
NETWORK NOW: OBSOLESCENTE DEMASIADO CEDO
WENDY H. K. CHUN
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Originalmente publicado em:
Berry, David M.; Dieter, Michael (org.). Postdigital Aesthetics: Art, Computation and Design. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2015; pp. 289-315 [cap. 22].
Tradução: Ednei de Genaro

“A rede” tornou-se um conceito definidor de nossa época.[1] Das redes financeiras de alta velocidade, que erodem as soberanias nacionais, passando por sites como o Facebook.com, que transformam o sentido e a função da palavra “amigo”, até os feeds do Twitter, que alçam inéditas alianças políticas por vetores virais globais profetizando catástrofes mundiais, as redes encapsulam tudo que é novo e diferente em relação às nossas instituições sociais, formações globais e organizações políticas e militares.
Por quê? O que existe nas “redes” que as torna um conceito tão universal e sedutor, empregado por disciplinas diversas, da sociologia à biologia, dos estudos de mídia à economia? Como o “é uma rede” se tornou uma resposta válida – o fim, mais do que o começo, de uma explicação? Por que e como as redes se tornaram o diagrama tanto do capital global como da sociedade norte-americana contemporânea – uma estrutura que talvez faça dos Estados Unidos mais uma vez simultaneamente excepcional e universal?
Este artigo aborda tais questões, argumentando que as redes têm sido centrais para a emergência, gestão e imaginário do neoliberalismo, especialmente para a sua narrativa de indivíduos dissolvendo coletivamente a sociedade. Traçar os caminhos nos quais as redes ou, mais precisamente, mapear as redes (uma vez que as redes e os mapas podem ser separados), passou a ser uma forma de esvaecer a confusão pós-moderna que dominou o final dos anos 1970 e início dos 1980. Revelarei então que o poder das redes decorre da forma como e para quê são imaginadas. As redes permitem-nos rastrear e espacializar interações invisíveis enquanto fluxos: do capital global aos riscos ambientais, da predação aos afetos. Elas também oferecerem-nos uma resolução na qual atravessa a “massa” ou a comunidade, rastrear indivíduos e relações individuais. Embora as redes autorizem uma forma de mapeamento cognitivo que une o local ao global, elas produzem novos dilemas: estamos agora continuamente mapeamento, mas de forma mais precária do que nunca. Em vez de engajarmos em ações políticas terminantes, adiamos e distendemos a ação: definitivamente, estamos incessantemente procurando, mas nunca encontrando. Vamos do específico ao panorâmico sem mudar de perspectiva. De forma a imaginar diferentemente, argumento que, em vez de focar em mapas e conexões de redes, precisamos pensar sobre as novas mídias em termos de repetição habitual e dissipações [leaks].
Orientando a desorientação pós-moderna
Perto do fim do século passado, havia uma crescente concordância que a pós-modernidade tinha danificado seriamente, ou então irreparavelmente, a capacidade dos indivíduos de compreender de maneira ampla o mundo ao seu redor. Isso porque os fatores que determinavam as vidas eram cada vez mais globais e desumanos, ainda que os modos de navegar e negociar suas circunstâncias fossem dolorosamente locais e orgânicos.
Fredric Jameson (1990) dispôs de maneira contumaz a visão acima em seu influente diagnóstico da pós-modernidade. De acordo com ele, desde o começo do que hoje chamamos globalização, no século 19, tornou-se mais e mais difícil conceber nossa posição no mundo. “Aparece uma situação na qual podemos dizer que se a experiência individual é autêntica, então não pode ser verdadeira; e se o modelo científico ou cognitivo do mesmo conteúdo é verdadeiro, então ele foge da experiência” (JAMESON, 1991, p. 441). Desde a ascensão do capitalismo industrial e imperial, a verdade das nossas aparentemente autênticas experiências reside em outro lugar: por exemplo, a verdade por trás dos rituais de chás domésticos do século XIX reside na Índia. A pós-modernidade exacerbou essa descontinuidade entre o autêntico e a verdade. Em sua agora canônica descrição do Los Angeles Bonaventure Hotel, Jameson escreveu: “o hiperespaço pós-moderno […] finalmente sucedeu em transcender as capacidades dos corpos humanos individuais para localizar a si mesmos, para organizar suas imediatas percepções ao redor e de estruturar cognitivamente suas posições em um mundo externo mapeável” (Idem, p. 83). Essa incapacidade física, Jameson sugere, é simbólica de um “dilema ainda mais agudo que é a incapacidade de nossas mentes, pelo menos hoje, de mapear a grande rede global, multinacional e descentralizada de comunicações que nos encontramos presos enquanto sujeitos individuais” (Idem, p. 44). Tal incapacidade de mapear, que Jameson caracteriza como o nosso inédito dilema histórico, decorre da densidade crescente do espaço e a decadência da temporalidade. Sons e imagens saturam implacavelmente o espaço e dão ao mundo “uma tez brilhante, uma ilusão estereoscópica, uma onda de imagens fílmicas” (Idem, p. 34). Consequentemente, nós, como esquizofrênicos, experimentamos o mundo enquanto um “escombro de significantes distintos e não relacionados” (Idem, p. 26). Diante dessa quebra da cadeia de significantes, não podemos mapear cognitivamente nossas relações com a totalidade capitalista.
