[Tradução] – GALLOWAY – “A MISÉRIA DA FILOSOFIA: REALISMO E PÓS-FORDISMO” (2013)

Traduções – “Software, Rede, Classe – Chun, Galloway, Wark” [Fins acadêmicos]

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A MISÉRIA DA FILOSOFIA: REALISMO E PÓS-FORDISMO

ALEXANDER R. GALLOWAY

Originalmente publicado em:

Critical Inquiry 2013, Winter, 347-366

Iniquiry

* * *

Este ensaio principia de outro. Em um recente exame do atual conceito ideológico de cérebro, Catherine Malabou pergunta-se: “O que deveríamos fazer para que a consciência do cérebro não seja pura e simplesmente coincidente com o espírito do capitalismo?[1].

Tal questão de Malabou é, essencialmente, o enigma que eu desejo explorar. Embora seja centralmente sobre o cérebro, a questão repercute mais longe porque vai direto ao ponto em que alguns pensamentos filosóficos se apresentam hoje equivocados. Por que no corrente renascimento investigativo da filosofia continental há uma coincidência entre a estrutura dos sistemas ontológicos e a estrutura de muitas das mais evoluídas tecnologias do capitalismo pós-fordista? Estou pensando aqui, por um lado, sobre as redes de computadores, em geral, e sobre as linguagens de computadores orientadas a objetos, em particular (Java e C++, por exemplo), e, por outro, a respeito de certos filósofos realistas como Bruno Latour, mas também, de maneira mais destacada, a respeito de Quentin Meillassoux, Graham Harman, e seus respectivos associados na escola denominada realismo especulativo. Por que esses filósofos, quando esteiam um espelho à natureza, veem o modo de produção reflexo de volta neles? Por que, em síntese, há uma coincidência entre as ontologias contemporâneas e os softwares das grandes empresas?

Sem embargo, tal coincidência ainda precisa ser demonstrada, e meu propósito será por certo evidenciar a congruidade existe. Todavia, revelando-se plausível a sua existência, duas questões a mais seguem, uma relacionada à validade teórica da escrita em pauta e a outra relacionada à sua utilidade política. (1) Se a atual filosofia realista imita a infraestrutura do capitalismo, não deveríamos mostrar por qual caminho isso se baseia, admitindo que qualquer mera reciclagem da ideologia contemporânea é, por definição, anticientífica e, portanto, suspeita em relação aos seus fundamentos epistemológicos? E (2) mesmo que se ocultem as deficiências epistemológicas, não deveríamos criticá-la por motivos puramente políticos, argumentando que qualquer projeto filosófico que campeie ventrilocar o atual arranjo industrial é, pela mesma razão, retrógrada politicamente?

As questões abrem as comportas para uma segunda onda de pergunta, subsumidas às primeiras. Tais são concernentes ao pensamento crítico, incluindo nelas uma análise das velhas distinções entre objeto e coisa, objeto e palavra, e objeto e ideia, sugerindo que deveríamos retornar ao debate clássico entre realismo e materialismo. A fenomenologia também terá um papel a desempenhar, uma vez que as questões carecem evocar o fantasma desta profissão empoeirada. Ao final, talvez possamos redescobrir um tipo especial de materialismo, que procura os fatos históricos das coisas tais como elas são, dando total atenção para a gravidade ética da presença no mundo e do tipo de atenção que deveríamos oferecer.

  1. Badiou e Java

Antes de trabalhar diretamente as provocações acima, e de maneira a manter integralmente a instigação de Malabou, precisamos recuar e investigar a natureza do mundo contemporâneo e o tipo de pesquisa filosófica que vem sendo desempenhada com isso. De tal modo, qual o tipo de discurso está em jogo aqui, qual é o espírito contemporâneo do capitalismo, e como pode os dois estar relacionados?

Alain Badiou, por exemplo, tem tido uma profunda influência na filosofia continental contemporânea, particularmente na última década, ou depois que suas obras apareceram em inglês. Ele orientou e influenciou vários dos envolvidos no realismo especulativo, incluindo Meillassoux. O “retorno à verdade” de Badiou, embora não seja idêntico ao retorno ao real de Meillassoux, é certamente feito do mesmo tecido, ambos indesculpavelmente perseguindo o absoluto enquanto abandonam o social construtivismo da pós-modernidade. Na obra de Badiou, encontrei um paralelo entre a teoria do conjunto e o design de certas linguagens de computadores. Sua obra tem muito mais afinidade com o software e o algoritmo do que ele possa imaginar. Há uma misteriosa homologia entre os conceitos-chave da ontologia de Badiou, diretamente influenciada da teoria dos conjuntos, e os conceitos de design da linguagem de computador orientada a objetos. Na verdade, tal como atesta os historiadores do computador, as linguagens orientadas a objetos foram projetadas originalmente utilizando os princípios vindos das teorias dos sistemas e dos conjuntos[2]. Isso não é menosprezável, devido ao fato que as linguagens de computador orientadas a objetos povoam hoje um nicho importante na infraestrutura industrial do mundo: enquanto softwares, elas controlam as novas plantas robóticas automobilísticas, sincronizam tranquilamente suas sedes corporativas com os call centers de outros países e permitem que companhias como o Google e o Facebook processem eficientemente milhões de solicitações. Haveria um núcleo capitalista oculto sustentando o Ser e Evento de Badiou? Com certeza, não. Haveria uma similitude entre como Badiou e Java ou C++ discorrem acerca do mundo? Penso que sim, e quero começar este ensaio descrevendo tal homologia.

Comecemos a partir de dois conceitos-chave de Badiou, pertencimento e inclusão, emprestados da teoria dos conjuntos. Em termos de definição formal, Badiou assim esclarece: “A teoria dos conjuntos distingue duas possíveis relações entre múltiplos. Existe a relação original, de pertencimento…, na qual indica que um múltiplo é contado como elemento na apresentação de outro. Mas existe também a relação de inclusão…, na qual indica que um múltiplo é um subconjunto de outro”[3]. Algo chamado x pertence a uma situação y se é apresentado dentro dessa situação e é contado dentro dela. Por outro lado, algo x está incluído em outro y se todos os elementos de x também são elementos em y. Inclusão pode então ser compreendida como uma relação mãe-filho [parent-child relationship], em que todos os elementos da mãe estão representados no filho. Desde que o filho possa exceder o que estava presente na mãe, esse é referido como o subconjunto daquele (apesar de ter precedência lógica anterior ou sobre o filho), de modo que os elementos da mãe representam um subconjunto (ou, alternativamente, um conjunto idêntico) daqueles existentes no filho. Assim, o subconjunto é logicamente anterior ao conjunto, quando incluído nele.

Note que a linguagem de apresentação e representação oferecida aqui é não coincidente. Badiou especifica que pertencimento é um problema de apresentação, enquanto inclusão é um problema de representação[4]. Novamente: x é apresentado em y quando este pertence àquele; x é representado em y quando esse é incluso naquele. A razão para isso é que o pertencimento é uma questão de como as coisas aparecem nas situações (isto é, como elas são apresentadas nas situações), enquanto a inclusão é uma questão de como as entidades mães se replicam enquanto subconjuntos das suas próprias entidades filhos (isto é, como elas são representadas em suas crianças).

Estes dois conceitos básicos são o combustível de grande parte do que Badiou expressa matematicamente em O Ser e o Evento. De fato, eles são a matéria-prima que define o poder axiomático dos conjuntos, o conceito de estado da situação, a singularidade e a lei do tornar-se-um [forming-into-one; mise-en-un], e, finalmente, dos conceitos específicos de Badiou, de evento, fidelidade, o genérico, e o forçamento [forcing; forçage].

