
A CLASSE HACKER
McKENZIE WARK
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Originalmente publicado em:
The Hacker Manifesto. Cambridge: Harvard University Press, 2004. Tradução dos capítulos 1 (“Abstraction”) e 2 (“Class”).
Tradução: Ednei de Genaro
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Abstração
[1] Um dúplice assombra o mundo, o dúplice da abstração. A fortuna dos estados e exércitos, empresas e comunidades dependem disso. Todas as classes em rivalidades, sejam elas dominantes ou dominadas, reverenciam-na – e temem-na. Nosso é mundo é o que se aventura cegamente no novo, com os dedos cruzados.
[2] Todas as classes temem a implacável abstração do mundo, da qual dependem também suas fortunas. Todas as classes exceto uma: a classe hacker. Nós somos os hackers da abstração. Produzimos novos conceitos, novas percepções, novas sensações, hackeadas de dados brutos. Seja qual for o código que hackeamos, linguagem de programação, linguagem poética, matemática ou música, curvas ou cores, somos os abstratores de novos mundos. Quer venhamos a nos representar como pesquisadores ou autores, artistas ou biólogos, químicos ou músicos, filósofos ou programadores, cada uma dessas subjetividades é somente um fragmento de uma classe que emerge, pouco a pouco, consciente de si enquanto tal.
[3] Contudo, não sabemos bem quem somos. É por isso que este livro procura manifestar nossas origens, nossos propósitos e interesses. Um manifesto hacker: não o único manifesto, uma vez que a natureza do hacker é diferir dos outros, diferir até de si mesmo, ao longo do tempo. Hackear é diferir. Um manifesto hacker não pode representar o que recusa representação.
[4] Os hackers criam a possibilidade de coisas novas entrarem no mundo. Nem sempre grandes coisas, ou mesmo coisas boas, mas coisas novas. Na arte, na ciência, na filosofia e cultura, em qualquer produção de conhecimento onde dados podem ser coletados, onde informações podem ser extraídas, e onde nessa informação novas possibilidades para o mundo são produzidas, há hackers hackeando o novo a partir do velho. Embora criemos esses novos mundos, não os possuímos. Aquilo que criamos é hipotecado a outros e aos interesses de outros, a estados e corporações que monopolizam os meios para criar mundos que só nós descobrimos. Não somos donos do que produzimos – somos dominados por isso.
[5] Os hackers usam seus conhecimentos e inteligências para manter suas autonomias. Alguns pegam algum dinheiro e fogem. (Precisamos viver os nossos compromissos.) Outros se recusam a se compromissar. (Vivemos o melhor possível.) Frequentemente, aqueles de nós que seguem um desses caminhos ressentem-se daqueles que seguem o outro. Uma parte se ressente da prosperidade que lhe falta, a outra se ressente da liberdade perdida para hackear o mundo livremente. O que escapa à classe hacker é uma expressão mais abstrata de nossos interesses enquanto classe, e de como esse interesse pode atender aos interesses de outras pessoas no mundo.
[6] Hackers não são gregários. Frequentemente não estamos dispostos a submergir nossa singularidade. O que os tempos pedem é um coletivo hacker que realize um interesse de classe a partir de um alinhamento de diferenças ao invés de uma unidade coercitiva. Os hackers são uma classe, mas uma classe abstrata. Uma classe que faz abstrações e uma classe tornada abstrata. Abstrair os hackers como uma classe é abstrair o próprio conceito de classe. O slogan da classe hacker não é trabalhadores do mundo unidos [united], mas obras do mundo liberadas [untied].
[7] Em toda parte a abstração reina, torna-se concreta. Em toda parte, as linhas retas e as curvas puras da abstração comandam as coisas através de vetores complexos, mas eficientes. A educação ensina o que se pode produzir com uma abstração, contudo, o conhecimento mais útil para a classe hacker é como as próprias abstrações são produzidas. Deleuze: “As abstrações não explicam nada, elas mesmas devem ser explicadas” [1].
[8] A abstração pode ser descoberta ou produzida, pode ser material ou imaterial, mas a abstração é o que o todo hack produz e afirma. De outra forma, abstrair é construir um plano sobre o qual matérias diferentes e não relacionadas podem ser dispostas em muitas relações possíveis. Abstrair é expressar a virtualidade da natureza, conhecer alguma instância de suas possibilidades, atualizar uma relação em infinitivas relacionalidades, manifestar a multiplicidade.
[9] A história é a produção de abstração e a abstração da produção. O que torna a vida diferente de época para a outra é a aplicação de novos modos de abstração à tarefa de liberta-se da necessidade. A história é o virtual tornado real, um hack após o outro. A história é a diferenciação qualitativa e cumulativa da natureza, tal como hackeada.
