
UMA REDE É UMA REDE É UMA REDE: REFLEXÕES SOBRE O COMPUTACIONAL E AS SOCIEDADES DE CONTROLE
DAVID M. BERRY
ALEXANDRE R. GALLOWAY
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Originalmente publicado em:
Theory, Culture & Society, volume 33, issue 4, 2016; pp. 151-172.
Tradução: Ednei de Genaro

A “rede” tornou-se um conceito-chave para o entendimento de uma era cada vez mais pós-digital, sedimentada em compreensões contemporâneas das especificidades das tecnologias digitais na vida social. Em variados campos, as tentativas de estudar e interpretar o digital foram destacadas por meio de uma lente de “rede”, uma óptica que tem sido crescentemente sujeita a críticas consideráveis, mas que permaneceu notadamente consistente enquanto explicação estrutural. A recente abordagem de Galloway da mídia, que incorpora a não-filosofia de Laruelle (GALLOWAY, 2014), problematiza essa estima às redes e procura explorar as “especificidades e vicissitudes dos computadores e de outras máquinas digitais”, utilizando que poderíamos denominar de método de exploração “não-mídia” a fim de uma releitura crítica do digital. Isso vem a ser um conhecimento não-filosófico rigoroso do “kernel” [núcleo] da mídia (digital), a fim de investigar a causalidade determinística encontrada em uma ontologia da mídia, que enfatiza sua causalidade unidirecional e seu status final enquanto fundamento de possibilidade. Isto é, busca contestar e explorar um conjunto de reivindicações realistas utilizando a tradição rigorosamente não-filosófica de Laruelle, especialmente aquelas que procuram alcançar o cerne da mídia, na “coisa em si”. Contudo, Galloway igualmente emprega Laruelle para repensar a filosofia e a mídia em um meio computacional, argumentando que “é impossível repensar a filosofia sem pensar a digitalidade. É impossível pensar a filosofia sem interrogar o zero, o um, o dois, o múltiplo, e as distinções realizadas entre tais termos” (GALLOWAY, 2014, p. 219).
Se levarmos a sério as reivindicações de François Laruelle de que é possível realizar o que ele chama de “não-filosofia” – um projeto que busca um “kernel não-filosófico” dentro de um sistema filosófico –, então qual seria a implicação para o que nós estamos aqui denominando de método de “não-mídia”? O próprio Laruelle realizou um projeto em relação ao marxismo na Introduction au non-marxisme (2000), onde ele procura “empobrecer filosoficamente” o marxismo, com a finalidade de “universalização” por meio de um “modo científico de universalização”. Laruelle, na interpretação de Galloway, procurou desenvolver “uma plataforma ontológica que, embora deixando espaços para certos tipos de causalidade e relação, nega radicalmente a mudança de seja o que for” (GALLOWAY, 2012, p. 194). Por exemplo, ao buscar um marxismo “não-euclidiano”, Laruelle argumenta que poderíamos descobrir, de certo modo, o “ingrediente” não-filosófico, como Galloway denominou. Encontrar o “kernel” não-marxista serve como ponto de partida, enquanto “sintoma e modelo”, para realizar uma investigação sistemática.
A partir de tal abrangente conversação, Berry e Galloway exploram as implicações do sintoma e do modelo que Galloway extrai de Laruelle, em seu novo livro Against the Digital (GALLOWAY, 2014), e os métodos alegóricos introduzidos no livro Excommunication, escrito em coautoria (GALLOWAY et al., 2013). O objetivo é revelar as implicações de apreender a escrita teórica das mídias e do (não)pensamento do digital em um momento que as redes digitais se proliferam e, como Galloway assevera, é urgente que “esqueçamos Deleuze”. Berry e Galloway refletem, pois, acerca das consequências para a teoria das mídias, para o pensamento sobre os objetos de mídia, bem como as decorrências da virada de Galloway contra o digital[1].
David M. Berry: Em minhas próprias pesquisas, também estou interessado nos modos pelos quais podemos desenvolver uma teoria crítica pós-fundacional e descentrada em relação à nossa sociedade computacional contemporânea (BERRY, 2014). Você pensa que seus trabalhos fazem cruzamento com tal projeto, ou os pensa de outra maneira?
Alexandre R. Galloway: Eu observo coisas como descentralização e anti-fundacionalismo enquanto talvez tendo uma utilidade tática, mas que carece de uma utilidade mais duradoura. Não vamos esquecer que o capitalismo burguês é o maior proponente do anti-fundacionalismo e da descentralização. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Nada quer mais destruir as essências e os corpos soberanos do que as grandes empresas. Não há melhor exemplo de soberania descentralizada que o império global. Sou muito paranoico para assinar uma dessas coisas. É por isso que eu sou um materialista.
Eu sou do tipo que se poderia denominar um “fundacionalistas fraco”. A meu ver, um fundacionalismo fraco significa: “Eu não tenho dogma, exceto…”. Ou, de forma mais prolixa: “Sou antidogmático e não tenho nenhum dogma (exceto para este pequeno fragmento de dogma-x)”. Dogma-x refere-se a qualquer tipo de imagem das coisas. Pode ser observacional ou metodológico, provisório ou total, pequeno ou grande. Afirmar que “tudo é água” é articular algum dogma-x. Dizer “tudo é material” é um dogma-x. Assim também são os grandes mantras da criticidade moderna: “pense livremente”, “sempre historicize” ou as “condições de possibilidade” do pensamento.
Mesmo os céticos, pragmáticos e empiricistas – os heróis antidogmáticos – têm seus próprios tipos de dogma-x: para o cético, a noção de que o conhecimento é falível; para o pragmático, o compromisso com a aplicação prática; para o empiricista, a religião da experiência sensorial. E mesmo as mais intrépidas posições antiessencialistas, como o pós-estruturalismo ou a desconstrução, têm suas próprias versões de dogma-x: “não há nada fora do texto” ou “toda a racionalidade contém um jogo de suplementariedade”. Dogma-x é uma reivindicação, uma reivindicação formulada enquanto uma imagem do mundo. O fundacionalismo fraco significa que, independentemente da natureza antidogmática ou crítica de qualquer reivindicado conhecimento particular, todas essas reivindicações de conhecimento são reivindicações e, portanto, tais incorporam algum tipo de dogma-x, não importando quão mínimo seja. Levaria mais tempo para demonstrar, contudo, em essência, eu acredito que todas essas posições filosóficas, quando totalmente formuladas, são fundacionalistas fracas (no mínimo; elas podem ser fundacionalistas fortes também).
DMB: Como você emprega essa abordagem materialista “fundacional-fraca”?
ARG: O uso mais sensato do dogma-x, e a melhor maneira de mitigar seus perigos, é sempre ficar do lado do genérico ou do comum. Se estamos fadados a ter uma pequeno fragmento de dogma-x, a melhor forma de utilização do dogma – chame isso de um fundamentalismo, se quiser – é na forma de um materialismo insuficiente. E note que tal fundacionalismo é fraco de maneira dupla. O dogma-x em si mesmo é o menor dos fragmentos. Não ocupa o papel de Primeiro Motor ou de causa absoluta, mas sim determina o “em última instância”, como Althusser e Laruelle gostavam de dizer. Da mesma forma, um materialismo genérico insuficiente é, se quiserem, uma “filosofia do empobrecimento”. Vejo isso como absolutamente essencial para qualquer tipo de projeto político ou ético hoje.