Tal concepção de sujeitos individuais capturados em um sistema global opressivo, irrepresentável e inimaginável, em que o pensamento casual padrão é quebrado, foi estranhamente reproduzida em todas as disciplinas, da sociologia à economia, da ecologia à física. Ulrich Beck, escrevendo em 1986, diagnosticou a emergência daquilo que chamou de “sociedade de risco”, a partir de termos que ressoam com os de Jameson. De acordo com Beck, estamos nos movendo de um sistema baseado na riqueza visível (e, assim, com solidariedade de classe e causalidade humanamente perceptível) para uma modernidade autorreflexiva, baseada em riscos invisíveis que produzem “consequências desconhecidas e inesperadas” (BECK, 1992, p. 22). Tais riscos, pelos quais somente podem ser demarcados cientificamente, invertem a relação normal entre experiência e julgamento: em vez do julgamento ser baseado na experiência pessoal, ele é baseado em um conhecimento geral que desafia a experiência pessoal. O fato de que a experiência pessoal dependa desse conhecimento geral significa que “estamos lidando […] com uma “não-experiência de segunda mão” que desafia a imaginação (Idem, p. 22). Confirme Beck salienta,
uma enorme parte da população enfrenta devastação e destruição hoje, para as quais a linguagem e os poderes da linguagem e da imaginação carecemos, para as quais perdemos qualquer categoria moral ou médica. Enfrentamos o absoluto e ilimitado NÃO, que nos ameaça, os nãos- em geral, o não-imaginável, o não-pensável, não-, não-, não-.
Assim, para Jameson, a maior ameaça decorre do fato de que não podemos imaginar – isto é, conceber e mapear – as ameaças ao nosso redor.
De maneira menos apocalíptica e, do mesmo modo, menos utópica, o sociólogo Mark Granovetter, escrevendo em 1973, argumentou também: “a experiência pessoal dos indivíduos está intimamente ligada às características mais amplas da estrutura social, muito além do alcance ou controle dos indivíduos particulares” (GRANOVETTER, 1973, p. 1377). De modo a fazer compreensível a relação entre a experiência social e a estrutura social, Granovetter produziu um dos mais influentes mapas sociais, que rastreiam os nós entre indivíduos, onde um nó representa uma amizade. O mapa espacializa as conexões temporais e invisíveis entre os indivíduos, representando as interações enquanto linhas, que podem ser traçadas, e os indivíduos enquanto nós, que podem ser rastreados. A partir de tal espacialização, Granovetter rebateu a suposição de que aqueles com mais laços – isto é, centros sociais – são os mais poderosos e influentes. Em vez disso, aqueles que têm vínculos fracos com os outros são mais eficazes na disseminação de informação, em ajudar os outros a encontrar empregos e em alastrar contágios. Essa descoberta, pois, também redefiniu sutilmente o que se referia como mais poderoso: o que importava não era a força de disseminação (ou seja, o quão rápido alguém é capaz de disseminar informações para o maior número de pessoas), mas sim a capacidade de disseminar informações raras (informações que não podem ser facilmente adquiridas em outro lugar).
Do mesmo modo, Jameson (1991) também viu as novas formas de mapeamento – de delinear e esclarecer conexões entre localidades e agentes – enquanto central para resolver a distância entre experiência pessoal e conhecimento global. Contudo, a versão do mapeamento de Jameson foi mais experimental e especulativa. Procurando uma solução para o nosso dilema pós-moderno, ele concebeu uma forma ainda inimaginável de arte político-socialista, que nos daria possibilidade de agir no mundo, especialmente porque mapeia conexões invisíveis e hoje inimagináveis. Como Jameson (1991, p. 54) explica, o mapeamento cognitivo
(se é que é possível) terá que se atar à verdade do pós-modernismo, quer dizer, ao seu objeto fundamental – o espaço mundial do capital multinacional –, ao mesmo tempo em que impetra uma ruptura com alguns dos modos ainda inimagináveis de representar este último, por meio do qual podemos mais uma vez começar a compreender nossos posicionamentos enquanto indivíduos e sujeitos coletivos, e recuperar uma capacidade para agir e lutar, hoje neutralizada por nossas confusões espacial e social.