A preocupação aqui não é uma leitura minuciosa de O Ser e o Evento ou de Lógicas dos Mundos. Eu gostaria, contudo, de comparar os dois termos básicos de Badiou para relacioná-los a um quadro de conceitos encontrados especificamente em Java, uma popular linguagem orientada a objetos, desenvolvida como uma das primeiras plataformas independentes de linguagens de programação. Embora se deva reconhecer muitas diferenças entre os tipos de linguagens orientadas a objetos hoje em uso, tal como Ruby, C++, Objective-C, ou Lisp, para o propósito de elucidação prática, irei dispor como paradigmática a linguagem orientada a objetos Java.

As especificações de Java descrevem vários importantes aspectos da linguagem, duas delas pertencem a presente discussão. A primeira é a associação. Linguagens orientadas a objetos são organizadas em torno do conceito de classe ou de uma descrição abstrata de um módulo de código, que pode ser categorizado em uma instância de classe realmente existente, conhecida como objeto. Associação refere-se à estrutura de dados que compõem o objeto. Os objetos associados podem ser inclusos em variáveis, métodos, e outras declarações. Os associados podem ser declarados diretamente na classe, ou podem vir a partir de associados de uma classe-mãe da qual o objeto é um filho[5].

Tais relações mãe-filho nomeiam o segundo aspecto de Java, relacionado à discussão em pauta: herança. Por meio de um processo conhecido como extensão, classes podem ampliar outras classes, o que significa que elas herdam todas (ou algumas) as qualidades daquelas classes. Em linguagem comum, a classe, sendo herdada, é chamada de classe-mãe ou superclasse, e a classe herdando é chamada de filha ou subclasse[6]. Assim, considere a seguinte relação hipotética de classes e superclasses agrupadas: a classe definida como maçã vermelha também pode ser uma extensão de uma superclasse de maçã, herdando todas as qualidades da superclasse, e a superclasse em si mesma pode ser definida como uma extensão de classe ainda mais alta, digamos de um pedaço de fruta, e então ambas, a maça e a maça vermelha, teriam herdado as qualidades do pedaço de fruta, ambas sendo derivadas dele.

A semelhança entre Badiou e Java é clara. O que Badiou chama de pertencimento, Java chama associação. O que Badiou chama de inclusão, Java chama de herança. Quando Badiou discute como os múltiplos podem pertencer a outro múltiplo, ele está usando a mesma lógica usada por um programador de computador que discute como a variável de um associado pode ser definida dentro da associação de uma classe. De outro modo, quando Badiou discute como um múltiplo pode ser um submúltiplo de outro múltiplo, incluindo todos os elementos da mãe dentro do filho, ele está usando a mesma lógica usada por um programador de computador, que discute como uma nova definição de classe pode estender a classe pré-existente e com isso herdar todas (ou algumas, dependendo de como a classe-mãe é definida). Em resumo, as lógicas de pertencimento e inclusão que estruturam a ontologia de Badiou são idênticas à lógica de associação e herança que estruturam hoje as linguagens orientadas a objetos.

Como eu já apontei, as conclusões a serem tiradas de tudo isso são um tanto desconcertantes. Tais linguagens orientadas a objetos são em si mesmas o coração e a alma da economia da informação, de modo que, se não é sinônimo do modo de produção atual, é certamente intimamente entrelaçada com ele. Muitas das empresas mais capitalizadas do planeta são empresas de software dependentes da infraestrutura orientada a objetos (Google, Cisco System, IBM, Facebook); muitas das pessoas mais ricas são magnatas da área de tecnologia da informação (a quantia estimada de Michael Bloomberg é de US$ 22 bilhões, de Bill Gates US$ 56 bilhões); quase todos os campos da indústria hoje têm sido reestruturados para acomodar as possibilidades e vicissitudes dos softwares (algoritmos em mercados financeiros, bioinformática); e a vasta maioria dos softwares é escrita em linguagens orientadas a objetos, sejam elas C++, Ruby ou Java. Além do mais, as linguagens orientadas a objetos não apenas estruturam os negócios como também influenciam de maneira geral as lógicas de identificação, captura e mediação de corpos e objetos. A obra de Phil Agre é fundamental neste sentido, particularmente suas análises da lógica de captura e de várias gramáticas da ação articuladas em corpos e objetos a partir de redes de informação[7]. Assim, não é demais argumentar que o modo de produção contemporâneo tem uma relação especial com as linguagens orientadas a objetos, tal como se podia dizer cinquenta anos atrás sobre a especial relação com as linhas de montagem de manufaturados, e cem anos com a máquina a vapor. Em resumo, Java e outras linguagens são ferramentas por excelência da infraestrutura pós-industrial contemporânea. Acerca disso, não há ilusões.

Uma desconcertante conclusão fica evidente, a congruência entre como Badiou discursa sobre ontologia e como o capitalismo estrutura o seu mundo de objetos de negócios[8]. É claro que somente a identificação formal da congruência não é reprovável em si mesmo. Existem muitas estruturas que “se parecem” com outras. E deveríamos estar vigilantes para não fetichizar a forma como algo divino – tal como a numerologia diviniza o número. Contudo, não somos obrigados a se interrogar sobre essa congruência? Este mimético relacionamento é motivo de preocupação? Meillassoux e outros armaram uma poderosa crítica do correlacionismos, então por que uma cegueira em relação a esta correlação mais elementar? É evidente que a correlação entre Badiou e Java não pode ser explicada como mera coincidência. O que deveríamos fazer para que a nossa compreensão do mundo não seja pura e simplesmente coincidente com o espírito do capitalismo?

  1. O Retorno do Realismo

De forma a dirigir-me a essas importantes questões, irei expandir o campo de visão e fazer algumas observações sobre o realismo filosófico[9]. Em tal contexto, realismo significa simplesmente que o mundo externo existe independente de nós mesmos e de nossa linguagem, pensamentos, e crenças – embora também seja comum considerarmos a tese menos simples, de que nós temos acesso direto e verificável ao conhecimento acerca do mundo externo. Na trilha do kantismo e da fenomenologia, e do estruturalismo subsequentes, o realismo praticamente se extinguido na tradição continental, apesar de ter ramificações saudáveis na filosofia analítica anglo-americana, especialmente na filosofia da ciência. Mas as coisas começaram a mudar em 2002. Neste ano Manuel De Landa publica um livro sobre Deleuze, Intensive Science and Virtual Philosophy, afirmando em termos inequívocos: “Eu sou realista”; no mesmo ano Harman publica seu primeiro livro, no qual propõe um realismo em torno da chamada filosofia orientada a objetos[10].

Talvez o mais influente dos recentes textos realistas seja o livro After Finitude [Depois da Finitude] de Meillassoux, advogando que se vá além do que ele denomina correlacionismos, e reconcilie o pensamento com o absoluto. Para Meillassoux, correlacionismo significa que o conhecimento do mundo é sempre resultado de uma relação entre sujeito e objeto. “Entendemos ‘correlacionismo’ como a ideia segundo a qual nós só temos acesso à correlação entre pensamento e ser, e nunca a um termo considerado separado do outro”, escreve Meillassoux[11]. Sob o sistema correlacionista, subjetividade e objetividade permanecem para todo sempre unidos. Aqui, naturalmente, poder-se-ia destacar figuras como Kant, com seu altamente mediado modelo de sujeito e objeto. A fenomenologia é também chave para entrar na história do correlacionismo, assim como o movimento filosófico francês dos anos 1960 e 1970, obcecados que eram com a inabilidade do homem em ir para além da casa da linguagem. O pós-modernismo é considerado ser um grande divisor de águas para o correlacionismo, particularmente em relação à noção – às vezes atribuída corretamente ou não aos pensadores pós-modernos –, de que o sujeito está derradeiramente à mercê da ideologia e do espetáculo, por meio dos quais não existe verdade ou realidade absoluta. Para o correlacionismo, a subjetividade humana sempre tem um papel crucial a desempenhar; o mundo real não existe, ou se existe nós não podemos acessá-lo diretamente.