A chave, pois, é selecionar esse dogma-x com o máximo cuidado. Vastas áreas do pensamento contemporâneo são alheias aos seus próprios dogmas-x ou, quando conscientes deles, têm construído seus dogmas-x de maneiras ambíguas. Considere o que chamo de pessimistas reticulares. Seus dogmas-x? “Tudo é uma rede”. Isso me parece uma forma bem questionável de fundacionalismo por uma série de razões. Primeiro, é muito presentista para passar no “teste do riso”. (Conjeturo: em 1860 eles teriam dito “tudo é uma máquina a vapor”? Aff!) Cega por tal presentismo, a reivindicação é simplesmente incorreta de várias formas; pense em todas as coisas que não são redes. Terceiro, a reivindicação deles colide diretamente com as formas contemporâneas das redes de poder e, de tal modo, perde uma esplêndida oportunidade de contestá-las.
DMB: Por “fundacionalismo fraco” você está se referindo a uma ontologia mínima guiando seu trabalho?
ARG: Sim, e necessitamos urgentemente de teorias sobre essa própria ontologia “mínima”, a condição do fraco. Você pode dizer que eu sou uma espécie de nietzschiano reverso. Um sujeito forte que deliberadamente supera a falência do mundo pode ter sido uma posição de sujeito radical em certo momento do passado. Contudo, hoje o gesto mais radical é recusar a suficiência de poder. Recusar a própria suficiência. (Resumidamente, esse é o projeto de Laruelle.) Precisamos de tal estratégia para combater o império, para combater o patriarcado, para combater o fascismo, tanto micro como macro.
DMB: Como você compreende essa noção de “ontologia mínima”?
ARG: Considere a antiga diferença entre filosofia e ciência. A filosofia é algo transcendental no que tange o real. A ciência genérica, ao contrário, é algo imanente no que tange o real. A filosofia utiliza a estrutura-enquanto [as-strutucture], a ciência, a estrutura-em [in-structure]. De um ponto de vista existencial, a filosofia realiza a mesma questão repetidamente, “o que é x?”, ou qual é a identidade de tal ou qual coisa? Do ponto de vista ontológico, a indagação é similar, “tudo é x”, ou Todas enquanto o princípio de unidade que subentende qualquer coisa.
A ciência genérica faz isso de maneira diferente. Contra a abordagem filosófica (“o que é?”), a questão existencial da ciência é “x é o quê?”, ou como tal ou qual coisa é uma instância de identidade? Da mesma maneira, a indagação ontológica genérica é “x é tudo”, ou qualquer coisa enquanto princípio de unidade.
Sobre o acima, os pré-socráticos são muito mais interessantes do que tudo o que veio depois. Ainda, o propósito não é tanto oferecer rubricas explicativas como “água é tudo” ou “fogo é tudo”. Em vez disso, devemos começar com “tudo é água” ou “tudo é fogo” e seguir a partir daí. Em última análise, a questão genética não é “o que é x?”, mas “o que é tudo?”. O que é Tudo? O que é o uno? O que é a tendência unária de todo ser? E como podemos nos afastar do ser de modo a descobrir o uno dentro da tendência unária?
O mencionado dogma-x fecha o círculo. O dogma-x deve ser submetido a um princípio de insuficiência. Isso impele o dogma na direção do genérico e o desvia de armadilhas como essencialismo e universalismo liberal. (Apesar de sua incompatibilidade geral, Badiou e Laruelle sintonizam-se neste caso: Badiou (2007, p. 185) denomina vazio, mas o genérico de Laruelle é tão empobrecido e desembaraçado quanto algo poder permanecer sem desaparecer do nada. O genérico está ‘à beira do vazio’, como Badiou gosta de dizer.) Forçar o dogma-x na direção do genérico resulta em uma base débil, insuficiente e geral sobre a qual as formas normais de crítica antidogmática podem surgir melhor.
O que Laruelle chama de “ciência genérica” também aparece com outro nome: não mais filosofia, mas “teoria”. Filosofia é sempre inflacionária e maximalista. Mesmo os cépticos mais obstinados são filosóficos porque se mantêm autossuficientes – cepticismo enquanto “apropriado” para pensar. Por contraste, a teoria cria um minimalismo no pensamento. A teoria é uma ciência rigorosa da inadequação da vida material.
DMB: Em minhas pesquisas estou interessado em explorar como o trabalho teórico é esteticamente teórico, e aqui quero dizer em termos de um método informado pela razão estética ou mimética, e teoricamente estético, de modo que continua com as estruturas de mediação de objetos constitutivas da realidade sócio-histórica. Seu trabalho explora temas similares?
ARG: Que pergunta fascinante. Certamente “primeira filosofia” sempre esteve ligada intimamente com coisas como representação e mimese. Do Livro de Gênesis a Pigmalião e Platão, a existência das coisas no mundo frequentemente esteve ligada com as noções de criatividade, arte e expressão. Não é exagero dizer que a teoria da arte de Platão é uma teoria do ser, e vice-versa. Gosto quando essas conexões são explicitadas: Deleuze classificando Leibniz como um filósofo barroco, e assim por diante. Talvez devêssemos aprender com isso e descrever mais claramente os pensadores de acordo com os anseios estéticos que eles exibem. Ou o inverso, investir mais em caracterizar a arte como racionalidade pura.
No que diz respeito às “estruturas de mediação dos objetos” em sua pergunta, eu recentemente li que o arquiteto Frank Gehry foi contratado para desenhar uma expansão da sede do Facebook em Menlo Park, na Califórnia. A atual sede do Facebook está no antigo prédio da Sun Microsystems, tendo sido a antiga planta hierárquica restaurada para um ethos mais aberto e emergente. É a grande fábula da era da informação: estrutura hierárquica superada por horizontalidade emergente. A Sun mesmo está em declínio, vulnerável às novas empresas.
Mas por que Gehry para o novo prédio de ampliação, o “Facebook East”? Não seria um pouco incongruente? Agora, aos 84 anos, Gehry, é a quintessência do desconstrutivismo de Los Angeles, o indiscutível rei da velha guarda. Um baby boomer, se não por nascimento, então por espírito, Gehry projetou um edifício em Seattle que se parece com o solo de guitarra de Jimi Hendrix, e no campus do MIT ele projetou outro edifício que “se parece com uma festa de robôs bêbados reunidos para celebrar”. Contudo, tem-se o Mark Zuckerberg, do Facebook, o mais emblemático dos novos executivos dot-com, jovem, entusiástico e podre de rico. Um multibilionário de 28 anos [2015] que construiu sua riqueza online. Ao contrário dos grandes magnatas do passado, ele não opera com aço, navios, petróleo ou bancos, ele explora as relações interpessoais. Facebook não opera na esfera do trabalho, mas na esfera do lazer, não em commodities ou manufaturas, mas em amizades (e amizades de amizades).
Na verdade, Gehry e Zuckerberg são excelentes compartes, porque eles sincronizam de forma praticamente idêntica na questão das estruturas de mediação de objetos. Considere o velho mantra do design modernista: a forma segue a função. O modernista incorpora as virtudes da padronização industrial e da regularidade geométrica, aproveitando novos materiais como o aço e o vidro. Ou considere o princípio do minimalismo: como os objetos extraem teatralidade. O minimalismo incorpora diferentes tipos de virtudes: o envolvimento necessário do espectador que precisa concluir a obra; a mudança da pintura para a escultura; ou a desmaterialização ainda maior em performance, instalação, happenings e experiências. Mas hoje temos uma nova predominância, os realistas, os vitalistas, os ambientalistas, aqueles nos quais a principal preocupação é a expressividade do material. Hoje as novas virtudes incluem nivelamento sobre a hierarquia, a improvisação sobre a repetição, o jogo sobre o trabalho – tudo isso projetado para libertar o afeto tanto quanto possível, para fazer florescer um vasto plano de expressão maquínica. “A forma segue a função” é mais real hoje do que nunca, somente hoje a “função” tem sido compreendida em termos estritamente matemáticos ou algorítmicos (função como sub-rotina, método, caixa-preta, etc.), não em função mecânica, como foi para o design modernista há 50 ou 100 anos.
