponível na página eletrônica da Electronic

Arts, “ele pode ser usado para ‘lubrificar’ as mãos dos empreiteiros (entre outros) para acelerar um pouquinho as coisas”5.

Apesar do jogador começar com uma quantia modesta, e ser dada a ele quando atinge determinados marcos de progresso, ela é consideravelmente mais escassa que os Simoleons. Não por acaso, pode-se comprar Simoleons por Simcash, e pode-se comprar Simcash em troca de dinheiro real. Essa hierarquia entre moedas e a irreversibilidade das trocas (uma vez que não se pode trocar Simoleons por Simcash, muito menos Simcash por dinheiro de verdade) evidencia o escopo de SimCity BuildIt e de jogos freemium em geral: o de auferir valor do dinheiro e do tempo do jogador. Menciona-se também que, além dessas duas moedas do jogo, para o jogador construir casas, serviços como polícia e bombeiros, entre outros, ele deve dispor desde materiais brutos como madeira e pregos, até vidros, pás e martelos. A produção e coleta destes são feitas manualmente pelo jogador, em fábricas que vão sendo destrancadas na medida em que o jogador progride e ganha XP, e dependendo do grau de sofisticação do material, a produção pode durar desde alguns minutos até algumas horas. Tal espera, é claro, pode ser mitigada mediante o pagamento de Simcash.

Não é o escopo deste artigo deter-se na ética de um game design que se apresenta ao jogador como gratuito6, para lentamente deixá-lo com a alternativa infernal entre investir sub- reptícia e incrementalmente o seu tempo, ou gastar quantias vultosas de dinheiro7. Interessa, isso sim, a temporalidade que esse modelo de monetização produz sobre o jogador. Tal como a ficha submete a diversão sob o ritmo do trabalho-descanso, e a articulação entre pausa- SRAM torna mais porosa a fronteira entre tempo do jogador e tempo do jogo, um dos efeitos da monetização em jogos freemium para a plataforma mobile pulveriza sua lógica e seu apelo para uma escala menor, de modo que um jogador de SimCity Buildit em uma posição ambígua de nunca estar plenamente jogando, ao mesmo tempo que nunca está parando de jogar. O tempo de espera entre a realização de um e outro objetivo, e os avisos que o jogador recebe em seu aparelho quando esses e outros eventos são concluídos ou em disponibilidade, o colocam em uma espera constante para voltar ao jogo e continuar construindo sua cidade. Diferentemente das versões nas plataformas anteriores, o jogador de SimCity Buildit é avisado em seu smartphone ou tablet como se estivesse recebendo uma mensagem de alguém, chamando-o a voltar ao jogo para não perder tempo em produção ociosa, ou seja, em ser produtivo.

3 – Considerações finais

A partir da escavação nesse específico meio tecnológico, pôde-se observar uma reciprocidade entre inovações tecnológicas e as maneiras mais eficientes em extrair valor a partir delas. Tal extração não é determinada tecnologicamente, tampouco pela resultante de forças compostas pelos agentes do mercado de jogos digitais, mas pela tensão entre a emergência de novas subjetividades que uma apropriação tecnológica produz e a canalização do desejo dos jogadores para determinados usos dessas tecnologias. Assim, se em um primeiro momento novas tecnologias têm um potencial desestabilizador em relação aos hábitos e práticas então vigentes, ela é paulatinamente instrumentalizada para que a única relação dela com seu usuário restrinja-o ao papel de consumidor. É a partir dessa tensão que surgem novas formas de se trabalhar sobre o tempo. Mais do que uma experiência subjetiva sobre algo que é supostamente dado e imutável, acredita-se que os três momentos descritos neste artigo ilustram maneiras como ritmos e frequências são modulados, produzindo temporalidades distintas.

Em um escopo mais amplo, modulação passa a ter um papel importante para a compreensão das diferentes relações que se pode assumir enquanto um jogador-usuário. Modulação, segundo Gilbert Simondon, “consiste no estabelecimento de um regime energético(…), moldado de maneira contínua e perpetualmente variável”(SIMONDON, 2005, p. 46-7). Se para o filósofo francês está em questão uma ontologia sobre os processos técnicos que envolvem matéria e energia, acredita-se ser possível estender essa reflexão para o cruzamento entre as temporalidades humana e maquínica. Pois se a primeira envolve inicialmente ritmos fisiológicos, ciclos agrários e rotinas socialmente convencionadas, e a segunda está embebida de rotações por minuto dos motores e ciclos por instrução dos processadores, não se trata de tomá-las enquanto categorias independentes. O funcionamento de um corpo humano, por exemplo, é entrelaçado de técnicas e tecnologias que regulam suas

necessidades, desejos e potencialidades, da mesma forma que é impensável uma tecnologia alheia a uma política ou cultura a qual seus usuários estão investidos. Um corpo, portanto, nunca está acabado, mas sempre em processo, sempre afetando e sendo afetado por outros corpos, por outras forças.