Meillassoux se coloca firmemente contra a longa tradição do correlacionismo na filosofia ocidental. Para ele, o mundo real existe, e pode ser conhecido. O antropocentrismo correlacionista, famosamente intitulado como Revolução Copernicana, é endossado e rejeitado em favor de um sistema no qual a realidade está no centro, e o humano é somente um elemento na rede do real. Levi Bryant e outros têm denominado isso de ontologia plana [flat ontology], compreendendo um único plano, o real, a partir do qual existem o pensamento humano e a cultura enquanto um elemento dentro da rede mais ampla do real[12].

No capítulo inaugural de After Finitude, intitulado “Ancestralidade”, Meillassoux expõe os termos pelos quais uma posição não-correlacionista se apresenta, fazendo referência à armadilha kantiana que dominou a filosofia ocidental por algum tempo: “O pensamento não pode sair de si mesmo de modo a comparar o mundo ‘em si’ e o mundo ‘para nós’ […]. Não podemos representar o ‘em si’ sem que ele se torne um ‘para nós’; ou, como diz divertidamente Hegel, não podemos ‘surpreender’ o objeto ‘por trás’ de forma a descobrir o que ele seria em si mesmo”.[13] Meillassoux não tanto surpreende o objeto, mas o postula em uma escala de tempo histórico fora da cognição humana, um tempo histórico anterior à humanidade. Assim, ele discursa acerca do “reino ancestral” e do “arque-fóssil”: demandas “ancestrais” são demandas sobre coisas anteriores à existência do homem e, pois, anteriores ao que os fenomenólogos chamam de “doação” da experiência humana; o “arque-fóssil” é o traço que permite a alguém fazer demandas ancestrais. Por exemplo, o decaimento radiológico é um “arque-fóssil” que permite a um cientista datar um fóssil pré-histórico. Meillassoux completa essas provocações perguntando se algum correlacionismo poderia responder acerca de tais demandas “ancestrais”; tecnicamente, os fatos em questão cairiam primeiro na relação sujeito-objeto, e, portanto, antes do modelo proposto pelo correlacionismo.  Se o conhecimento humano teve um início, o que pensar da história anterior ao pensamento humano? A ciência emerge como uma espécie de trunfo, de modo que Meillassoux dispõe da seguinte pergunta aos seus oponentes correlacionistas: “como conceberíamos a capacidade das ciências empíricas de produzir conhecimentos no domínio ancestral?” (AF, p. 26; ênfase removida).

A seção de abertura do livro também ressalta a importância da matemática. Meillassoux descreve um enigma no qual a matemática tem a capacidade de falar sobre o passado histórico onde a humanidade estava ausente: “o que faz o discurso matemático ser capaz de descrever um mundo deserto para o humano […]. Esse é o enigma que precisamos confrontar: a habilidade da matemática de discursar acerca do Grande Fora; de discursar sobre um passado deserto tanto do homem quanto da vida”[14]; não obstante, anteriormente, Meillassoux apresenta a matemática durante sua discussão a respeito das qualidades primárias: “todos aqueles aspectos do objeto que podem ser formulados em termos matemáticos, podem ser concebidos enquanto propriedades do objeto em si mesmo” (AF, p. 3; ênfase removida). (Logo retornarei à questão da matemática, mas aqui vale a pena identificá-la explicitamente).

O emprego de “reino ancestral” permite, pois, que Meillassoux abra espaço para um mundo puramente real, um mundo onde nunca se teve o olhar humano, ou onde a mente humana nunca pensou a respeito. “Pensar a ancestralidade é pensar um mundo sem pensamento”, escreve, “um mundo sem a doação do mundo” (AF, p. 28).

O termo “doação do mundo” [givenness of the world] é uma referência ao modo como os fenomenólogos falam sobre presença. Refere-se à maneira pela qual o mundo entra em percepção por um ser pensante. “Nossa tarefa, por contraste”, escreve Meillassoux, “consiste em tentar compreender como o pensamento é capaz de acessar o não-correlacionado, ou seja, um mundo capaz de subsistir sem determinado ser”. O Santo Graal de Meillassoux é, pois, a existência sem doação. Ele compreende o absoluto enquanto algo “capaz de existir, existamos ou não” (AF, p. 28).

Como deveríamos avaliar Meillassoux e sua intervenção na filosofia contemporânea?[15] Algumas questões vêm à mente, todas relacionadas à relação de Meillassoux com a política e a história. Abordarei duas críticas, primeiro em termos relativamente vagos, depois passarei para uma terceira crítica, mais pontual.

A primeira é a respeito da questão da necessidade da metafísica em si mesma, seja ela na forma essencialista, absoluta, de uma realidade natural, ou de verdades universais. Todas essas coisas foram, em um momento ou outro, antagônicas à chamada teoria crítica, isto é, da prática inventada pela obra de Karl Marx na metade do século XIX e praticada de diferentes maneiras pela Escola de Frankfurt, pelo estruturalismo, semiótica, estudos culturais, e por certos tipos de teoria queer, feminismo, e da teoria crítica da raça, até o final do século XX. Em grande parte da obra de Marx, essência e verdade são antagonistas, sendo substituídas por identidades construídas e mundos contingentes. (Lembre-se como Marx e Friedrich Engels, na segunda parte de Manifesto Comunista, prometeram acabar com a verdade!). Com o novo realismo especulativo, e talvez também de maneira diversa com a filosofia orientada a objetos de Harman, arrisca-se a mudar de um sistema essencialista subjetivo (patriarcado, logocêntrico, ideologicamente aparatado) para um sistema essencialista “objetivo” (um real não mediado, infinito, análogo à matemática, o absoluto, borbulhante em caos). Não é hora de reavivar os argumentos antiessencialistas de nossos antepassados marxista, feminista e pós-colonial? Não é o essencialismo metafísico de Meillassoux – seu aporte na universalidade da contingência (que torna sem sentido essa universalidade impotente), sua procura pelo absoluto, seu endossamento do real puro – tão repugnante quanto os outros tipos de essencialismos metafísicos?

De tal modo, precisamos diretamente confrontar a provocação fundamental do novo realismo filosófico. Ora, contra a tradição da teoria crítica materialista desde Marx, muitos dos realismos hoje impetram que a ontologia não deveria ser política; impetram que as especulações ontológicas devem permanecer separadas da política. Tais coros estão sendo ouvidos com cada vez mais frequência hoje. Eu não tenho dúvida de que muitas das figuras associadas ao realismo filosófico se consideram almas politizadas de certo calibre. E frequentemente se ouve o argumento de que o desacoplamento entre o ontológico e o político é um ato neutro por si mesmo e, ao fazê-lo, não lança nenhuma difamação como tal sobre o projeto político. Poder-se-ia querer fazer somente metafísica aqui, e política acolá. Ademais, os promotores de tais argumentos frequentemente louvam o desacoplamento enquanto uma característica do realismo, uma não responsabilidade, porque isso permite que o político persista em sua própria esfera autônoma, imaculado nas argutas questões do Ser e da aparência.