De certo modo, Gehry e Zuckerberg são ligeiramente incompatíveis, mas de outro são quase idênticos. Ambos são “ativistas ambientais”, isto é, ambos assumem que as coisas mais importantes do universo são sistemas, ecologias, redes, agenciamentos, ambientes; e, da mesma maneira, ambos assumem que tais ambientes têm uma única responsabilidade, de se expressar, de produzir respostas afetivas, de criar valor, de serem ativos. Claro, eles são ativistas ambientais de uma forma bastante boba e mundana, telhados verdes e tudo isso, mas também são ativistas ambientais porque acreditam de forma bastante militante que o mundo consiste em sistemas vitais. Este é o problema do pessimismo reticular.
DMB: Como podemos compreender essa noção de “pessimismo reticular”?
ARG: Hoje estamos encurralados por uma espécie de pessimismo de “rede” ou “reticular”. E aqui estou aproveitando a noção de “afro-pessimismo” na teoria crítica da raça. Da mesma forma que o afro-pessimismo se refere à armadilha na qual a identidade afro-americana só é definida por meio dos grilhões de sua própria evolução histórica, o pessimismo reticular afirma, em essência, que não há como escapar dos grilhões da rede. Não há como pensar dentro, por meio ou além das redes, exceto em termos das próprias redes. De acordo com o pessimismo reticular, as respostas ao poder em rede só podem ser concebidas em termos de outras formas de rede. (E assim, para lutar contra o Google e a NSA [National Security Agency], precisamos de ecologias, agenciamentos ou multiplicidades.)
DMB: Existem tendências identificáveis no pensamento ou comentaristas que você considera emblemáticos dessa forma de pensamento?
ARG: Sim, um novo panteão de filósofos dot-com reina supremo hoje, pronto para proclamar ininterruptamente que “tudo é uma rede”. Mark Zuckerberg: pessoas são redes. Donald Rumsfeld: o campo de batalha é uma rede. Bruno Latour: a ontologia é uma rede. Franco Moretti: Hamlet é uma rede. David Joselit: a arte é uma rede. Guy Debord: a cidade pós-capitalista é uma rede. John Von Neumann: a computação é uma rede. Konrad Wachsmann: a arquitetura é uma rede.
DMB: Existem implicações políticas que decorrem dessa posição?
ARG: O pós-modernismo acabou definitivamente; temos uma nova metanarrativa para nos guiar – o empirismo reticular. Bem-vindo à nova era das trevas! Ao não oferecer nenhuma alternativa à forma de rede, o pessimismo reticular é profundamente cínico porque exclui qualquer tipo de pensamento utópico que possa acarretar uma alternativa às nossas muitas redes invasivas e difundidas. E tudo isso muitas vezes sob a égide de “Deleuze” – nosso outrora querido Deleuze!
DMB: Parece-me que é necessário abordar a importância de uma mediação não opressiva entre a teoria crítica e a sociedade contemporânea em nosso trabalho teórico, e aqui estou pensando na maneira como se pode harmonizar o método de estudo e o objeto de estudar sem violentar a complexidade das relações históricas e sociais. Na sua abordagem, o que você acha que são os caminhos a seguir para fazer isso?
ARG: Devemos esquecer Deleuze. É inquietante admitir, dado o quão influente Deleuze tem sido em meu próprio pensamento. Mas é imperativo hoje que esqueçamos o deleuzianismo em todas as suas várias formas.
Primeiro, devemos esquecer os Google Deleuzianos, aqueles que veem o mundo como um agenciamento vital, ofertando incontáveis recompensas de conhecimento – e riquezas. Das nuvens, aos humanos, aos moluscos, às moléculas, o mundo nada mais é do que sistemas. Linhas de fuga fatiam os agenciamentos, criando novas paisagens de vida. Os sistemas são abertos, dinâmicos e robustos. As redes produzem valor. Esses são alguns dos vários mantras dos Google Deleuzianos.
Também devemos esquecer os Carl Sagan Deleuzianos. Lembra-se de Carl Sagan e suas odes espantosas sobre “bilhões e bilhões de estrelas”? Os Carl Sagan Deleuzianos são aqueles que pensam que a ontologia trata de produzir uma sensação de grandeza sublime na mente do pensador. Esses tipos de deleuzianos assumem que a “natureza” e a “natureza humana” coincidem e que o mundo existe “para nós” ou, mais especificamente, para “impressionar-nos”. Para os Carl Sagan Deleuzianos, ontologia significa fantástico-logia.
Finalmente, devemos esquecer os Fraldas Molhadas Deleuzianos, ou aqueles que, numa infindável reencenação dos anos 1960, pensam que ser político é liberar os próprios desejos. (Não vamos esquecer que todo o plano de negócios do Facebook é baseado na liberação do desejo.) Para os Fraldas Molhadas Deleuzianos, tudo é uma máquina desejante movida por uma reserva infinita de perversidade polimorfa. Eles riem e choram, mamam e cagam, caem e se levantam. O mundo é uma caixa de areia gigante, cheia de brinquedos. Todo mundo que eles encontram é um Pai ou Mestre em potencial que pode ameaçar seu desejo, alguém para ser destronado, rebaixado e até morto. Cada ato se torna uma revolução na casa de bonecas – cortem suas cabeças!
DMB: Se formos cortar a cabeça de Deleuze, em uma tentativa paradoxal de interromper as “destronadas” aspirações deleuzianas de teoria e prática, com o que substituiríamos este trabalho teórico? Ou você tem em mente algum outro registro para pensar um mundo pós-deleuziano?
ARG: Estou debochando, obviamente. O problema é menos com Deleuze do que com certo tipo de escola deleuziana que surgiu desde sua morte. Devemos esquecer Deleuze, mas apenas uma interpretação limitada e um tanto pervertida de Deleuze. Na verdade, existem dois Deleuze, o Deleuze de 1972 e o Deleuze de 1990. O Deleuze de 1972 é o pensador da subjetividade maquínica e da sistematicidade diferencial. O Deleuze dos anos 1990 é o pensador do controle e da transformação histórica. Infelizmente, o primeiro Deleuze é tão comum hoje que se tornou essencialmente uma palestra TED. Vejo o Deleuze dos anos 1990 como a voz mais radical. Por exemplo, os pessimistas reticulares defendem o Deleuze de 1972 enquanto ignoram o Deleuze de 1990. O legado de maio de 1968, e tudo o que ele representa, desempenha um grande papel. Estou pensando no personagem Maude no filme Ensina-me a viver [Harold and Maude], e na exausta noção de que libertação significa passar por semáforos em um carro veloz.
Mas enquanto esquecemos Deleuze, devemos também nos lembrar dele. Devemos nos lembrar de Deleuze, o antifascista. Devemos nos lembrar de Deleuze, o pensador do materialismo e da imanência. Devemos nos lembrar de Deleuze, o comunista.
DMB: Ao pensar sobre o reticular, também estou interessado em sua crítica ao que você chamou de “empiristas reticulares”. Como a crítica (não) filosófica nos auxilia a pensar sobre a base infraestrutural e a desenvolver uma crítica material e ideológica?