Pode-se notar nos três momentos expostos no primeiro ponto deste artigo um movimento ambivalente sobre o corpo do usuário-jogador: ao mesmo tempo que os aparelhos por onde rodam os jogos aproximam-se dele, há uma abertura de contextos que proporcionam uma especialização da fruição e mais espaços para se jogar. Assim, se o frequentador de fliperamas tem apenas esse tipo de lugar como oportunidade de jogo, o usuário de consoles passa a frequentar os lugares que vendem e alugam jogos, na sua casa e na casa de seus conhecidos o lugar da fruição. O usuário de aparelhos mobile, desde que com acesso à internet, transita em qualquer lugar pelas seções dos servidores de onde ele baixa seus jogos. Dessa forma, modulação não está apenas em um momento específico de relação com um jogo digital, mas em toda a sua experiência acumulada nessa atividade, podendo incluir desde jogos digitais no sentido mais tradicional, mas também suas corruptelas e variações, como gamification, advergames, serious games, etc. Para Yuk Hui,

a lógica da modulação não opera somente por infraestruturas tais como redes, mas ao invés incorporado em todos os tipos de dispositivos (para fins de coleta de dados, recomendação, restrição). Isso significa que na medida em que a digitalização permeou-se em diferentes instituições (sejam elas empresas locais ou internacionais, organizações governamentais ou não-governamentais), ela fez da operação de algoritmo central a qualquer forma de governança. (HUI, 2015, 85).

Enquanto um consumidor de signos e produtor de informação sobre si mesmo, uma mudança no suporte material e na infraestrutura implica em mudanças sobre os ritmos que se estabelece junto com os jogos. Um jogador brasileiro nascido nos anos 1980, por exemplo, pode ter experimentado desde a inserção de fichas até as inúmeras contagens regressivas de jogos freemium, transitando em diferentes registros de fluxo do tempo. Modulação, neste caso, seria a capacidade desse jogador em se ajustar às diferentes tecnologias que produzem essas temporalidades.

Dessa forma, pode-se pensá-los enquanto sedimentações de usos e potencialidades dessas tecnologias, cada qual com a sua temporalidade específica. Quer-se dizer com isso que os fragmentos tecnológicos aqui expostos acabam por criar e rearranjar: ritmos como a pausa; tempos-passados como a informação armazenada na memória SRAM; e tempos-futuros administráveis pela coleta de metadados do jogador mobile. De maneira análoga, propõe-se que o primeiro momento, com suas fichas e progresso perdido, predomina um dispêndio; já no segundo momento, o ritmo do jogo pode respeitar o ritmo da vida do jogador, e com a possibilidade de salvar o progresso percorrido, a sessão de jogo passa a se tornar um investimento; o terceiro momento, por sua vez, pode ser caracterizado em termos de captura. Reitera-se que não se trata de pensá-los como estágios lineares, cada qual com seu começo e fim, mas em tendências que podem sobrepor-se umas às outras, serem reapropriadas de diferentes maneiras, ou entrarem em decadência e desuso. Jogos competitivos, com suas partidas auto-contidas, carregam consigo algo de dispêndio na medida em que uma vez encerrada a partida, o jogador não acumula nada de dentro delas. No entanto, seu resultado final pode se traduzir no ranqueamento entre jogadores, que advém do acúmulo de vitórias e derrotas armazenadas no servidor de um jogo implica em um investimento por parte do jogador. Já em jogos baseados em realidades persistentes, como é o caso dos MMORPGs, o investimento prevalece sobre o dispêndio, uma vez que cada progresso feito pelo jogador é armazenado em pontos de experiência, equipamentos, relacionamentos com outros jogadores, moeda do jogo, etc.