Contudo, o desacoplamento do reino ontológico com o reino político não é totalmente neutro, uma vez que surge menos como uma tentativa inócua de arrumar a desordenada paisagem do discurso filosófico (uma fala do Ser não estaria eivada de uma fala da política) e mais como uma estratégia ideológica voltada inconscientemente ou não para a eliminação de discursos concorrentes. Lembre-se do que precisa ser descartado ao abolir o correlacionismo. Certamente poder-se-ia descartar a fenomenologia, mas do mesmo modo o construtivismo social e os vários campos amparados por uma metodologia construtivista social, incluindo aqui grande parte do feminismo das segunda e terceira ondas, certos tipos de teoria crítica da raça, o projeto de identidade política em geral, teorias da pós-modernidade, e muitos dos estudos culturais. Deixando claro, a fenomenologia tem uma política: para além da assolação da vida moderna, o retorno para um estado mais poético do ser, guiado pelo cuidado e a solicitude. O social construtivismo também tem uma: eliminar a violência do patriarcado, do logocentrismo, e tudo o mais. Não há ilusões, é isso que está em jogo com o retorno recente ao absoluto, evidente nos discursos teóricos de Meillassoux a Badiou, e ainda mais evidente em autores como o Žižek e Susan Buck-Morss.[16] Deixando claro, esses teóricos compreendem o que está em jogo e, portanto, armam seus renovados universalismos a partir de robustas, e muitas vezes militantes, teorias políticas – Badiou e Žižek, não custa lembrar, advogam categoricamente o comunismo, e Buck-Morss tem uma robusta consciência política. Violetas desbotadas que não são. A questão se torna mais premente, contudo, quando um filósofo desacopla o Ser da política, de forma a afastar-se completamente de um projeto de crítica política.

  1. A Matemática da História

Considere agora um ponto mais crítico da posição de Meillassoux, ligado à questão da matemática e do problema da história.

Recordemos precisamente as extensas avaliações metafísicas das gerações passadas. Na era do relógio, Deus é um relojoeiro e o universo gira de acordo com a música das esferas. Na era da máquina a vapor, o homem é um dínamo e a sociedade uma vasta máquina que pode ser domada e explorada. E agora, na era do algoritmo, a matemática pura pleiteia o mundo e extrai valor dele[17].

Qual é a infraestrutura do modo de produção contemporâneo? Ela inclui todas as categorias clássicas, como os capitais fixo e variável. Não obstante, existe algo que distingue o modo produção contemporâneo de todos os outros, a prevalência do software. A economia hoje não é somente dirigida pelo software (máquinas simbólicas); em muitos casos a economia é o software, consistindo em extração de valor baseado em codificação e processamento de informação matemática. Monsanto, Equifax, ou Google – todas elas são companhia de software em determinado nível basal. Enquanto uma das gigantes industriais, a Google usa a matemática pura da teoria dos grafos para valorização monetária. A Monsanto traduz organismos vivos em sequências bioinformáticas de genes, a partir de processamentos de informações. Equifax, na esfera do crédito ao consumidor, utiliza algoritmos complexos a fim de extrair valor dos bancos de dados. Mas o que é software? Software consiste em tokens simbólicos que são combinados utilizando funções matemáticas (adição, subtração e lógica verdadeiro-falso, por exemplo) e lógica de estruturas de controle (“se x então y”, por exemplo). Em resumo, software é matemática. Ciência da computação é um campo da matemática.

Qual é a experiência da vida real hoje nas sociedades pós-industriais? De novo, isto não é segredo: a experiência contemporânea é a da rotina matemática, a partir da taylorização do comportamento via planos de eficiência matemática, dos softwares de mineração de dados projetados para extração de valor em redes, da monetização da rede social usando teoria dos grafos (originalmente um ramo da geometria), e da introdução de protocolos de segurança baseados em análises topológicas de exploits e threats[18].

Não se pode deixar de lado o fato de que o modo de produção contemporâneo valoriza imensamente os softwares e que software é matemática. Um silogismo simples destaca a conclusão de que o atual modo de produção tem uma relação especial com a matemática. O software é, pois, o espinho ao lado da filosofia contemporânea.

Como esclareceram as observações iniciais sobre Badiou e Java, existe hoje uma convergência entre a lógica das disciplinas matemáticas (ciência da computação, por exemplo) e a lógica do modo de produção[19]. Isso serve como uma grande linha divisória entre duas escolas de pensamento, uma que destaca hoje a lógica simbólica, a geometria, as análises lineares, a teoria dos conjuntos, os algoritmos, o processamento de dados, e assim por diante como fora da história ôntica, isto é, fora da instância da história (mas não necessariamente da história das essências), e outra que reconhece a existência de tal matematização hoje no cerne do modo de produção e, pois, não apenas regendo a história, mas de uma maneira geral é a própria história. A primeira aproximação responderá ao nome de realismo, a segunda, de materialismo[20].

É claro que há um longo debate na filosofia acerca da origem da matemática. O número vem do mundo, como no caso dos dez dedos; ou é um conceito puro, como no caso da noção de triângulo? Immanuel Kant argumentou que todo julgamento matemático são sintéticos (enquanto ainda sendo a priori). De acordo com Kant, ao afirmar que cinco mais sete é doze, adiciona-se algo em doze que ainda não estava presente em cinco-mais-sete. Essa é uma bem-vinda provocação para demonstrar, tal como faz Kant na sua primeira Crítica e nos Prolegômenos, que o julgamento matemático requer a entrada de “alguma imagem concreta” e não meramente expressiva, via “Entendimento puro e Razão pura” [21]. Eu não gostaria de entrar neste debate sofisticado. Ao contrário, gostaria de fazer uma afirmação de escopo menos ambicioso, porém mais bem ajustada à situação atual; os julgamentos matemáticos hoje não são simplesmente sintéticos, mas também históricos. Em vez de analisar a possibilidade de realizar julgamentos matemáticos (como faz Kant), gostaria de analisar o que implica fazer tal julgamento – e industrializá-lo, e implantá-lo, e monetizá-lo. Poder-se-ia chamar isso, pois, de resposta pós-fordista para o realismo filosófico em geral, e para Meillassoux, em particular: depois que o software entrou na história, a matemática não pode ou não deveria ser compreendida a-historicamente. Isso é verdade para modernidade industrial em sentido lato, mas especialmente verdade sob o pós-fordismo, devido à maior intimidade entre software e modo de produção.

Assim, quando Meillassoux sugere que a matemática está fora da história, não convence. De novo, lembre-se da descrição dele da chamada qualidades primárias dos objetos, ou seja, daquelas propriedades que pertencem a uma coisa fora de nossa capacidade de apreendê-las: “tudo aquilo do objeto que pode ser formulado em termos matemáticos, pode ser pensado enquanto propriedade do objeto em si mesmo”. Formulações como essas não devem ser historicizadas? Não haveria uma especificidade histórica em “os aspectos do objeto em termos matemáticos”? Não haveria uma especificidade histórica em “na capacidade da matemática de discursar sobre o Grande Fora”? A resposta é um enfático sim; poder-se-ia denominar essa especificidade industrial histórica de modernidade, em geral, e modernidade pós-industrial (isto é, baseada em software), em específico. Sim, talvez tenha havido um tempo em que a matemática esteve fora da sensação e experiência humanas, permitindo uma janela ao absoluto, ou um reino das qualidades primárias, como Meillassoux gostaria. Contudo, as atuais computação, matemática, algoritmos e programação são justamente coincidentes com a experiência humana cotidiana. (Na verdade, eu estou meramente vocalizando a posição suave. A posição forte, a derridiana, teria sugerido que nesse aspecto, o logos, sempre esteve no coração do homem.) De tal modo, se formos impelidos a manter a terminologia primária/secundária – e não está claro que deveríamos – sob o pós-fordismo, as qualidades derivadas da matemática seriam certamente determinadas social e subjetivamente, colocando os status delas enquanto questão básica.