ARG: Dez anos atrás, em Protocol, escrevi que protocolos e redes são “contra a interpretação”. Naquela época eu estava tentando descrever as qualidades desta nova infraestrutura reticular. Uma das questões-chave foi a maneira como os computadores são intérpretes muito fracos – eles são, em termos muito literais, anti-hermenêuticos. Portanto, não é de se estranhar que, com uma mudança no modo de produção desde o início dos anos 1970, tenhamos uma mudança na ideologia de como o conhecimento é produzido. Os empiristas reticulares são mais ou menos dominantes hoje. De Nate Silver a Franco Moretti, o obstinado empirismo do big data está triunfando sobre abordagens mais interpretativas ou normativas. Para ser um trabalhador do conhecimento hoje, é preciso simular uma espécie de pragmatismo sóbrio e lidar com o mundo empiricamente. Em certo sentido, todos nós nos tornamos aclamados jornalistas ou, na melhor das hipóteses, cientistas sociais, ansiando simplesmente observar e descrever o mundo. Bruno Latour confirma isso recentemente em seu An Inquiry into Modes of Existence: nós todos devemos ser, como William James, empiristas radicais; todos nós devemos ir além do “senso comum” para o “bom senso”. De fato, Deleuze, bendito seja, é o exímio empirista reticular. Deleuze é afirmativo, não dialético, centrado na rede e pode ser considerado um dos grandes proponentes de um empirismo radical.
Devemos resistir a tal empirismo? Que ideia boba, claro que não. O empirismo é essencial. Mas também é totalmente banal. O empirismo é algo semelhante à respiração. Todos nós devemos respirar ar para permanecermos vivos. Mas o espírito da humanidade não flutua na respiração.
O trabalho de Badiou em Logics of Worlds é uma crítica importante desse empirismo reticular. Estou pensando em sua frase “apenas corpos e linguagens” das passagens iniciais do livro. Afirmar que existem “apenas corpos e linguagens” é o principal perigo da vida contemporânea, porque sugere que nada existe exceto as entidades e as estruturas simbólicas que as organizam. Mais adiante no livro, ele usa o conceito de um mundo “atonal” para evocar algo semelhante. Os mundos atonais são mundos sem vida, mundos planos, mundos que não têm topografias. Os mundos atonais expressam que existem apenas corpos e linguagens – em outras palavras, que existem somente objetos no mundo e as várias relações que combinam e organizam os objetos. Para Badiou, isso é o máximo em cinismo, pois nega o evento. Os mundos atonais têm ser, e nada mais. Eles têm ser sem evento.
Conscientes ou não, os empiristas reticulares fazem a mesma afirmação: ser sem evento. Por exemplo, em Latour nada pode realmente mudar porque não há nada em sua obra que vá além de uma série de quadros descritivos para corpos e linguagens. Latour é muito deleuziano nesse sentido porque ele insere a diferença (juntamente com a mudança, o processo, a transformação, etc.) dentro da infraestrutura reticular. Por exemplo, os eventos são relativamente banais em Deleuze, ao passo que são extraordinários em Badiou. Células se dividindo… Versus o assalto ao Palácio de Inverno. (Badiou é o DeMille da filosofia: tudo é sobre o Grande Evento.) Por causa disso, muitos acusaram Latour de promover uma ontologia mais ou menos neoliberal, voltada para o mercado, na qual todas as coisas são atores que se encontram em pé de igualdade para trocar, traduzir, arbitrar e, de fato, concretizar sua própria existência. Para esses acusadores, a principal falha de Latour é política, pois, na melhor das hipóteses, ele se abstém da questão política ao naturalizá-la e, na pior, auxilia involuntariamente a ideologia dominante, endossando-a e recapitulando-a. Admito que estou convencido de tais acusações e considero o trabalho de Latour superficial por causa delas.
Latour ainda acredita no velho mito de que “redes são suficientes”. Ele ainda acredita que os bazares são melhores que as catedrais, que os sistemas são suficientes para romper as hierarquias, que as redes corroem o poder do soberano, que os mercados são mais naturais, mais democráticos e a mais precisos na heurística científica para redistribuir e, de fato, definir o conhecimento. Tais alegações são frequentemente necessárias, e muitas vezes são verdadeiras dentro de uma arena limitada. Contudo, Latour não consegue ou não quer ir mais além, dar o último passo e reconhecer a historicidade das redes. Tal passo requer uma série de coisas, mas a mais importante demanda que reconheçamos a relação especial entre as redes e a infraestrutura industrial, uma relação que começou em meados do século XX e se tornou dominante agora na virada do milênio. Latour tem pouco interesse na contingência da sistematicidade. Ele não concordaria comigo que existe uma fase histórica “após a descentralização”. E mesmo que pudéssemos convencê-lo de tal periodização histórica, ele provavelmente não concordaria que essa nova infraestrutura deveria ser alvo de críticas.
DMB: Latour afirmou que a crítica está perdendo força, argumentando, de forma pouco convincente, que “a teoria crítica morreu há muito tempo” (LATOUR, 2004, p. 248). Você está apontando para outro tipo de abordagem pós-ideológica, quiçá como um “real” laruelleano (reconfigurado)?
ARG: A crítica só perde força se o pensamento se tornar servo de seu ambiente natural; somente se o mundo das redes for tomado como o único mundo-rede. Latour, em última análise, evita tanto os modos de crítica kantiana como marxista: negando Kant, ele evita o tipo de investigação que examinaria as condições de possibilidade subjacentes ao presente estado de coisas, na esperança de uma autoposição, por meio de um melhor autoesclarecimento; negando Marx, ele evita o tipo de investigação que sobrepõe uma estrutura dupla de antagonismo ao estado de coisas, na esperança de destruir e preservar o mundo em uma forma superior. Em outras palavras, Latour apregoa uma espécie de “decisão reticular” em que mercados, redes e outros tipos de trocas econômicas são considerados suficientes para descrever qualquer situação. Para evitar a armadilha latouriana, é preciso retirar-se da decisão reticular, recusando-se a decidir a favor da rede e, finalmente, descobrindo a insuficiência genérica dela. (É assim que se chega ao “real laruelleano” evocado em sua pergunta.)
DMB: Se nos retirarmos da “decisão reticular”, que abordagem vem “depois”?
ARG: “Depois” é uma maneira útil de pensar acerca da periodização histórica e de outros tipos de fenômenos diacrônicos. Por exemplo, fui tremendamente influenciado pelo pequeno ensaio de Deleuze, “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”, no qual ele descreve um período histórico, apelidado de sociedade de controle, que vem depois do que Foucault chamou de sociedades disciplinares e soberanas.
DMB: O artigo de Deleuze (1992) continua sendo uma descrição chave, apesar de provocativamente ambígua, de uma sociedade emergente de “controle”, fortemente dependente da computação e das redes digitais. Você poderia explicar o que você acha que vem “depois” das redes e como Laruelle é útil para pensar na sociedade de controle?
ARG: No caso de redes, preposições como “depois” talvez sejam menos úteis. Sei que soa pedante, mas devemos estar atentos a como tais preposições indicam – até esculpem – nosso pensamento. A maioria do pensamento crítico ainda se apega a um conjunto canônico de estruturas relacionais: meta, pós ou depois. Mas tudo isso implica algum tipo de desenvolvimento, troca, reversibilidade, representação, combinação, negação ou síntese. Tais estruturas permanecem completamente metafísicas.