Captura, por sua vez, merece uma atenção especial. Além de ser o modo mais recente dos que foram depurados neste artigo, ela não concorre com dispêndio e investimento, mas os articula sobre o usuário de uma maneira mais capilarizada, até mesmo íntima, tornando-o objeto de uma extração sem precedentes. Enquanto um sintoma do capitalismo pós-industrial, seu trabalhador arquetípico está sempre “em espera”, ou seja, sempre aberto para requisições das mais diversas: desde novas formas de tornar seu tempo rentável, como é o caso dos jobs e gigs8 que Nick Srnicek entende como parte do capitalismo de plataforma9, até a disposição para que seu tempo livre ou improdutivo seja interrompido. Pouco importa se tal interrupção é resultado da mensagem de um amigo ou do lembrete que alguma produção de algum material em Simcity Buildit foi concluída, e sim que essa interrupção instiga o usuário a consumir e produzir informações com seus olhos e dedos. Nos jogos e aplicativos em que essas interrupções são automatizadas, pode-se inferir que a atenção de seu usuário passa a ser algoritmicamente gerida. Algoritmos, por sua vez, não operam a partir de um vazio informacional, mas calculam sobre os dados fornecidos pelos próprios usuários, que fazem de seus aplicativos receptáculos dos metadados acerca de seus suas rotinas, hábitos e gostos. Captura, portanto, pressupõe uma temporalidade passível de ser modulada, ou seja, capaz de assumir ritmos de maior ou menor aceleração, de formas circulares como o processo de “maturação” de items e baús a serem coletados, lineares como entre o início e o fim de uma partida, fragmentárias como a atenção voltada para uma sessão de jogo que pode durar desde alguns minutos até horas.

Além disso, um modelo de captura conta com uma ambiguidade no seu modo de operar. Ao contrário do jogador de fliperama, que depende do funcionamento do estabelecimento, além da disponibilidade da máquina que desejava jogar, e do dono do consoles, que precisa estar em um lugar com o aparelho instalado em uma televisão, a flexibilidade oferecida ao usuário de aparelhos móveis lhe confere em um primeiro momento uma liberdade para jogar quando e onde quiser. Tal liberdade, no entanto, é submetida a lógicas como as que condicionam a progressão do jogador, o conteúdo que lhe é oferecido mediante tempo e dinheiro investidos, e o ranqueamento dos jogadores com maior aptidão para tais investimentos. Se o jogador, com a liberdade que tem para jogar, por um dia esquece-se ou decide se abster do jogo, ele logo é notificado de que há um baú esperando para ser aberto, uma cidade esperando para ser governada. Independentemente do êxito nessas tentativas de retenção do público, importa salientar que em um modelo de captura o tempo do jogo (mas também de qualquer outro aplicativo) deixa de ser somente aquele da participação ativa, para se tornar o da espera em ser provocado. Se com a pausa dos consoles o tempo do jogo passava a se adaptar ao tempo do jogador, nos jogos freemium dos dispositivos móveis essa relação se inverte: para que o jogo seja uma atividade que engaje o jogador, seu tempo é que deve adaptar-se ao do jogo. Essa inversão se torna ainda mais aguda quando considera-se o fornecimento que o jogador faz de suas informações, que podem ser refinadas para a produção de perfis de seus usuários, adaptando o funcionamento do jogo de acordo com seus hábitos e preferências. Esse processo aponta para um controle fino do tempo e da atenção de seus usuários.

De fato, no que diz respeito a esse último ponto, pode-se indagar a respeito de como a produção de temporalidades afeta o tempo em seu sentido histórico. Se uma revolução propõe a esperança no futuro a partir de uma ruptura com um determinado modo de se contar dias, meses e anos, como no caso da França revolucionária ou nas primeiras décadas da União Soviética, o que pensar de uma contemporaneidade que busca sentido no fim das grandes narrativas, como foi diagnosticado por Lyotard? Quanto mais um usuário depende de seus dispositivos para tornar o tédio de seu trabalho e o sufoco de um trem lotado suportáveis, mais ele entrega seus desejos e necessidades, em forma de informação, para a produção de predições e tendências. Abre-se assim um horizonte de possibilidades para tipos de extração de informação feitos sob medida para cada um de seus usuários, assujeitando-os a um controle fino sobre sua atenção, sua disposição para permanecer jogando e sua propensão a gastar dinheiro. Indaga-se, finalmente, quais as possibilidades para que um futuro se realize, se o imponderável que está em seu cerne é cada vez mais mitigado pela retroalimentação entre algoritmos de predição e usuários que fornecem as variáveis para seu funcionamento. Tal questionamento é o ponto onde política e diversão se encontram, sendo esta cada vez menos reprodução do tempo de trabalho, para se tornar uma categoria produtiva aguardando por uma definição.