O ponto não é, pois, repreender Meillassoux por esquecer a regra básica de que sempre é preciso historicizar. Consequentemente, a queixa contra o realismo não é simplesmente reencenar o antigo maneirismo da esquerda: historicizar x, onde x é igual a qualquer coisa que seja. (E, de tal maneira, minha reticência não vem tanto a ser a respeito da história da matemática.). Em vez disso, o ponto aqui é identificar corretamente o que conta como material para historicização hoje. A questão é mostrar que a matemática não pode mais existir de modo neutro, como mera ferramenta exploratória para o entendimento de nossa existência, uma vez que a própria história foi, se quiserem, infectada pelos processos matemático-industriais[22].

Edmund Husserl era sensível a tal mudança do mundo-historial durante o início do século XX, quando escreveu sobre a “crise das ciências europeias” e sobre o modo como o mundo-da-vida é rebaixado nas mãos das ciências positivistas da modernidade: “Precisamos notar que algo da mais alta importância ocorreu ainda em Galileu: a oculta substituição do matematicamente [construído mundo ideal] por um meramente mundo real, [isto é,] aquele que é, na verdade, oferecido pela percepção, que é sempre experimentado e experimentável – o nosso mundo-da-vida cotidiano”[23]. Da mesma maneira, Martin Heidegger perfaz um argumento similar, quanto lamenta o advento da “época da imagem do mundo”: “Imagem do mundo, compreendida essencialmente, não quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo, mas o mundo concebido como imagem. O ente na totalidade é agora tomado de tal modo que apenas e só é algo que é, na medida em que é posto pelo homem representador-elaborador[24]. Poder-se-ia lembrar que a fenomenologia surge da reação ao modo como as ciências positivistas estavam redefinindo a configuração humana. As apostas de Husserl e de Heidegger eram bem altas, e sempre articuladas em termos normativos, ou mesmo morais; as ciências positivas cognitivistas ameaçam o sujeito fenomenológico. A fenomenologia, afinal de contas, é uma subespécie de romantismo e, portanto, desconfia altamente dos propósitos do positivismo, sejam eles originados da ciência ou da filosofia. Para a fenomenologia, a solução para qualquer problema é sempre encontrada na irredutível autenticidade do sujeito sensível, nunca nos cálculos secos da matemática e da ciência.

O ponto não é que a matemática seja incapaz de discursar acerca da realidade. Claro que é. Antes, o ponto é que não há como ser neutro a respeito da capacidade da matemática de discursar sobre a realidade, precisamente porque na era do capitalismo computadorizado, a própria matemática, enquanto algoritmo, tornou-se um agente histórico.

Cito novamente o dilema de Meillassoux: “Esse é o enigma que precisamos confrontar: a habilidade da matemática de discursar acerca do Grande Fora; de discursar sobre um passado deserto tanto do homem quanto da vida”. Contudo, depois da cibernética, depois da matematização do genoma, depois do algoritmo PageRank do Google, depois da industrialização do grafos social, depois do crescente abismo com o digital, qualquer discurso sobre a não-mediação da matemática com a realidade soa falso ou de mau gosto.

A filosofia e a ciência da computação não são desconectadas. Na verdade, elas compartilham uma conexão íntima, e já por algum tempo. A teoria dos conjuntos, a topologia, a teoria dos grafos, a cibernética e a teoria geral dos sistemas, por exemplo, são partes das linguagens intelectuais orientadas a objetos, herdando os princípios desses campos científicos com grande fidelidade; e também a recente filosofia continental, incluindo figuras como Deleuze, Badiou, Niklas Luhmann, ou Latour. De onde surge a sociedade de controle de Deleuze senão da definição de Nobert Wiener da cibernética?[25] De onde surge o actante de Latour senão da teoria dos sistemas? De onde surge a “diferença que faz a diferença” de Bryant senão da teoria da informação de Gregory Bateson?

Segundo tal correlação, posso agora reiterar dois pontos de desacordo destacados no início. Primeiro, o problema da crítica da ideologia: se o novo realismo espelha o capitalismo contemporâneo, não seria meramente uma reciclagem da ideologia contemporânea e, portanto, suspeita em virtude de ser anticientífica? Segundo, o problema do político: abrangendo diametralmente a ideologia, não se deveria permanecer puramente cético acerca dos fundamentos políticos, levando em conta que qualquer projeto ventrilocando o atual arranjo capitalista é, por essa mesma razão, retrógado politicamente?

“Como seria uma democracia orientada a objeto?”. Essa é a provocação realista de Latour, uma questão posta no gigantesco catálogo da exposição “Making Things Public”, ocorrida em 2005, no Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM), em Karlsruhe[26]. Contudo, tais democracias já existem. O brilho feio delas cobrem nossas praias e deltas. Sua infraestrutura objeto-orientada decompõe a mais-valia não paga a partir das redes vivas  e fornecem os canais de comunicação dentro e fora das maquiladoras. Tais democracias têm pouca relação com a soberania do povo, somente com as regras do mercado. O denominado realismo delas não tem relação com o real da história material, mas somente com a lógica de exclusão e competição. Como Nina Power bem asseverou, em sua rejeição do realismo filosófico: “qual utilidade tem isso se simplesmente converte-se em uma corrida ao abismo a fim de provar que qualquer entidade é sem sentido como qualquer outra (além do mais, os atomistas fizeram isso melhor)”[27].

  1. Uma Política Alinhada

Vale recordar o encontro de 1946-47 entre Jean-Paul Sartre e Heidegger, em torno da questão do engajamento e da natureza da existência humana. Sartre fez clara sua posição: o engajamento político significa engajamento pelo e para seres humanos.

O homem tão-somente é […]. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo […]. Não sei qual será o futuro da revolução russa; posso admirá-la e tomá-la como exemplo, na medida em que tenho provas, hoje, de que o proletariado desempenha, na Rússia, um papel que ele não desempenha em nenhuma outra nação. Mas não posso afirmar que tal situação irá forçosamente conduzir ao triunfo do proletariado; devo ater-me ao que vejo […]. Não é por nosso pessimismo que nos acusam, mas, no fundo, pela dureza de nosso otimismo.[28]

Em sua resposta, Heidegger modifica ligeiramente a linguagem de Sartre; engajamento significa pelo e para a verdade do Ser. Não são apenas entidades enquanto tais que devem ser notadas durante a constituição de alguma política, mas a verdade mais ampla de sua presença. Ainda que por meio de sua indefinição, Ser deve ser procurado para que o homem possa ter algum tipo de orientação desvelada em direção a isso. A mais impressionante passagem na correspondência é provavelmente a descrição de Heidegger do Ser enquanto sendo tanto o mais próximo quanto o mais distante do homem:

O “Ser” não é nem Deus nem um fundamento do mundo. O Ser está mais distante do que todo ente e, não obstante, está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja um rochedo, um animal, uma obra d’arte, uma máquina, seja um anjo ou Deus. O Ser é o mais próximo. E, todavia, para o homem é a proximidade o que lhe está mais distante.[29]

De um lado, Heidegger; do outro, Sartre. Por um lado, o Ser (o onto-teológico absoluto); do outro, seres (entidades materiais com histórias construídas). E isso vem a ser um tipo de uma avaliação incisiva: trata-se de um filósofo que segue uma ontologia absoluta ou que segue uma história material? As redes reais de relações de objetos produzem a história, ou a história produz redes reais de relações de objetos? A resposta à pergunta indicará como certa pessoa entra no debate contemporâneo. Alguns valorizam a ontologia pura na forma do absoluto, o Uno, o infinito, aquilo que chamavam de Deus. Outros valorizam a historicidade dos mundos, saturados como estão com todos os detalhes da vida material. Em resumo, o “real” no realismo filosófico significa o absoluto. Enquanto para o materialista, o “real” significa a história[30].