[10] A partir da abstração da natureza vem a sua produtividade, e a produção de um excedente indo além das necessidades de sobrevivência. Desse aumento do excedente sobre a necessidade surge uma capacidade crescente de hackear repetidas vezes, produzindo mais abstrações, mais produtividade, mais liberação da necessidade – pelo menos em potencial. Porém, o hackeamento da natureza, a produção do excedente, não nos torna livres. Novamente, surge uma classe dominante que controla o excedente sobre a necessidade básica e impõe novas necessidades àquelas populações que produzem esses próprios meios de escapar da necessidade.
[11] O que torna a nossa época diferente é o aparecimento de possibilidades de um novo mundo, há muito imaginado – um mundo livre das necessidades. A produção de abstração atingiu o limiar em que pode quebrar, de uma vez por todas, as correntes que prendem o hacking dos interesses das classes retrógradas e regressivas. Debord: “O mundo já possui o sonho de um tempo cuja consciência ele agora deve possuir para realmente vivê-lo” [2].
[12] A invenção é a mãe da necessidade. Enquanto todos os estados dependem da abstração para a produção de sua riqueza e poder, a classe dominante de qualquer estado tem uma relação difícil com a produção de novas formas de abstração. A classe dominante procura sempre controlar a inovação e direcioná-la para seus próprios fins, privando o hacker do controle de sua criação e, assim, negando ao mundo como um todo o direito de administrar seu próprio desenvolvimento.
[13] A produção de novas abstrações sempre ocorre entre aqueles destacados pelo ato de hackear. Neste ato, nós, os outros, os que criam novos mundos, tornamo-nos não apenas estranhos, mas uma classe à parte. Embora reconheçamos nossa existência distinta enquanto um grupo, como programadores, artistas, escritores, cientistas ou músicos, raramente vemos tais formas de nos representar como simples fragmentos de uma experiência de classe. Geeks e freaks tornam-se o que são negativamente, a partir da exclusão de outros. Juntos, formamos uma classe, uma classe que ainda não existe como ela mesma – e para si mesma.
[14] É por meio do abstrato que o virtual é identificado, produzido e divulgado. O virtual não é apenas o potencial latente na matéria, é o potencial do potencial. Hackear é produzir ou aplicar o abstrato à informação e expressar a possibilidade de novos mundos, além da necessidade.
[15] Todas as abstrações são abstrações da natureza. As abstrações liberam o potencial do mundo material. Muito embora, a abstração depende da qualidade mais curiosa do mundo material – a informação. A informação pode existir independentemente de uma dada forma material, mas não pode existir sem qualquer forma material. O hack depende das qualidades materiais da natureza, contudo descobre algo independente de uma dada forma material. É ao mesmo tempo material e imaterial. Ele descobre a virtualidade imaterial do material, suas qualidades de informação.
[16] A abstração é sempre uma abstração da natureza, um processo que cria um duplo da natureza, uma segunda natureza, um espaço da existência humana no qual a vida coletiva habita entre seus próprios produtos e toma como natural o ambiente que produz.
[17] A terra é o desprendimento de um recurso da natureza, um aspecto do potencial produtivo da natureza tornado abstrato, na forma de propriedade. O capital é o desprendimento de um recurso a partir da terra, um aspecto do potencial produtivo da terra tornado abstrato na forma de propriedade. A informação é o desprendimento de um recurso do capital já destacado da terra. É o duplo de um duplo. É outro processo de abstração além do capital, mas que mais uma vez produz sua existência separada na forma de propriedade.
[18] Assim como o desenvolvimento da terra como um recurso produtivo cria os avanços históricos para sua abstração na forma de capital, também o desenvolvimento do capital fornece os avanços históricos para a abstração seguinte da informação, na forma de “propriedade intelectual”. Nas sociedades tradicionais, a terra, o capital e a informação estavam ligados a determinados poderes sociais e regionais por laços consuetudinários ou hereditários. O que a abstração hackeia da velha carcaça feudal é uma liberação de tais recursos por meio de uma forma mais abstrata de propriedade, um direito universal à propriedade privada. Essa forma abstrata universal compreende primeiro a terra, depois o capital, agora a informação.