A pergunta de Laruelle não é tanto sobre o que vem depois das redes, mas o que está “dentro” das redes. Ou, em outras palavras: qual é a identidade imanente das redes? Como mencionei anteriormente, a filosofia transcendental tende para a estrutura-enquanto [as-structure]. Algo aparece “enquanto” outra coisa. Em contraste, a ciência materialista tende à estrutura-em [in-structure]. Algo permanece “dentro” [“in”] do que quer que seja. A primeira é o que Marx chamou de “forma de aparência”. A última vem sob muitos nomes: Deleuze tendia à “univocidade” ou a “falar a si” [“speaking in one”]; Laruelle usa termos como “in-One” ou “in-person”.
Acho que a estrutura-em é muito mais útil para a investigação teórica, pois se afasta definitivamente do legado da filosofia transcendental. Vejo isso como a principal tarefa de qualquer materialismo. Ou, pelo menos, mostra uma maneira de aumentar a forma “histórica” clássica de materialismo (Marx qua Marx) com uma forma rigorosamente sincrônica de materialismo (o genérico one de Laruelle).
As apostas para mim são completamente utópicas e, portanto, sem meias palavras. Precisamos urgentemente pensar a utopia aqui e agora! O difícil é determinar como o pensamento utópico realmente funciona. Junto com Meillassoux, Laruelle é talvez o mais utópico dos pensadores ditos realistas especulativos, pois é aquele que mais definitivamente se afasta do cenário correlacionista. O caso de Graham Harman é mais difícil no que se refere à utopia, pois não supera o correlacionismo. Pelo contrário, Harman é o Johnny Appleseed da correlação; ele viaja pelo mundo atribuindo estrutura-enquanto a todas as entidades à vista. Harman toma emprestada a estrutura básica do mundo de Heidegger e então afirma que todo objeto constrói seu próprio mundo ou lugar. Nesse sentido, Harman é algo como um pan-correlacionista. Sua ontologia é uma vasta democratização da correlação que se estende além dos limites do humano. Considere como Harman e Laruelle contrastam sobre o tema da retirada [withdrawal]: para Harman, a realidade está enraizada na retirada do objeto, mas para Laruelle a realidade é descoberta por meio da retirada da decisão filosófica. A retirada do objeto cria um mundo, mas a retirada da filosofia cria um não-mundo. Assim, enquanto Harman é um disseminador de mundos, Laruelle é o exímio pensador do não-mundo, um não-lugar (uma utopia) paralelo a este. Vejo Laruelle como o principal pensador utópico de nossos tempos.
DMB: Certamente, precisamos historicizar as “redes” e colocá-las dentro de uma constelação histórica específica de ideias e práticas. Como você acha que a questão das redes se relaciona com a colaboração nas humanidades, e aqui estou pensando nas humanidades digitais etc.?
ARG: O que os bibliotecários costumavam chamar de “humanidades computacionais” se reinventou sob o meme “humanidades digitais”. Vejo isso como um fenômeno da Web 2.0; em outras palavras, faz parte da subsunção real das redes. A vanguarda do final dos anos 1990 – pessoas como Knowbotic Research ou Etoy – estava participando da fase de subsunção formal, durante a qual a exploração e a transformação reais eram possíveis. Mas agora é a fase de subsunção real: enviar os bots para coletar e valorizar os dados.
As humanidades digitais enfrentam uma série de desafios. Em primeiro lugar, definiu-se como uma comunidade de usuários de ferramentas que favorecem métodos empíricos e positivistas. Isso tem a dupla vantagem de trazer mais estudiosos para o grupo e dotá-los de novas e poderosas tecnologias. Mas, ao mesmo tempo, exacerbou o que poderíamos chamar de problema de Zuhandenheit: as ferramentas são usadas inconscientemente e sem reflexão crítica. Com esse declínio na reflexão crítica, e à medida que as humanidades digitais se expandem, a infraestrutura ideológica se tornará mais ousada.
Como um colega meu gosta de brincar: humanidades digitais é para velhos professores que não entendem de computadores, e para jovens que não entendem de hermenêutica. Claro que precisamos de computação e hermenêutica concomitantemente. Mas isso não é novidade. Uma questão muito mais desafiadora tem a ver com a relação precisa entre computação e hermenêutica. Por que vemos de antemão esses dois termos como diferentes? O que eles têm a dizer um ao outro? Podemos ter uma hermenêutica da computação? Ou uma computação da hermenêutica?
DMB: Meu próprio trabalho chamou atenção específica para a materialidade e especificidade da computação em relação às humanidades como uma tarefa para as humanidades digitais (BERRY, 2012). Como devemos entender as humanidades digitais em relação ao seu trabalho recente?
ARG: Excommunication não responde diretamente a essas questões, mas fornece um quadro de referência mais amplo para críticos e poetas, bem como para engenheiros – ou, na minha linguagem, Hermes, Íris e as Fúrias. Em outros livros, usei a alegoria como o principal método para conectar computadores e hermenêutica. O problema com métodos digitais, tais como os n-gramas, é que eles geralmente não dizem muito. Argumento que a alegoria é um método investigativo muito mais poderoso para pensar acerca do não-humano, dos objetos ou das redes.
DMB: Você sugeriu que Excommunication é sobre assumir uma posição herética sobre a “teoria da comunicação no estilo de comunicação de massa”. De fato, o uso da figuração e da alegoria como meio de falar sobre objetos de mídia parece se afastar da crítica. Você poderia explicar sua abordagem?
ARG: Eu não gostaria de exagerar nossa postura, ou interpretá-la como algum tipo de oposição quixotesca à disciplina. Não é isso. E, de muitas maneiras, meu capítulo sobre “o meio” é muito tradicional, até um pouco antiquado. Os estudos de mídia ainda são um campo muito jovem. Algumas das perguntas mais básicas ainda estão disponíveis para uma exploração mais aprofundada.
Minha contribuição para o livro serve para mapear uma série de alternativas à tradição hermenêutica, que vejo como a tradição dominante nos estudos de humanidades, mesmo que esteja perdendo sua posição hoje. Parto de um conceito muito simples: por que o termo hermenêutica vem de Hermes? Hermes é o deus da interpretação, ou talvez até mesmo o deus da mídia? (Adorei quando Derrida chamou Hermes de “o deus significante”.) E se Hermes é um deus da mídia, existem outros deuses da mídia que negligenciamos? Eu uso essa exploração como uma forma de mapear como o trabalho intelectual mudou no período moderno. Assim, descobrimos rapidamente o “outro” deus da mídia, Íris, e a tradição de mediação que ela representa é diametralmente oposta ao modelo de Hermes. Susan Sontag evocou essa alternativa em seu famoso ensaio “Contra a Interpretação”, um título mais ou menos equivalente a “Contra Hermes”. Mas mostro como não basta simplesmente emendar a hermenêutica com essa tradição alternativa de imediatismo iridescente. Isso nos leva à forma de mediação em rede, uma forma tão antiga quanto o tempo. De fato, os gregos tinham um forte senso de assembleias e multiplicidade na forma das Erínias.
Alguns têm problemas em “voltar para a Grécia”. De fato, após o pós-modernismo, a Grécia Antiga apresenta um duplo vínculo: por um lado, o pós-modernismo destruiu a noção de que a literatura canônica ainda detém qualquer autoridade sobre o que chamamos de cultura hoje e, por outro lado, o pós-modernismo reformulou o desejo de retornar à Grécia como uma forma suspeita, senão perniciosa, de nostalgia. Há uma tendência – particularmente no pensamento alemão de Kittler a Heidegger, e além – de usar a Grécia Antiga como uma forma de explorar essências e origens. Admito que não compartilho da ansiedade que muitas vezes envolve tal movimento. Meus gostos são mais católicos. Precisamos ter uma compreensão dos mundos antigo e moderno. Deveríamos estar escrevendo código de computador e lendo Homero ao mesmo tempo.