Não obstante, a questão maior ainda precisa ser respondida: movimentos como a filosofia orientada a objetos e o realismo especulativo têm uma política e, caso afirmativo, qual seria? E, ainda mais importante, a partir do litígio inicial de Malabou, reformando um pouco: o que deveríamos fazer para que o pensamento não coincida pura e simplesmente com o espírito do capitalismo?

De repente, há pouca diferença entre o realismo filosófico e a mais austera forma de realismo capitalista[31]. Que tipo de mundo é esse no qual os humanos estão em pé de igualdade com o lixo?[32] Que tipo de mundo é esse no qual a paisagem é um mundo caótico, sem fundamento e determinado por uma lógica não necessária (Meillassoux) ou por uma lógica do mercado (Latour)? Que tipo de mundo é esse no qual a única lei absoluta que se mantém é a lei absoluta de um niilismo estéril e totalizante?

Há duas opções básicas quando lidamos com a tarefa do político. Uma política alinhada e outra desalinhada. A política alinhada é aquela ligada a um referencial moral e equipada com mecanismo ético capaz de segui-lo. A esfera moral refere-se a uma lei ou a um objetivo que precisa ser alcançado, enquanto a esfera da ética refere-se a um conjunto de práticas dirigindo a ação que, quando observadas e colocadas em jogo, podem tender a certos fins (morais ou não). Alguém pode, pois, habitar um ethos, sem ter uma moralidade; da mesma maneira, alguém pode estar ligado a uma moralidade, mas falhar na prática ética. Assim, política alinhada é o nome dado quando os vetores da ação ética miram abertamente um resultado moral específico. Enquanto política desalinhada é o nome dado àqueles projetos não vinculados por lei moral. Guiados somente pelos vetores da esfera ética, os projetos políticos não alinhados podem ainda ganhar uma formidável inércia, territorializando e desterritorializando domínios inteiros. Desalinhados, eles existem enquanto mercenários, às vezes saltitando de amigo a inimigo. Se o projeto de Badiou é a quintessência do projeto político alinhado, de verdades morais amparadas por uma mecânica ética precisa, o de Deleuze é a quintessência do projeto político desalinhado, uma superestrutura moral ausente, ofuscada a partir de um enorme campo vetorial de forças físicas[33].

O realismo é uma política desalinhada. A questão não é, pois, se o realismo é bom ou ruim, mas sim que o realismo é perigoso. Em seu próprio desalinhamento, o realismo carece de um relacionamento verdadeiro com o absoluto, uma vez que abdica da decisão política[34].

Contrariamente, o materialismo é uma política alinhada porque identifica algo como uma esfera moral absoluta (história, a totalidade social) e sustém tal absoluto com as indispensáveis táticas que governam a prática (desmistificação da mercadoria, crítica da ideologia, a dialética, e assim por diante).

Finalmente, o que o materialismo defende? Que tudo deve estar enraizado na vida material e na história, não em abstração, lógica necessária, universalidade, essência, forma pura, espírito, ou ideia. Assim, a miséria do novo realismo não é tanto a sua ingênua confiança no raciocínio matemático ou nas arquiteturas orientadas a objetos, mas a sua inaptidão em reconhecer que a ordem mais alta do absoluto, a totalidade em si, é fundada na história material da humanidade. Tocar o absoluto é precisamente pensar nesta correlação, não tanto para explicá-la, mas para mostrar que o pensamento em si mesmo é a correlação como tal, e, portanto, pensar o material é difundir pensamentos pela mente da história.

*

Ensaio escrito para uma palestra no programa de literatura da Universidade Duke, em 27 de abril de 2011. Agradeço os comentários que recebi na ocasião, particularmente os de Katherine Hayles, Barbara Herrnstein Smith e Michael Hardt. David Golumbia também leu o ensaio, realizando importantes comentários.

[1] Malabou, Catherine. What Should We Do with Our Brain? Trad. Sebastian Rand. New York, 2009, p. 12.

[2] Ver, por exemplo: Kirkerud, Bjørn. Programming Language Semantics: Imperative and Object Oriented Languages. Boston: Cengage, 1997. David Golumbia também fornece alguns antecedentes históricos sobre a programação orientada a objetos; ver: David Golumbia, David. The Cultural Logic of Computation. Cambridge, Massachusetts: HUP, 2009, pp. 209-11.

[3] Badiou, Alain. Being and Event. Tradução de Oliver Feltham. London: Continuum 2005, p. 81; ver também: pp. 44, 501, e 511. [Nota da tradução: segue o trecho citado, no original: “[…] la théorie distingue deux relations possibles entre multiples. Il y a la relation originaire d’appartenance, marquée €, qui indique qu’un multiple est compté comme élément dans la présentation d’un autre. Mais il y a aussi la relation d’inclusion, marquée ⊂, qui indique qu’in multiple est sous-ensemble d’um autre […]”. Badiou, Alain. L’être et l’événement. Paris : Seuil, 1988, p. 96].

[4] “Uma vez contado como um em certa situação [quer dizer, pertencimento], um múltiplo se encontra nele apresentado. Se isto também conta como um na metaestrutura [quer dizer, inclusão], ou estado da situação, então é conveniente dizer que está representado” (ibid., p. 99). A relação combinatória entre apresentação e representação permite a Badiou supor vários cenários interessantes: coisas que são apresentadas, mas não representadas, coisas que são apresentadas e representadas, e assim por diante. [Nota da tradução: a citação de Badiou, no original: “Compté pour un dans une situation, un multiple s’y trouve présenté. S’il est également compté pour un par la métastructure, ou état de la situation, il est commode de dire qu’il est representé”. Badiou, Alain. L’être et l’événement. Paris : Seuil, 1988, p. 115].

[5] Ver: Gosling, James et al. The Java Language Specification. Nova York : Addison Wesle, 2005; ver, em particular secs. 4.4, 8.1 e 8.2. Bem maior atenção pode e deve ser dada a uma teoria crítica do Java, sem mencionar as linguagens computacionais em geral. Um livro valioso, que inicia essa conversa, é o de Mackenzie, Adrian. Cutting Code: Software and Sociality. Nova York: Peter Lang, 2006, em particular o capítulo cinco, “Java: Practical Virtuality”.

[6] Note, contudo, um possível ponto de confusão: os cientistas da computação denominam a classe-mãe de superclasse, enquanto Badiou denomina o múltiplo-mãe [the parent multiple] de subconjunto. Assim, enquanto um discurso diz sub e o outro diz super, devendo ser entendidos como equivalentes.

[7] Ver: Agre, Philip E. “Surveillance and Capture: Two Models of Privacy”. In: Wardrip-Fruin, Noah; Montfort, Nick (org.). The New Media Reader. Cambridge: MIT Press, 2003, pp. 737–60.

[8] Abrindo o ensaio com a discussão de Badiou, não estou sugerindo que ele seja um realista especulativo per se (ele não é) nem que ele caia no mesmo tipo de armadilha que o realismo filosófico contemporâneo em geral (ele não cai). A solução de Badiou ao pântano realista é conectar sua ontologia com uma igualmente rigorosa teoria política.