[19] Quando a abstração da propriedade desata recursos produtivos, produz ao mesmo tempo uma divisão de classe. A propriedade privada estabelece uma classe pastoralista [pastoralist] que possui a terra, e uma classe agricultora [farmer] desapossada dela. Sem o povo, a abstração da propriedade privada expulsa de seu tradicional direito comunal à terra, criando uma classe despossuída que se transforma em classe trabalhadora, à medida que é posta para trabalhar a uma classe ascendente de proprietários dos meios materiais de fabricação, a classe capitalista. Esta classe trabalhadora se torna a primeira classe a considerar seriamente a noção de derrubar o domínio de classe. Ela falha nessa tarefa histórica na medida em que a forma de propriedade ainda não é abstrata o suficiente para liberar a virtualidade da ausência de classe que está latente nas energias produtivas da própria abstração.
[20] É sempre o hack que cria uma nova abstração. Com o surgimento de uma classe hacker, a taxa na qual novas abstrações são produzidas acelera. O reconhecimento da propriedade intelectual enquanto uma forma de propriedade – em si uma abstração, um hack legal – cria uma classe de criadores de propriedade intelectual. Mas essa ainda trabalha em benefício de outra classe, na qual seus próprios interesses estão subordinados. Como a abstração da propriedade privada é estendida à informação, ela produz a classe hacker como uma classe, como uma classe capaz de fazer de suas inovações na abstração uma forma de propriedade. Ao contrário dos agricultores e trabalhadores, os hackers não foram – ainda – totalmente despojados de seus direitos de propriedade, mas ainda devem vender suas capacidades de abstração para uma classe que possui os meios de produção, a classe vetorialista – a classe dominante emergente de nossa época.
[21] A classe vetorialista trava uma intensa luta para desapropriar os hackers de sua propriedade intelectual. Patentes e direitos autorais acabam nas mãos, não de seus criadores, mas de uma classe vetorialista que possui os meios de realizar o valor dessas abstrações. A classe vetorialista luta para monopolizar a abstração. Para a classe vetorial, “a política condiz com o controle absoluto sobre a propriedade intelectual, por meio de estratégicas belicosas de comunicação, controle e comando”[3]. Os hackers se veem despojados tanto individualmente quanto como classe.
[22] À medida que a classe vetorialista consolida seu monopólio sobre os meios de realizar o valor da propriedade intelectual, ela confronta cada vez mais a classe hacker como uma classe antagonista. Os hackers vêm para lutar contra as cargas usurárias que os vetorialistas extorquem pelo acesso à informação que os hackers produzem coletivamente, mas que os vetorialistas passam a possuir. Os hackers lutam contra as formas particulares nas quais a abstração é mercantilizada e transformada em propriedade privada da classe vetorialista. Os hackers aparecem enquanto uma classe que reconhece que o interesse de sua classe é mais bem expresso por meio da luta para libertar a produção de abstração, não somente dos grilhões particulares desta ou daquela forma de propriedade, mas para abstrair a própria forma de propriedade.
[23] Já passou da hora dos hackers se unirem aos trabalhadores e agricultores – com todos os produtores do mundo – para liberar os recursos produtivos e inventivos do mito da escassez. Já passou da hora de criar novas formas de associação que possam afastar o mundo de sua destruição por meio da exploração mercantilizada. Os maiores hacks de nosso tempo podem se tornar formas de organizar a livre expressão coletiva, de modo que, a partir de agora, a abstração esteja a serviço do povo, e não de pessoas a serviço da classe dominante.
Classe
[24] Uma classe aparece – a classe trabalhadora – capaz de questionar a necessidade da propriedade privada. Um partido aparece, dentro do movimento dos trabalhadores, pretendendo atender aos anseios da classe trabalhadora – os comunistas. Como escreve Marx, “em todos esses movimentos, eles trazem à tona, como questão principal de cada um, a questão da propriedade, não importando o seu grau de desenvolvimento na época”. Esta foi a resposta que os comunista propuseram à questão da propriedade: “centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do estado” [4]. Tornar a propriedade um monopólio do estado apenas produziu uma nova classe dominante e uma nova e mais brutal luta de classes. Mas essa é a nossa resposta final? Talvez o curso da luta de classes não tenha terminado. Talvez haja outra classe que possa abrir a questão de uma nova maneira – e ao manter a questão em aberto acabe de uma vez por todas com o monopólio das classes dominantes nos confins da história.
[25] Há uma dinâmica de classe dirigindo cada estágio do desenvolvimento deste mundo vetorial no qual nos encontramos agora. A classe vetorial está levando este mundo à beira do desastre, mas também abre o mundo aos meios de superar suas próprias tendências destrutivas. Nas três sucessivas fases de mercantilização, aparecem classes bastante diferentes, usurpando diferentes formas de propriedade privada. Por sua vez, cada classe dominante, conduz o mundo para fins cada vez mais abstratos.