Em um sentido muito prático, voltar à Grécia é uma tentativa de expandir o repertório do que conta para os estudos de mídia. John Durham Peters, por exemplo, faz isso muito bem nos capítulos iniciais de seu Speaking into the Air. O objetivo para mim é mostrar que as redes e o pensamento em rede já estão sempre embutidos no coração da filosofia ocidental. As redes são antigas, não apenas pós-modernas. As redes são um modo de mediação, como qualquer outro. Elas não são “mais naturais” ou “mais reais”, apesar do que muitos especialistas e intelectuais tentam afirmar.
DMB: Você poderia explicar o que quer dizer quando diz que “não vê o pensamento grego como literário; [você] vê isso como real”?
ARG: Temos essa noção forjada de deuses gregos sentados em tronos no Monte Olimpo, uma imagem sem dúvida filtrada pela concepção de cidade-nuvem de um paraíso cristão. Mas os gregos viam seus espíritos de maneira muito diferente. Eles os viam simplesmente como vários aspectos do mundo. (A fenomenologia husserliana, de fato, adota essa noção de aspecto de maneiras muito úteis.) Lembre-se de como Hermes é o deus do limiar. Quando você abre a porta para passar por um limiar e ouve o rangido da dobradiça da porta, esse mesmo rangido é Hermes. A dobradiça não se refere apenas a Hermes, nem é causado por Hermes; na verdade é Hermes. Os deuses não residem em uma terra além, mas bem aqui, nesses muitos aspectos do mundo. Os gregos até tinham um nome especial para o estridente Hermes: “Hermes Strophaios” ou “Hermes da dobradiça giratória”.
DMB: Você disse que acha que os estudos de mídia é um campo novo, mas de muitas maneiras (dependendo de onde se pontua), parece-me que o campo está passando por uma espécie de crise de meia-idade à medida que as certezas da era do broadcasting cedem aos streams e às redes digitais. Não podemos deixar de notar as dificuldades que os estudos de mídia têm no encontro com o digital, que mina não apenas suas divisões disciplinares tidas como certas (TV, rádio, impresso, cinema), mas também sua ênfase na representação e na cultura. Qual você acha que é o caminho a seguir para os estudos de mídia?
ARG: Jovem apenas no sentido escolar! Os estudos de mídia deram uma guinada interessante nos últimos 10 ou 20 anos. Durante os anos 1980 e 1990 – fortemente influenciados pelo pós-estruturalismo, pela psicanálise e pelo marxismo cultural – os estudos de mídia tendiam a se concentrar no reino da superestrutura: sujeitos, textos, ideologia, espetáculo, linguagem e assim por diante, enquanto hoje o foco mudou da superestrutura à base. Estou pensando no renascimento de abordagens mais arquivísticas e históricas para estudos de mídia (apelidado de arqueologia de mídia), ou a tendência na mídia digital em direção a métodos mais obstinados e orientados para a máquina (estudos de plataforma, estudos de software). Kittler disse que para ser alfabetizado hoje é preciso conhecer pelo menos uma linguagem natural e uma linguagem de computador. E ele estava certo.
DMB: Mas se não redes para analisar redes, quais você acha que serão as novas inovações teóricas e metodológicas no campo?
ARG: Para ser claro, a inovação metodológica pode não ser o objetivo hoje. Receio que o termo inovação tenha sido corrompido para sempre pela ideologia empreendedora das start-ups. A inovação é um problema ideológico da vida contemporânea; não oferece uma solução. E aqui posso me deslocar da visão oferecida por Wark em seu livro A Hacker Manifesto. Ele define o hacker em termos de novidade e inovação; hackers são aqueles que “produzem novos conceitos, novas percepções, novas sensações, extraídas de dados brutos”. Em contraste, sou bastante pessimista em relação ao novo como categoria e, em vez disso, estou muito mais interessado em conceitos como repetição, retração, colapso, extinção. Considere algo como justiça social. Não precisamos de “inovação” quando se trata de justiça social. Precisamos da promulgação da justiça social. Toda criança sabe como fazer uma sociedade justa. Nós simplesmente precisamos de vontade para realizá-la. Gramsci tinha razão: pessimismo do intelecto, otimismo da vontade.
Badiou é inspirador aqui quando descreve a verdade. Para Badiou, a verdade não é um abrangente grande absoluto – e não é uma espécie de onda perpetuamente crescente de intensificação e processo maquínico conforme a tradição deleuziana. Em vez disso, Badiou fala em termos da fidelidade genérica à verdade fornecida a todos. “O que sabemos sobre a política inventiva pelo menos desde 1793”, escreveu Badiou, “é que ela só pode ser igualitária e não estatista, traçando, no histórico e social grosseiro, a generalidade da humanidade, a desconstrução de estratos, a ruína de diferenças ou representações hierárquicas e a assunção de um comunismo de singularidades. […] A filosofia hoje é o pensamento do genérico como tal”.
DMB: Você falou sobre seu projeto como tendo um “amor ao meio” [love of the middle]. O que você quer dizer com isso?
ARG: O trabalho mais sofisticado em estudos de mídia tende a seguir uma tendência particular: olhar para objetos de mídia é interessante, mas só vai até certo ponto; o que é realmente interessante são os modos de mediação. Daí uma mudança gradual de objetos para processos. Não apenas o telégrafo, mas a telepresença. Não apenas o HTML, mas o protocolo. Não apenas o corpo, mas o gesto. Não apenas “o povo”, mas um processo de realização política. O termo “meio” é uma tentativa de identificar esses tipos de processos ou modos de mediação. Vejo meio como sinônimo de “meio” ou “modo de mediação”.
DMB: Quais são as condições de possibilidade para esse “meio”, e de que forma o “amor” é útil como um conceito para pensar através de um ponto de vista em relação a ele?
ARG: Por que amor? O amor significa muitas coisas: um compromisso com o genérico (ágape), uma relação de intimidade (Eros), um sublime romântico, um desconhecido místico, um sentimento afetivo de alegria e, claro, o amor pode aparecer em quaisquer formas de compulsões, desejos, ou unidades. Em Excommunication, Afrodite forma a conexão entre a mídia e o amor, pois ela é chamada de “aquela que é apaixonada pelo meio”. Então o amor é um conceito de mídia, mas não vamos esquecer que também é um conceito político. Aqui sou muito influenciado por meu professor Michael Hardt e seu trabalho sobre a relação entre o amor e o político. Baseando-se em Spinoza, Hardt fala sobre o amor em termos de alegria, ou o “aumento mútuo de poder” contido na interação coletiva. Em Commonwealth, Hardt e Negri definem o amor como “a produção do comum e a produção da vida social”. Todos esses conceitos giram juntos em minha mente: uma intimidade com o comum; um compromisso com o genérico; mídia como meio; amor como meio – todos eles andam juntos.
DMB: Como você vê a produção do comum desdobrada no sentido político? Existem conexões com a sociedade civil e quais são as implicações para as noções de solidariedade?
ARG: Desde Hegel, se não antes, a sociedade civil tem sido entendida como essencialmente sinônimo de sociedade burguesa [bürgerliche Gesellschaft]. Este é o reino da economia de mercado, do cidadão. A sociedade civil forma um baluarte contra o estado de natureza (e ela própria é subsumida pela forma de estado).