[9] Parte do interesse pelo realismo foi deflagrada pelo movimento filosófico conhecido como realismo especulativo, concebido por um complexo de autores que exprimiram suas ideias em abril de 2007, no Goldsmiths College, compreendendo Harman, Iain Hamilton Grant, Ray Brassier, e Meillassoux; ver também as edições da revista Collapse dedicada ao tema. Ver, em particular, todo o Collapse 2 (Mar. 2007), bem como Ray Brassier et al., “Speculative Realism”, Collapse 3 (Nov. 2007): 307-449. Levi Bryant ressalta que este movimento, se é algo assim, é internamente diverso:

Se, como Graham [Harman] argumenta, há algo unindo os Realistas Especulativos, isso não se dá pelas suas posições semelhantes, mas sim pelas suas posições contrárias. Ou seja, o fio condutor ligando os Realistas Especulativos é a insatisfação com o correlacionismo e o paradigma antirrealista de pensamento. Acerca disso, não seria impreciso afirmar que existem vários “Realismos Especulativos” que não se referem como realistas especulativos. Por exemplo, Deleuze, segundo certa leitura, poderia ser classificado como um Realista Especulativo. De Landa certamente se encaixa nisso, assim como Alfred North Whitehead. Harman argumenta que [Bruno] Latour se encaixa no projeto, e eu adicionaria também [Isabelle] Stengers. [Levi Bryant, “Object-Oriented Philosophy: What Is It Good For?” 5 Feb. 2009, bit.ly/5wxSS1].

[10] Ver: De Landa, Manuel. Intensive Science and Virtual Philosophy. London: Bloomsbury, 2002; e Harman, Graham. Tool-Being: Heidegger and the Metaphysics of Objects. Chicago: Open Court, 2002. Ver também a ponderação de Lee Braver acerca da longa rejeição do realismo na filosofia continental: Braver, Lee. A Thing of This World: A History of Continental Anti-Realism. Evanston: NUP, 2007; e Jane Bennett, Jane. Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham: DUP, 2010.

            O interesse de Harman por objetos combina com outro mais geral das humanidades em torno dos objetos e das coisas. Ver, por exemplo, a obra de Daniel Miller sobre shoppings e coisas, a obra de Bill Brown sobre objetos da cultura de consumo, o interesse de Bruno Latour por agência autônoma de redes de objetos, bem como duas obras editadas: Turkle, Sherry (org.). Evocative Objects: Things We Think With. Cambridge: MIT Press, 2007; e Candlin, Fiona; Guins, Raiford (org.). The Object Reader. New York: Routledge, 2009.

            Contudo, um segundo movimento também emergiu em torno da relativa autonomia do reino estético. Isso é evidenciado na estética de Deleuze, durante a década de 1980, particularmente nos seus livros sobre cinema e pintura, em que ele explora a externalização do afeto nos processos maquínicos do mundo, ou na obra de Jacques Rancière sobre o regime estético, em que ele o caracteriza pela sua relativa autonomia. Compare também a teoria de Slavoj Žižek sobre objetificação da crença, a qual aparece em vários de seus livros, bem como as obras de Mitchell, W. J. T. What Do Pictures Want? The Lives and Loves of Images. Chicago: UCP, 2006; Stafford, Barbara. Echo Objects: The Cognitive Work of Images. Chicago: UCP, 2007; e Beller, Jonathan. The Cinematic Mode of Production: Attention Economy and the Society of the Spectacle. Lebanon: DCP, 2006.

[11] Meillassoux, Quentin. After Finitude: An Essay on the Necessity of Contingency, trad. Brassier. London: Continuum, 2008, p. 5; a partir de agora abreviado AF.

[12] Bryant, por sua parte, caracteriza-se como marxista e materialista, embora ainda contribuindo com o discurso acerca do realismo especulativo e da ontologia orientada a objetos. Para Bryant, o realismo requer uma atenção para a infraestrutura material, indo além do reino da cultura ou, no caso, do reino do ser. Ele está certo, pois, em denominar sua abordagem uma “onticologia”, e não ontologia. Desse modo, Bryant emerge mais dentro da tradição deleuziana, enquanto Harman, da latourniana. Para mais a respeito, ver: Bryant, Levi. The Democracy of Objects. Ann Arbor: Studium Publishing, 2011, esp. caps. 4 e 5.

[13] AF, pp. 3-4. [Nota da tradução: segue o trecho citado, no original:  « […] la pensée ne saurait sortir d’elle-même pour comparer le monde ‘en sois’ au monde ‘pour nous’ […] Nous ne pouvons faire une représentation de l’en-soi sans qu’il devienne un ‘pour-nou’ ou, comme le dit plaisamment Hegel, nous ne pouvons ‘surpreendre’ l’objet ‘parderrière’, en sorte de savoir ce qu’il serait en lui-même ». Quentin Meillassoux, Après la finitude (Paris, 2006), p. 17].

[14] AF, p. 26, grifos removidos. [Nota da tradução: segue o trecho citado, sem abreviação, no original: « Qu’est-ce qui permet à un discours mathématique de décrire un monde déserté par l’humain, un monde pétri de choses et d’événements non-corrélés à une manifestation, un monde non-corrélé à un rapport au monde ? C’est là l’énigme qu’il nous faut affronter : la capacité des mathématiques à discourir du Grand Dehors, à discourir d’un passé déserté par l’homme comme par la vie ». Meillassoux, Quentin. Après la finitude. Paris: Seuil, 2006, p. 37.

[15] Nos Estados Unidos, Simon Critchley foi um dos primeiros a responder o livro Meillassoux; duas figuras importantes da filosofia continental contemporâneas também escreveram respostas, Alberto Toscano e Peter Hallward, tendo o ensaio de Hallward provocado uma interessante complementação de Nathan Brown. Ver: Simon Critchley, Simon. “Back to the Great Outdoors”. Times Literary Supplement, 28 Feb. 2009, p. 28; Toscano, Alberto. “Against Speculation, or, A Critique of the Critique of Critique: A Remark on Quentin Meillassoux’s After Finitude (After Colletti)”; Peter Hallward, Perter. “Anything Is Possible: A Reading of Quentin Meillassoux’s After Finitude”; e Brown, Nathan. “The Speculative and the Specific: On Hallward and Meillassoux”. In: Bryant, L.; Srnicek, N.; Harman, G. (org.). The Speculative Turn: Continental Materialism and Realism, Melbourne: Re.press, 2010, pp. 84–91, 130–41, e 142–63.

[16] Em variados textos, Žižek defende a verdade universal contra o pós-modernismo, incluso: Žižek, Slavoj. In Defense of Lost Causes. New York: Verso, 2008. Buck-Morss, Susan. Hegel, Haiti, and Universal History. Pittsburgh: UPP, 2009, escreve sobre a teoria do sujeito não limitada por uma subjetividade fragmentária, mas sim com base na universalidade da verdade.

[17] Deixando claro, tal afirmação não contradiz a teoria do valor. Embora o algoritmo matemático possa auxiliar a extração de valor, a mais-valia sendo extraída é ela mesma antes produzida pelo trabalho humano. Um bom exemplo disso é o Google. Grande parte do trabalho que acontece nas torres de servidores do Google é realizada por um aglomerado de algoritmos executados por uma enorme frota de computadores. No entanto, o valor extraído é recolhido por grandes reservatórios de micro trabalhos gerados por usuários da rede em todo o planeta. Assim, o Google está meramente aproveitando o valor das redes de informação, que, derradeiramente, têm suas origens na atividade laboral humana.

[18] Para uma análise de como esta transformação afetou os textos e a marcação do texto, ver: Liu, Alan. “Transcendental Data: Toward a Cultural History and Aesthetics of the New Encoded Discourse”. Critical Inquiry 31, Autumn 2004, pp. 49–84.