[26] Primeiro surge uma classe pastoralista. Ela varre a grande massa de camponeses que tradicionalmente trabalhavam a terra sob o domínio dos senhores feudais. Os pastoralistas suplantam os senhores feudais, liberando a produtividade da natureza que reivindicam como sua propriedade privada. É essa privatização da propriedade – um hack legal – que cria as condições para todos os outros hacks pelos quais passa a terra, produzindo um excedente. Um mundo vetorial ergue-se sobre os ombros do hack agrícola.
[27] Assim que as novas formas de extração tornam possível produzir um excedente da terra com cada vez menos agricultores, os pastoralistas os afastam de suas terras, privando-os de seu sustento. Os agricultores desterrados procuram trabalho e um novo lar nas cidades. Aqui o capital os coloca para trabalhar em suas fábricas. Os agricultores tornam-se trabalhadores. O capital como propriedade dá origem a uma classe de capitalistas que possuem os meios de produção, e a uma classe de trabalhadores despossuída disso, e mediada por isso. Seja como trabalhadores ou agricultores, os produtores diretos se encontram desterrados não apenas de suas terras, mas da maior parte do excedente que produzem, acumulando para os pastoralistas na forma de renda, rendimento sobre a terra, e para os capitalistas, na forma de lucro, rendimento sobre o capital.
[28] Os agricultores desterrados tornam-se trabalhadores, apenas para ser novamente desterrados. Tendo perdido sua agricultura, eles perdem, por sua vez, sua cultura humana. O capital produz em suas fábricas não somente as necessidades da existência, mas um modo de vida, esperando que seus trabalhadores consumam. A vida mercantilizada despoja o trabalhador da informação tradicionalmente transmitida como cultura, fora do domínio da propriedade privada, como um presente de uma geração para a próxima, e a substitui por informações em forma mercantilizada.
[29] A informação, como a terra ou o capital, torna-se uma forma de propriedade monopolizada por uma classe, uma classe de vetorialistas, assim chamados porque controlam os vetores ao longo dos quais a informação é abstraída, do mesmo modo que os capitalistas controlam os meios materiais com os quais os bens são produzidos, e os pastoralistas a terra com a qual os alimentos são produzidos. Essa informação, certa vez propriedade coletiva das classes produtivas – as classes trabalhadoras e agrícolas consideradas em conjunto – torna-se propriedade de outra, a classe apropriadora.
[30] Assim que os camponeses se tornam agricultores através da apropriação de suas terras, eles ainda mantêm alguma autonomia sobre a disposição de seu tempo de trabalho. Os trabalhadores, ainda que não possuíssem capital, e precisassem trabalhar de acordo com o relógio e seu tempo impiedoso, podiam pelo menos lutar para reduzir a jornada de trabalho e liberar o tempo livre do trabalho. A informação circulava na cultura da classe trabalhadora como propriedade pública de todos. Mas quando a informação, por sua vez, vira uma forma de propriedade privada, os trabalhadores são despojados dela e precisam comprar sua própria cultura de seus proprietários, a classe vetorialista. O agricultor torna-se um trabalhador, e o trabalhador, um escravo. O mundo inteiro fica sujeito à extração de um excedente das classes produtoras que é controlado pelas classes dominantes, utilizando isso apenas para reproduzir e expandir essa matriz de exploração. O próprio tempo se torna uma experiência mercantilizada.
[31] As classes produtoras – agricultores, trabalhadores, hackers – lutam contra as classes expropriadoras – pastoralistas, capitalistas, vetorialistas – mas essas sucessivas classes dominantes também lutam entre si. Os capitalistas tentam quebrar o monopólio pastoralista da terra e subordinar a produção da terra à produção industrial. Os vetorialistas tentam quebrar o monopólio capitalista sobre o processo de produção e subordinar a produção de bens à circulação de informações: “O domínio privilegiado do espaço eletrônico controla a logística física da manufatura, uma vez que a liberação de matérias-primas e bens manufaturados requer consentimento eletrônico e direção”. [5]
[32] Que a classe vetorialista substituiu o capital como a classe exploradora dominante pode ser visto na forma que as principais corporações assumem. Essas empresas se desocupam de sua capacidade produtiva, pois esta deixa de ser fonte de poder. Eles dependem de uma massa competitiva de empreiteiros capitalistas para a fabricação de seus produtos. Seus poderes residem em monopolizar a propriedade intelectual – patentes, direitos autorais e marcas registradas – e os meios de reproduzir seu valor – os vetores de comunicação. A privatização da informação torna-se o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida mercantilizada. “Existe certa lógica nessa progressão: primeiro, um seleto grupo de fabricantes transcende sua conexão com produtos terrenos, então, com o marketing elevado a pináculo de seus negócios, procuram alterar o status social do marketing como uma interrupção comercial e substituí-lo com integração perfeita.” [6] Com a ascensão da classe vetorial, o mundo vetorial está completo.