Hardt escreveu um importante ensaio em 1995 intitulado “The Withering of Civil Society”, no qual ele descreveu como as várias instituições da sociedade civil “foram deslocadas […] por uma nova configuração de aparelhos, implantações e estruturas”. Em outras palavras, a velha dicotomia entre o social e o natural – a sociedade civil como refúgio do estado de natureza – deu lugar a um novo cenário em que as tecnologias políticas assumem mais influência do que as estruturas sociais. Aqui Marx estava correto: a sociedade civil é um deserto árido cheio de compromissos, contradições e meias-verdades. Seria sensato acabar com essa categoria – junto com Hegel também! – porque o comum não pode ser encontrado lá. Mas, como Hardt instrui, a infraestrutura tecnocêntrica de hoje não é melhor. Acho que o problema não é tanto com qualquer uma dessas categorias como tais, mas simplesmente com o movimento ideológico que insinua uma diferença elementar entre o natural e o social, com o “controle” tecnofílico sintetizando dialeticamente os dois primeiros e resolvendo assim os problemas que eles parecem inventar. Esses três momentos discursivos não são a indicação de um problema, eles são o problema. O comum não se encontra, pois, em alguma suposta resolução do problema do social, mas no desfazer da estrutura representacional que o sustenta.
DMB: A colaboração, particularmente a escrita colaborativa, é difícil, daí meu interesse em novas formas de prática de escrita, como book sprints e hackathons. Qual foi o processo de escrita que você desenvolveu com McKenzie Wark e Eugene Thacker para Excommunication?
ARG: Colaboração pode ser realmente complicada. Ela é um dos grandes demônios que assombram as humanidades, embora as ciências, ao contrário, sejam muito menos levianas quanto a isso. A maioria dos estudiosos de humanidades colabora muito pouco. Ou, quando o fazem, a colaboração é mascarada por certas infraestruturas ofuscantes, como o trabalho de estudantes de pós-graduação ou a “parceria silenciosa” da esposa/namorada/secretária. Já fiz alguns tipos diferentes de colaboração no passado: a tradução de um livro, vários tipos de coautoria, vários projetos de software que exigem equipes de tamanhos diferentes. Escrever Excommunication foi descomplicado, já que cada capítulo foi um esforço solo. Houve muita conversa cruzada entre nós três, mas, no final das contas, cada capítulo era a expressão de uma única voz.
DMB: Como você concebeu esse projeto e finalizou o processo de escrita?
ARG: A ideia surgiu de uma conversa que Thacker teve com seu editor, e rapidamente se solidificou depois disso. Queríamos explorar a ala mais teológica do pensamento filosófico. Daí a cronologia bruta do livro. Eu me concentro em uma série de divindades arcaicas, Thacker é inspirado pelo monoteísmo herético do misticismo medieval e Wark está trabalhando em uma forma mais moderna e pós-secular de heresia. O conceito de “excomunhão” [excommunication], com suas conotações teológicas e teóricas da mídia, parecia uma estrutura adequada. Desde que começamos a escrever juntos The Exploit, já há vários anos, Thacker e eu nos interessamos pelo não-humano. A coda desse livro abre uma porta que só agora estamos explorando completamente. Nós três rapidamente gravitamos em torno do tema da excomunhão, particularmente a maneira como ela implica algum tipo de mediação com o radicalmente não-humano, o que Thacker chama de “o mundo sem nós”.
DMB: Em relação aos desafios levantados com a colaboração, gostaria de saber se você sentiu que trabalhar com Thacker e Wark impulsionou seu pensamento em direções novas ou diferentes.
ARG: Eugene Thacker tem um conhecimento impressionante de textos filosóficos místicos e esotéricos, e a familiaridade de McKenzie Wark com a história do pensamento radical é inigualável. Estou sempre aprendendo coisas novas com os dois. Eles também se reinventam constantemente, o que eu admiro. Nunca a mesma coisa duas vezes.
O livro de Thacker After Life alterou o curso do meu próprio pensamento de imensuráveis maneiras, particularmente seu tratamento de conceitos como a não-criatura, a inexistência equívoca, a univocidade incriada e o panteísmo sombrio. Seu uso da razão apofática também foi tremendamente útil para minha própria compreensão de Laruelle, não para reforçar algum tipo de transcendental, religioso ou outro, mas para destacar a importância da negação para a metodologia contemporânea. Em outras palavras, enquanto grande parte do pensamento contemporâneo opera por meio de uma lógica de aumento – mais isso, mais aquilo –, estou muito mais entusiasmado com uma lógica de subtração. Um exemplo seria a teoria do evento de Badiou. Precisamos de um tipo de filosofia anoréxica, não inflada. O pensamento é limitado por reivindicações de suficiência transcendental; o pensamento só é liberado através do comum genérico. Eu vejo isso como a chave para desvendar o não-humano.
DMB: McKenzie Wark declarou recentemente na lista de discussão do Empyre que “Excomunhão é uma *condição estrutural*, não algo que alguém escolhe. A comunicação precisa excomungar para se comunicar”. Até que ponto você concorda com ele e quais são as implicações para o pensamento e a prática?
ARG: A questão de uma condição estrutural leva a vários lugares interessantes. Uma maneira de abordá-lo é através da lente do pós-estruturalismo, segundo o qual o exterior é um ingrediente estruturante do interior. Aqui a noção de imediatismo comunicativo é co-constituída com ameaças de desconexão, alienação ou exílio. Falamos muito sobre esse aspecto em Excommunication, particularmente no que diz respeito ao pensamento crítico na última metade do século XX.
Mas também seguimos outra direção. Estou pensando novamente no que Thacker chama de “o mundo sem nós”. O pós-estruturalismo é um discurso incrivelmente poderoso, mas também diminui certas abordagens. Considere o “retorno à verdade” em um pensador contemporâneo como Badiou, ou o “retorno ao absoluto” em Meillassoux. Essa não é exatamente a nossa abordagem, mas tentamos olhar além de uma série de proibições pós-estruturalistas que condicionaram tanto o pensamento crítico por muito tempo. A excomunhão, portanto, é uma maneira de pensar sobre coisas como anti e pós-humanismo, a noção de um exterior absoluto e a possibilidade de mediação estritamente unidirecional.
DMB: Seu novo livro, Laruelle: Against the Digital, aparece provocativamente localizado em relação ao modo contemporâneo de capitalismo informacional. Laruelle é explicitamente citado como um recurso fundamental para pensar a provocação neste trabalho. Você poderia descrever seu argumento no novo livro e como ele se conecta com seu trabalho anterior?
ARG: Em vez de oferecer uma sinopse ou uma anotação crítica do trabalho de Laruelle, o livro visa colidir o método não padronizado de Laruelle com o conceito de digitalidade. Digo conceito de digitalidade porque o assunto em questão não é exatamente a web, os computadores, os videogames ou mesmo os números binários, mas um princípio que subentende e facilita todos eles. Defino a digitalidade como um processo de distinção. Assim, vejo uma semelhança imediata com a noção de “decisão filosófica” de Laruelle. Filosofia e digitalidade exigem um ato fundamental em que algo é dividido em dois. Por exemplo, a metafísica requer a noção de uma divisão entre essências e instâncias. Ou: em um chip de computador, os dados são modelados e processados por meio de diferenciais de tensão. Esta ação fundamental é importante: distinção, divisão, decisão ou discretização. Não tanto o proverbial “zero e um” da cultura do computador, estou focado aqui em “um e dois”, ou o que significa passar de um para dois.