[19] Uma questão mais profunda, muito mais difícil de demonstrar, é se isso foi sempre ou não o caso, não somente durante o período do capitalismo digital. Por exemplo, poder-se-ia estudar como o período de taylorização deu um tipo especial de matematização da produção, e mesmo antes disso, com os conceitos básicos de valor de troca e acumulação, na obra de Marx.

[20] A precisão terminológica é imprescindível aqui. Neste ensaio, materialismo é compreendido enquanto materialismo histórico, isto é, a filosofia materialista da história encontrada em Marx e na subsequente teoria marxista. Não se deve confundir com a definição de materialismo usada por certos círculos científicos e filosóficos, como a utilizada por Harman, que define materialismo essencialmente como uma forma de atomismo por meio do que pequenos elementos de matéria são bases e árbitros de tudo o que existe. Assim, o materialismo de Harman é uma posição filosófica que afirma que “toda entidades de tamanho macro podem, derradeiramente, ser reduzidas a uma fina camada final de minúsculos elementos físicos animados, sendo mais reais do que tudo o resto” (Harman, G. Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics. Melbourne: Re.press, 2009, p. 6).

[21] Immanuel Kant, Prolegomena, trad.Paul Carus (Chicago, 1902), pp. 17, 14.

[22] Lembremo-nos da anedota reveladora de Alfred North Whitehead sobre a centralidade matemática na história do pensamento. “Eu não irei tão longe dizendo que construir a história do pensamento sem um profundo estudo das ideias matemáticas em sucessivas épocas seja como omitir Hamlet da peça teatral nomeada assim por conta dele. Isso seria querer demais. Mas é certamente análogo a cortar o papel da Ofélia. Esta comparação está profundamente certa. Ora, Ofélia é de todo essencial para a peça, ela é muito encantadora – e um tanto louca” (Whitehead, Alfred North. Science and the Modern World [1925]. New York: Free Press, 1970, p. 20).

[23] Husserl, Edmund. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology: An Introduction to Phenomenological Philosophy. Tradução de David Carr. Evanston: NUP, 1970, pp. 48–49.

[24] Heidegger, Martin. “The Age of the World Picture,” “The Question Concerning Technology” and Other Essays. Tradução de William Lovitt. New York: Garland Publishing,  1977, pp. 129–30; grifos nossos. [Nota da tradução: reproduzimos a tradução de Alexandre Franco de Sá, encontrada no livro: Heidegger, Martin. Caminhos de floresta. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p.112].

[25] Deleuze credita a William Burroughs sua adoção do termo controle – Deleuze participou da influente conferência “Schizo Culture”, realizada na Universidade de Columbia, em 1975, onde Burroughs teve uma fala intitulada “The Impasses of Control” – contudo, a verdadeira origem do controle não é mistério algum: cibernética, teoria dos sistemas, autômatos celulares, teoria dos grafos, e campos relacionados.

[26] Ver: Latour, Bruno. “From Realpolitik to Dingpolitik or How to Make Things Public”. In: Latour, Bruno; Weibel, Peter. Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge: MIT Press, 2005, pp. 14–43.

[27] Power, Nina. “The Dialectics of Nature”. Disponível em: bit.ly/Pn6i5o. Dando o crédito contrário, os proponentes da filosofia orientada a objetos, como Bogost ou Bryant, provavelmente inverteriam a valência da pergunta de Power, perguntando se cada entidade poderia não ser tão significativa quanto qualquer outra.

[28] Jean-Paul Sartre, Jean-Paul. “Existentialism Is a Humanism” [1946]. In: Kaufman, Walter (org.). Existentialism from Dostoevsky to Sartre. Tradução de Joan Stambaugh. New York: Meridian Books, 1989, pp. 290–91, 299, 301. [Nota da tradução: reproduzimos a tradução de Rita Correia Guedes, na obra: Sartre, Jean-Paul. Sartre: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1987, pp. 6; 12-13; 17].

[29] Ver: Heidegger, Martin. “Letter on Humanism” [1947]. Tradução de Frank Capuzzi e J. Glenn Gray. In: Farrell, David (org.). Basic Writings. New York: Harper, 1977; texto escrito como resposta a Jean Beaufret, mas tendo por base o “Existencialismo é um humanismo” de Sartre. A passagem também é notável porque contém uma das raras referências de Heidegger a Marx, cuja visão da história ele considera “superior” (p. 243). [Nota da tradução: reproduzimos a tradução de Emmanuel Carneiro Leão, na obra: Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 51].

[30] Ao esquadrinhar as opções, atentamos a um equívoco. Vamos clarificar, a questão não é entre humanismo e não-humanismo, propalado por muitos pensadores discutidos aqui, como uma escolha entre kantismo e realismo. Meu argumento não é uma elegia do humanismo, sartriano ou não, à custa do não-humano. Este é um falso debate. Como eu irei argumentar aqui, o debate não é entre realismo e kantismo, mas entre realismo e materialismo. Em outras palavras, a questão não é objetos versus humanos, mas sim o real versus a história. Pois, como sabemos, os objetos têm história como nós.

[31] Tomo a expressão emprestada do fascinante livro de Mark Fisher, Capitalist Realism: Is There No Alternative? (London: Verso, 2009).

[32] Embora o princípio do “pé de igualdade” apareça em vários filósofos realistas contemporâneos, Harman é provavelmente o mais ávido em reiteradamente alegar o “pé de igualdade”. São muitas citações possíveis, contudo, observe, por exemplo, as páginas iniciais de seu recente livro sobre Latour: “O que existe são os actantes: carros, metrôs, verniz para canoa, casais brigando, corpos celestes e cientistas, todos no mesmo pé metafísico”. O comentário do lixo vem um pouco depois disso: “Vimos que Latour insiste na absoluta democracia de objetos: um mosquito é tão real quanto Napoleão, e o plástico na lata de lixo não é actante menor que a ogiva nuclear” (Harman, Prince of Networks, pp. 22, 34).

[33] É claro que isso não é inteiramente verdade, uma vez que os escritos de Deleuze foram muitas vezes severamente arquitetados contra todas as perversões de poder que saturam a vida cotidiana: o ego, o pai, a repressão, o Estado, e mesmo a dialética. Contudo, o deleuzianismo tem se tornado desalinhado nas últimas décadas, à deriva de seus objetivos originais (ou talvez como consequência de que tais objetivos foram alcançados).

[34] A mais inspirada articulação contemporânea desta disposição é a teoria dos pontos em Badiou, que se distancia da depravação neutralizadora de mundos planos e atonais, alinhando-se incisivamente em um longo eixo binário de decisão. Ver: Badiou, Alain. Logics of Worlds: Being and Event, 2, trad. Toscano (Londres: Continuum, 2009). “Um ponto é um campo de teste transcendental para o surgimento de uma verdade […]. Um ponto é a cristalização do infinito em uma figura – que Kierkegaard chamada de ‘a Alternativa’ – do ‘ou… ou então’, o que também pode ser denominado escolha ou decisão” (pp. 399, 400). Ou, como destaca Hallward: “Um ponto é um lugar no qual a participação em um mundo pode polarizar em um simples sim ou não, a favor ou contra, para trás ou para frente, e assim por diante”. Peter Hallward, Peter. “Order and Event: On Badiou’s Logics of Worlds”. New Left Review 53, Sept.– Oct. 2008, pp. 106-7. O nome que Badiou dá a tais mundos planos e atonais é “materialismo democrático”. Levando em conta o modo como eu uso a terminologia neste ensaio, o nome mais acurado para o parlamento das coisas latourniano-harmaniano – e aqui Badiou não iria discordar – seria realismo democrático. Para mais a respeito da distinção de Badiou entre materialismo democrático e materialismo dialético, ver: Badiou, Logics of Worlds, pp. 1-4.