[33] Assim que a propriedade privada avança da terra para o capital e para a informação, a própria propriedade se torna mais abstrata. O capital como propriedade libera a terra de sua fixidez espacial. A informação como propriedade libera o capital de sua fixidez em um objeto particular. Essa abstração da propriedade torna a própria propriedade algo passível de inovação acelerada – e conflito. O conflito de classes se fragmenta, mas se insinua em toda e qualquer relação que se torne uma relação de propriedade. A questão da propriedade, base da classe, torna-se a questão colocada em todos os lugares, de tudo. Se a “classe” aparece ausente para os apologistas de nosso tempo, não é porque ela se tornou apenas mais uma em uma série de antagonismos e articulações, mas, ao contrário, porque ela se tornou o princípio estruturante do plano vetorial que organiza o jogo de identidades como diferenças.
[34] A classe hacker, produtora de novas abstrações, torna-se mais importante para cada sucessiva classe dominante, pois cada uma depende cada vez mais da informação como recurso. A terra não pode ser reproduzida à vontade. A boa terra se presta à escassez, e a abstração da propriedade privada é quase suficiente por si só para proteger os aluguéis da classe pastoral. Os lucros do capital repousam sobre meios de produção reprodutíveis mecanicamente, suas fábricas e estoques. A empresa capitalista às vezes precisa do hacker para refinar e aprimorar as ferramentas e técnicas de produção para se manter a par da concorrência. A informação é o objeto mais facilmente reproduzível já capturado na abstração da propriedade. Nada protege o negócio vetorialista de seus concorrentes, a não ser sua capacidade de transformar qualitativamente a informação que possui e dela extrair novo valor. Os serviços da classe hacker tornam-se indispensáveis para uma economia cada vez mais dispensável – uma economia de propriedade e escassez.
[35] À medida que os meios de produção se tornam mais abstratos, o mesmo acontece com a forma de propriedade. A propriedade tem de se expandir para conter formas cada vez mais complexas de diferença e reduzi-la à equivalência. Para tornar a terra equivalente, basta traçar seus limites e criar um meio de atribuí-la como objeto a um sujeito. Complexidades surgirão, naturalmente, dessa imposição antinatural na superfície do mundo, embora o princípio seja uma simples abstração. Mas para que algo seja representado como propriedade intelectual, não basta que esteja em um local diferente. Deve ser qualitativamente diferente. Essa diferença, que possibilita um direito autoral ou uma patente, é obra da classe hacker. A classe hacker faz o que Bateson chama de “a diferença que faz a diferença”. [7] A diferença que impulsiona a abstração do mundo, mas que também impulsiona a acumulação de poder de classe nas mãos da classe vetorial.
[36] A classe hacker surge da transformação da informação em propriedade, na forma de propriedade intelectual. Esse hack legal faz do hack um processo de produção de propriedade e, portanto, um processo de produção de classe. O hack produz a força de classe capaz de perguntar – e responder – à questão da propriedade, a classe hacker. A classe hacker é a classe com a capacidade de criar não apenas novos tipos de objeto e sujeito no mundo, não apenas novos tipos de forma de propriedade na qual eles podem ser representados, mas novos tipos de relação, com propriedades imprevistas, que questionam a própria forma de propriedade. A classe hacker se realiza como classe quando hackeia a abstração da propriedade e supera as limitações das formas existentes de propriedade.
[37] A classe hacker pode ficar lisonjeada com a atenção dispensada a ela pelos capitalistas em comparação com os pastoralistas, e pelos vetorialistas em comparação com capitalistas. Os hackers tendem a se aliar a cada turno com a forma mais abstrata de relação de propriedade e mercadoria. Mas os hackers logo sentem o domínio restritivo de cada classe dominante, pois ela garante seu domínio sobre a classe predecessora e rival, podendo renegar as permissões que ofereceu aos hackers como uma classe. A classe vetorialista, em particular, procurará os meios de cortejar e cooptar a produtividade dos hackers, mas apenas em função de sua atenuada dependência por nova abstração como motor da competição entre os interesses vetoriais. Quando os vetorialistas atuam em conjunto enquanto uma classe, é para submeter o hacking às prerrogativas de seu poder de classe.