Notas

4 “By micropolitics I mean such techniques organized and deployed collectively by professional associations, mass-media talk shows, TV and film dramas, military training, work processes, neighborhood gangs, church meetings, school assemblies, sports events, charitable organizations, commercial advertising, child rearing, judicial practice, and police routines. It is not that every institution is exhausted by micropolitics, but that the micropolitical dimension of each is potent because of the critical functions the institution performs in organizing attachments, consumption possibilities, work routines, faith practices, child rearing, education, investment, security, and punishment.” (CONNOLLY, 2002, pp. 20-21). É interessante notar que as técnicas elencadas por Connolly não pertencem unicamente ao capital ou ao Estado, mas também à instituições de escala menor.

5 Em <https://help.ea.com/en-us/help/simcity/simcity-buildit/simcity-buildit-new-mayors-guide&gt;. Acessado em 22/12/2016. As aspas usadas em “lubrificar” são sintomáticas. Levando em conta que o jogador assume o papel de um prefeito, “lubrificar” está muito próximo de “molhar” as mãos, ou seja, obter uma vantagem ou favor em troca de dinheiro. Pensada junto à explicação dada pela Electronic Arts, tal mecânica mantém certa analogia com práticas afins à corrupção. Particularmente no contexto brasileiro contemporâneo, cuja política é permeada de obras públicas condenadas a serem ruínas e escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras e empresas de infraestrutura, há uma tensão silenciosa na mecânica em questão. A ansiedade de avançar no jogo e o gozo em completar uma determinada etapa justificam o “atalho” que o dinheiro pode comprar.

6 Sobre isso, cabe a leitura do “A Game Player’s Manifesto”, escrito por Richard Garfield, game designer famoso pelo jogo Magic: The Gathering. Para ele, “se você está jogando um jogo quase de graça – ou de graça – e encontra pessoas que estão gastando milhares, ou dezenas de milhares, e em alguns casos até mesmo centenas de milhares de dólares, algo está errado.” Em <https://www.facebook.com/notes/richard-garfield/a-game-players- manifesto/1049168888532667>, acessado em 07/01/2017.

7 O maior pacote de Simcash à venda, no valor de 8.500, custa R$ 364,99, acessado em 10/12/2016. Cabe salientar que não há um limite de compras imposto ao jogador.

8 Jobs e gigs são modalidades de trabalho cuja precariedade torna-se possível graças ao emprego de tecnologias capazes de organizar e mobilizar, de maneira remota e impessoal, pessoas e propriedades ociosas para extrair valor. Assim, o tempo e a atenção de um indivíduo podem ser empregados no Mechanical Turk (Mturk) da Amazon; um carro particular pode transportar pessoas em nome do Uber, e metros quadrados desocupados podem hospedar pessoas pelo Airbnb.

9 Para Srnicek, “plataformas são infraestruturas digitais que permitem um ou mais grupos a interagir. Portanto, elas se posicionam como intermediárias que unem diferentes usuários: clientes, anunciantes, provedores de serviços, produtores, fornecedores, e até mesmo objetos físicos.” (SRNICEK, 2017, p. 35).

Referências bibliográficas

CONNOLLY, William. Neuropolitics: Thinking, Culture, Speed. Minneapolis: Minnesota University Press, 2002.

ERNST, Wolfgang. Media Archaeography – Method and Machine versus History and Narrative of Media. Em HUHTAMO, E; PARIKKA, J. (Orgs.). A Geology of Media, Mineapolis: University of Minnesota Press, 2015.

GANSING, Kristoffer. The Transversal Generic: Media-Archaeology and Network Culture. Em The Fibreculture Journal. Ed. 18, p. 97. Em <http://fibreculturejournal.org/wp-content/pdfs/FCJ- 123Kristoffer%20Gansing.pdf>, acessado em 07/01/2017.

HUI, Yuk. Modulation after Control. Em New Formations, Ed. 84/85, Londres: Lawrence & Wishart, 2014 – 2015.

PARIKKA, Jussi. A Geology of Media, Mineapolis: University of Minnesota Press, 2015. SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information, Grenoble: Éditions Jérôme Millo, 2013.

SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity, 2017.