Sabemos que o pensamento pode ser entendido digitalmente, essa é a parte fácil. A racionalidade filosófica funciona dessa forma desde Platão, assim como o computador. (Os chamados filósofos digitais como Stephen Wolfram apenas afirmam o óbvio por meio de uma redundância na terminologia: não há outra filosofia além da filosofia digital!) A parte difícil é especular sobre uma retirada da decisão digital. Nesse sentido, o livro nada mais é do que um enorme experimento de pensamento: é possível pensar não digitalmente? Minha resposta é a mesma dada desde tempos imemoriais: Sim. Precisamos da imanência e do materialismo para realizá-la.
DMB: A teoria crítica argumenta que a filosofia é uma tradição histórica específica ligada à história do pensamento de classe. Como Laruelle é útil para contribuir para um processo geral de reflexão sobre pressupostos básicos dos quais a filosofia seria um exemplo?
ARG: Laruelle dá uma instrução básica, que revela a distinção entre filosofia e teoria – ou “ciência”, como Laruelle, Althusser e outros frequentemente preferem chamá-la. Sua instrução é que a melhor resposta à filosofia não é mais filosofia. A melhor resposta à filosofia é parar de fazê-la.
A décima primeira tese de Marx sobre Feuerbach transmite uma instrução semelhante. Nessa famosa máxima, Marx sugere que os filósofos devem mudar o mundo, não simplesmente interpretá-lo. E em outras partes dos primeiros escritos, Marx delineia claramente entre a filosofia especulativa e o tipo de intervenção teórica necessária para a ação política. Laruelle pode ser efetivamente lido através de uma lente semelhante. A resposta correta à interpretação (filosofia) não é mais interpretação (não mais filosofia). Os “filósofos apenas interpretam o mundo” de Marx é idêntico ao que Laruelle chama de “decisão filosófica”. A questão não é continuar decretando a decisão, mas articular uma ciência teórica rigorosa e imanente dela.
Isso é precisamente o que a teoria crítica sempre fez. Seja por meio de desmistificação ideológica ou experimentos na prática radical, a teoria crítica sempre se colocou contra os poderes naturalizantes das estruturas representacionais. Para Laruelle, o objetivo não é tanto refletir sobre essas estruturas, mas mostrar como realmente existe apenas uma estrutura, a comunalidade genérica da base material.
DMB: Você acha que as revelações de Snowden sobre a NSA fortaleceram as condições para uma crítica às “sociedades de controle” e sua base material?
ARG: Comecei a trabalhar no problema de vigilância de dados em massa com o projeto “Carnivore” no início de 2001. Lançado durante uma fase anterior de monitoramento em massa do governo, o Carnivore era essencialmente um sniffer de pacotes embrulhado em um simples API [Application Programming Interface] para que artistas e designers pudessem visualizar dados de rede em tempo real com uma quantidade mínima de conhecimento de codificação. O projeto foi parcialmente pedagógico (conheça seus dados!) e parcialmente tático (comece a usar criptografia!). As recentes revelações de Snowden apenas confirmaram o que todos já sabiam. Em meu primeiro livro, Protocol, escrevi que, contrariando a sabedoria convencional em torno da natureza aparentemente caótica ou desorganizada dos sistemas digitais, a internet é, de fato, a mídia de massa mais altamente controlada que se tem notícias.
Hoje estamos testemunhando o verdadeiro potencial desse tipo de sistema, não apenas pelo Estado, mas também pelo setor comercial. Um verdadeiro golpe ideológico: a cibernética, desde seu início definida como uma tecnologia de controle e gestão sistêmica, foi lançada sob a bandeira da liberdade individual. O objetivo do pensamento crítico hoje, na verdade, da própria definição de pensamento no sentido mais amplo, é estabelecer uma relação dos dois vis-à-vis com seu objeto, uma relação de diferença, distinção, decisão ou oposição.
DMB: Mais recentemente, você tem usado a noção de “compressão” como um conceito para pensar filosoficamente. Quais são as implicações da compressão para táticas e estratégias ativistas?
ARG: O trabalho sobre compressão – para o qual sou muito inspirado por estudiosos como Jonathan Sterne e Jason R. LaRivière – é motivado pelo que se pode chamar de instinto antibarroco. O barroco tende à supersaturação, à acentuação de uma maneira. O livro de Deleuze sobre o barroco mostra como tal acentuação – ou uma “dobra”, como ele a chama – é de fato a gênese do sujeito moderno. Essa dobra é uma espécie de compressão, ou pelo menos uma espécie de escultura e flexão de forças e energias. Grande parte da vida moderna, pois, depende da relativa compressão ou expansão desse meio vital. O trabalho de Deleuze depende dessa dinâmica em particular. Não mais preso ao modelo altamente comprimido do sujeito freudiano, Deleuze abriu um meio vital descomprimido, valorizando as lógicas expressivas sobre as lógicas compressivas. Ou pense nos novos movimentos sociais da década de 1960 e no modo como a ação política girava em torno da expansão ou liberação da experiência cotidiana. Expresse-se. Libere seu desejo. Recupere as ruas.
Todas essas táticas são tremendamente úteis. No entanto, o mundo é diferente hoje e, portanto, precisamos inventar táticas diferentes. Não devemos esperar que as ferramentas da década de 1960 ainda funcionem. Isso é parte do motivo pelo qual sou atraído pela compressão genérica como tática. Ele quebra os pressupostos ortodoxos da crítica marxista, de que se deve evitar a mistificação e a desnaturalização. No entanto, em uma era de visibilidade obrigatória, de alta resolução e alta largura de banda, me pergunto se um pouco de compactação não é taticamente útil. Eu me pergunto se um mundo criptográfico não é mais atraente hoje do que um mundo descompactado e totalmente legível para todos (legível não apenas pelo Big Other ou pelo Pai, mas pela NSA e pelo Gmail). Eu me pergunto se uma imagem degradada não é melhor do que uma fotorrealista. Heidegger usou a fenomenologia como um caminho para a verdade, a fenomenologia como a busca por “aquilo que se mostra”. Mas a ofuscação pode ser o melhor paradigma hoje.
Referências:
Badiou A (2007) Being and Event. London: Bloomsbury Publishing.
Berry DM (2012) Understanding Digital Humanities. Basingstoke: Palgrave Macmillan.
Berry DM (2014) Critical Theory and the Digital. New York, Continuum.
Deleuze G (1992) Postscript on the societies of control. October 59: 3–7.
Galloway AR (2006) Protocol: How Control Exists After Decentralization.
Cambridge, MA: MIT Press.
Galloway AR (2012) Laruelle, anti-capitalist. In: Mullarkey J and Smith AP (eds) Laruelle and Non-Philosophy. Edinburgh: Edinburgh University Press.
Galloway AR (2014) Laruelle: Against the Digital. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Galloway AR, Thacker E and Wark M (2013) Excommunication: Three Inquiries in Media and Mediation. Chicago: University of Chicago Press.
Hardt M (1995) The withering of civil society. Social Text 45: 27–44.
Laruelle F (2000) Introduction au non-marxisme. Paris: Presses Universitaires de France.
Latour B (2004) Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry 30(2): 225–248.
David M. Berry é Reader na Escola de Mídia, Filme e Música da Universidade de Sussex.
Alexander R. Galloway é professor do Departamento de Mídia, Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York.
[1] Este texto é uma re-apresentação de uma discussão por e-mail entre David M. Berry e Alexander R. Galloway, realizada entre abril e junho de 2014, que foi editada para esclarecer o argumento e o diálogo. As perguntas e respostas podem ter sido mescladas ou reordenadas a partir da troca de e-mail original.