[38] O mundo vetorial é dinâmico. Ele põe novas abstrações para funcionar, produzindo novas liberdades a partir da necessidade. A direção dessa luta não é dada no curso das coisas, mas é determinada pela luta entre as classes. Todas as classes entram em relações de conflito, conluio e compromisso. Suas relações não são necessariamente dialéticas. As classes podem formar alianças de interesse mútuo contra outras classes, ou podem chegar a um “compromisso histórico” por um tempo. No entanto, apesar das pausas e contratempos, a luta de classes leva a história à abstração e a abstração à história.
[39] Às vezes o capital forma uma aliança com os pastoralistas, e as duas classes efetivamente se fundem sob a liderança do interesse capitalista. Às vezes, o capital forma uma aliança com os trabalhadores contra a classe pastoralista, uma aliança rapidamente quebrada quando a dissolução da classe pastoralista é alcançada. Essas lutas deixam suas marcas na forma histórica do Estado, que mantém a dominação dos interesses da classe dominante e ao mesmo tempo árbitra entre os representantes das classes concorrentes.
[40] A história é cheia de surpresas. Às vezes – para variar –, os trabalhadores formam uma aliança com os agricultores que socializam a propriedade privada e a coloca nas mãos do Estado, enquanto liquida as classes pastoralista e capitalista. Neste caso, o Estado torna-se então uma classe coletiva de pastoralistas e capitalistas, e exerce o poder de classe sobre uma economia mercantil organizada em bases burocráticas e não competitivas.
[41] A classe vetorialista emerge de estados competitivos, ao invés de estados burocráticos. As condições competitivas impulsionam a busca pela abstração produtiva de forma mais eficaz. O desenvolvimento de formas abstratas de propriedade intelectual cria a autonomia relativa na qual a classe hacker pode produzir abstrações, embora essa produtividade seja limitada dentro da forma de mercadoria.
[42] Uma coisa une pastoralistas, capitalistas e vetorialistas – a santidade da forma de propriedade da qual o poder de classe depende. Cada uma depende de formas de abstração que podem comprar e possuir, mas não produzem. Cada uma passa a depender da classe hacker, que encontra novas maneiras de tornar a natureza produtiva, que descobre novos padrões nos dados lançados pela natureza e pela segunda natureza, que produz novas abstrações por meio das quais a natureza pode produzir mais de uma segunda natureza – talvez até uma terceira natureza.
[43] A classe hacker, sendo numericamente pequena e não possuindo os meios de produção, encontra-se presa entre uma política das massas de baixo e uma política dos governantes de cima. Deve barganhar o melhor que puder, ou fazer o que faz de melhor – criar uma nova política, indo além dessa oposição. A longo prazo, os interesses da classe hacker estão de acordo com aqueles que mais se beneficiariam com o avanço da abstração, ou seja, aquelas classes produtivas despossuídas dos meios de produção – agricultores e trabalhadores. No esforço de concretizar essa possibilidade, a classe hacker hackeia a própria política, criando uma nova governança [polity], transformando a política de massa em uma política da multiplicidade, na qual todas as classes produtivas podem expressar sua virtualidade.
[44] O interesse hacker não pode criar facilmente alianças com formas de política de massa que subordinam as diferenças minoritárias à unidade em ação. A política de massa sempre corre o risco de suprimir a força criativa e abstrata da interação das diferenças. O interesse hacker não está na representação de massa, mas em uma política mais abstrata que expressa a produtividade das diferenças. Hackers, que produzem muitas classes de conhecimento de muitas classes de experiência, têm o potencial também de produzir um novo conhecimento de formação e ação de classe, ao trabalhar em conjunto com a experiência coletiva de todas as classes produtivas.
[45] Uma classe não é o mesmo que sua representação. Na política, é preciso ter cuidado com as representações tidas como classes, que representam apenas uma fração de uma classe e não expressam seus múltiplos interesses. As classes não têm vanguardas que falem por elas. As classes se expressam igualmente em todos os seus múltiplos interesses e ações. A classe hacker não é o que é; a classe hacker é o que não é – mas pode se tornar.
[46] Por meio do desenvolvimento da abstração, a liberdade ainda pode ser arrancada da necessidade. A classe vetorialista, como seus predecessores, busca algemar a abstração à produção de escassez e margem, não de abundância e liberdade. A formação da classe hacker como uma classe surge justamente neste momento em que a liberdade da necessidade e da dominação de classe aparece no horizonte como uma possibilidade. Negri: “O que é esse mundo de crise política, ideológica e produtiva, esse mundo de sublimação e circulação incontrolável? O que é, pois, senão um salto que marca uma época fora de tudo o que a humanidade experimentou até agora? […] Tal constitui ao mesmo tempo a ruína e nova possibilidade completo sentido.”[8] Basta hackear a classe hacker como classe, uma classe capaz de hackear a própria propriedade, que é o grilhão de todos os meios produtivos e da produtividade do sentido.
[47] A luta de classes determinou até agora a disposição do excedente, o regime de escassez e a forma como a produção cresce. Mas agora as apostas são muito maiores. Sobrevivência e liberdade estão simultaneamente no horizonte. As classes dominantes transformam não apenas as classes produtoras em um recurso instrumental, mas a própria natureza, a ponto de a exploração de classe e a exploração da natureza se tornar a mesma objetificação insustentável. O potencial para esse mundo dividido em classes produzir sua própria superação não chega tão cedo.
Notas
[1] Gilles Deleuze, Negotiations (New York: Columbia University Press, 1995), p. 145. Por todo Um Manifesto Hacker, destacaremos certos protocolos de leitura para os vários arquivos textuais nos quais a obra se baseia e que exigem alguma explicação. Não é tanto uma leitura “sintomática” quanto uma leitura homeopática, expondo os textos às suas próprias limitações e condições de produção. Por exemplo, há uma indústria em formação, dentro do negócio da educação, em torno do nome de Deleuze, da qual ele talvez deva ser resgatado. A sua filosofia não se restringe ao que é, mas aberta ao que poderia ser. Em Negotiations, ele pode ser visto produzindo conceitos para abrir o terreno político e cultural e fornecendo linhas para escapar do Estado, mercado, partido e outras armadilhas de identidade e representação. Seus gostos eram aristocráticos – limitados à cultura educacional de seu lugar e época – e sua obra se presta à armadilha da elaboração puramente formal do tipo desejado pelo mercado educacional anglo-americano em particular. É melhor pegar Deleuze por trás e dar a ele uma descendência mutante mediante uma concepção imaculada. Isso era, por sinal, o próprio procedimento de Deleuze. Ele pode ser afastado de seus próprios hábitos sedentários.
[2] Guy Debord, Society of the Spectacle (Detroit: Black and Red, 1983), 164. Esta obra clássica na tradição criptomarxista estabelece o padrão para o pensamento crítico em ação. O texto de Debord é pensado de maneira que procura modificar as teses que inevitavelmente as moderam, revelando, assim, a cumplicidade modificadora com a “sociedade espetacular”, que Debord tão (anti)espetacularmente condena. É uma obra que pode ser apreciada pela completa reimaginação de suas teses a partir de bases mais abstratas, um procedimento que o próprio Debord aplicou a Marx e que forma a base do procedimento criptomarxista.
[3] Arthur Kroker e Michael A. Weinstein, Data Trash: The Theory of the Virtual Class (New York: St Martin’s, 1994), p. 6. O grande mérito deste livro é de ter apreendido a dimensão da classe para o surgimento da propriedade intelectual. Resta examinar a propriedade intelectual como propriedade, chegando a algo que Krover e Weinstein não mapearam – a composição de classe das novas forças radicais que podem se opor à propriedade. Data Trash identifica a formação da nova classe dominante como uma “classe virtual”, enquanto A Hacker Manifesto prefere não oferecer o virtual ao inimigo como refém semântico.
[4] Karl Marx e Friedrich Engels, “Manifesto of the Communist Party”, in The Revolutions of 1848: Political Writings, vol. 1, ed. David Fernbach (Harmondsworth: Penguin, 1978), pp. 98, 86. Katarani veria a questão da propriedade vinda de Marx, mas a resposta acerca da propriedade estatal vinda de Engels, sendo uma distorção de toda a trajetória de Marx. Ver: Kolin Karatani, Transcritique: On Kant and Marx (Cambridge MA: MIT Press, 2003). A Hacker Manisfesto não é absolutamente um tratado marxista ortodoxo nem um repúdio pós-marxista, mas sim uma reimaginação criptomarxismo do método materialista ao praticar a teoria dentro da história. De Marx, pode-se pensar a tentativa de descobrir a abstração em ação no mundo enquanto um processo histórico, e não apenas como uma categoria conveniente no pensamento com a qual se cria um novo produto intelectual. O pensamento criptomarxista pode ser aproximar-se da multiplicidade do tempo da vida cotidiana, que clama pela reinvenção da teoria a todo o momento, na fidelidade ao momento, em vez de uma repetição de uma ortodoxia passada, ou uma “crítica” interessada dessa representação, no sentido de tornar Marx inofensivo para o processo educacional e seu tempo medido e repetitivo.
[5] Critical Art Ensemble, The Electronic Disturbance (New York: Autonomedia, 1994), pp. 16–17. Ver também Critical Art Ensemble, The Molecular Invasion (Nova York: Autonomedia, 2002). Esse grupo descobre, a partir de suas práticas sempre inventivas, exatamente aquilo que precisa ser pensando enquanto no elo entre a informação e a propriedade, fornecendo ferramentas úteis para começar esse projeto. O trabalho do grupo é particularmente esclarecedor no que diz respeito à mercantilização da informação genética – uma atividade de linha de frente para o desenvolvimento da classe vetorial. Tudo o que é necessário é um aprofundamento na prática de pensar abstratamente. Juntamente com grupos, redes e colaborações como Adilkno, Ctheory, EDT, Institute for Applied Autonomy, I/O/D, Luther Blissett Project, Mongrel, Nettime, Oekonux, Old Boys’ Network, Openflows, Public Netbase, subRosa, Rhizome, ®™ark, Sarai, The Thing, VNS Matrix e The Yes Men, Critical Art Ensemble formam uma espécie de movimento, em que arte, política e teoria convergem em uma crítica mútua entre si. Esses grupos têm apenas uma “semelhança familiar” entre eles. Cada um compartilha uma característica com pelo menos um dos outros, mas não necessariamente a mesma característica. A Hacker Manifesto é, entre outras coisas, uma tentativa de se abstrair a partir das práticas e conceitos que eles produzem. Ver também Josephine Bosma et al., Readme! Filtered by Nettime (Nova York: Autonomedia, 1999).
[6] Naomi Klein, No Logo (Londres: Harper Collins, 2000), p. 35. Ver também Naomi Klein, Fences and Windows (Nova York: Picador, 2002). Este trabalho exemplar de jornalismo descobre o nexo entre a marca e o logotipo como emblemas do esvaziamento da economia capitalista no mundo superdesenvolvido e o rebaixamento do grande volume da produção capitalista para as fábricas do mundo subdesenvolvido. Vemos claramente aqui que o capital foi superado como uma formação histórica em tudo, menos no nome. Klein permanece na descrição dos sintomas, no entanto. Ela não oferece o diagnóstico certo. Mas essa não é a tarefa que ela se propõe. Não pode haver um livro, nenhum pensador mestre para estes tempos. O que é necessário é uma prática de combinar modos heterogêneos de percepção, pensamento e sentimento, diferentes estilos de pesquisa e escrita, diferentes tipos de conexão com diferentes leitores, proliferação de informações em diferentes mídias, tudo praticado dentro de uma economia da dádiva, expressando e elaborando diferenças, ao invés de veicular um dogma, um slogan, uma crítica ou linha. A divisão de gêneros e tipos de escrita, como todos os aspectos da divisão intelectual do trabalho, são antitéticos ao desenvolvimento autônomo da classe hacker como classe e funcionam apenas para reforçar a subordinação do conhecimento à propriedade pela classe vetorial.
[7] Gregory Bateson, Steps Towards an Ecology of Mind (Nova York: Ballantine, 1972). Bateson compreendeu a ligação entre informação e natureza em um nível abstrato, mesmo quando se esquivou de examinar as forças históricas que forjaram exatamente essa ligação. E, no entanto, ele é pioneiro no pensamento e ação hacker em seu desrespeito às regras de propriedade dos campos acadêmicos. Ele pula alegremente da biologia para a antropologia e para a epistemologia, vendo nas divisões entre campos, até mesmo entre declarações, uma construção ideológica do mundo como adequada apenas para zoneamento e desenvolvimento no interesse de propriedade. No momento em que se formavam os fundamentos da ideologia da classe vetorial, na ciência da informação, na informática, na cibernética, e quando se descobria a informação como a nova essência dos fenômenos sociais e até naturais, Bateson foi o único a captar o uso crítico desses conceitos nascentes.
[8] Antonio Negri, The Politics of Subversion: A Manifesto for the Twenty-First Century (Cambridge: Polity, 1989), p. 203. O marxismo de Negri é um marxismo vivo, mas que busca enxertar o novo no velho corpus em conjunturas erradas. É menos útil reaproveitar os escritos de Marx sobre trabalho imaterial e subsunção real do que revisitar a questão central da propriedade e reimaginar a relação de classe em termos do desenvolvimento histórico da forma de propriedade. Negri, que tanto tinha a dizer sobre a recomposição da classe trabalhadora no mundo superdesenvolvido, e como as energias das classes produtivas impulsionam a economia mercantil de baixo para cima, não encontra uma nova linguagem adequada ao momento histórico, quando o trabalho é empurrado para a periferia e uma formação de classe inteiramente nova surge no mundo superdesenvolvido.