Para Jameson, essa nova forma de mapeamento correspondia a “um imperativo de crescimento de novos órgãos, de expansão dos nossos sensório e corpo para algumas dimensões originais, ainda inimagináveis, talvez impossíveis, no fim das contas” (Idem, p. 39). Embora o mapeamento cognitivo (que Jameson se baseia pela noção de mapa cognitivo de paisagens do geógrafo Kevin Lunch e pela noção de ideologia de Louis Althusser) não exista ainda, Jameson argumenta que a tecnologia teve uma relação especial para essa forma ainda não imaginada. Em particular, sugeriu:
Nossas imperfeitas representações produzidas por imensas redes de comunicação e computação são elas mesmas uma figuração distorcida de algo ainda mais profundo, ou seja, todo o sistema mundial de um capitalismo multinacional atual. A tecnologia da sociedade contemporânea […] parece oferecer algum atalho de representação privilegiado para apreender uma rede de poder e controle ainda mais difícil para nossas mentes e imaginações: toda a nova rede global descentrada do terceiro estágio do próprio capital (Idem, p. 38).
A tecnologia da sociedade contemporânea – que incorporou fisicamente uma rede a partir da organização de nós e conexões – ofereceu um esboço exemplificativo de como o poder (literalmente) flui.
Se, para Jameson e Granovetter, os mapas e as redes novamente conectaram os níveis macro e micro, o social e o individual, para outros autores, contudo, mais influentemente Gilles Deleuze e Félix Guattari, os mapas foram centrais porque eles frustraram os discursos transcendentais e totalizantes (PARIKKA, 2015). Assumindo a figura do rizoma – uma imanente estrutura de raízes que ressaltam conexões, heterogeneidade e multiplicidade – eles asseveraram que o rizoma era um mapa, não um traçado. Um mapa, escrevem,
não reproduz um inconsciente fechado em si mesmo; ele constrói o inconsciente. Promove conexões entre campos, a remoção de bloqueios em corpos sem órgãos, a máxima abertura dos corpos de órgãos em um plano de consistência […] o mapa é aberto e conectável em todas as suas dimensões; […] pode ser partido, invertido, adaptado em qualquer tipo de montagem, retrabalhado por um indivíduo, grupo ou formação social […] o mapa tem a ver com performance (DELEUZE; GUATTARI, 1988, p. 12).
O mapa não era uma representação, mas sim uma performance dinâmica. Estava aberto; promovia conexões e autêntica multiplicidade. Baseando-se em parte em Deleuze e Guattari, Bruno Latour argumentou que a rede é um conceito que nos ajuda a abordar os atores “não como intermediários, mas como mediadores, eles transformam o movimento do social visível para os leitores” (LATOUR, 2005, p. 128). Assim, independentemente das diferenças políticas e intelectuais, os teóricos postularam os mapas – por mais que definido – como a chave para o empoderamento dos agentes, ao tornar visível o invisível.
A promessa de tornar visíveis os movimentos sociais e físicos aparentemente invisíveis tem fundamentado a atual predominância enquanto uma ferramenta teórica. Os mapas delineados por Granovetter têm engendrado representações dinâmicas utilizadas por corporações, pesquisadores e indivíduos comuns para mapear quase tudo, de amizade às doenças contagiosas. A teoria dos afetos, que lida com os efeitos das reações corporais inconscientes, emprega as redes de linguagem – de intensidades, transduções e conexões – para conceitualizar o que desafia a conceitualização: afetos que estão tanto aquém quanto além dos indivíduos, mas que permitem a comunicação entre eles. [2] A internet é supostamente um rizoma. As interfaces e os aplicativos, o Google Maps, o Graph de visualização do Facebook e o Twitter Analytics, por exemplo, nos oferecem modos de traçar o impacto e a disseminação das conexões locais. Esses atos de mapeamento, que nos permitem traçar quem são os amigos e quem nos seguem, bem como os caminhos para navegar pelas localidades físicas e virtuais, são essencialmente empoderadores, eles nos dizem sempre. Nós somos agora “prossumidores”, trabalhando ativamente para moldar nossas mídias, não meramente a consumindo. Em vez de simplesmente assistir às notícias, podemos clicar e mudar a trajetória dos eventos mundiais, de Darfur às eleições dos Estados Unidos.
A lógica do empoderamento é incorporada na própria lógica de análise das redes. Como argumenta Chiang, em Networked Life: 20 Questions and Answers – um livro de engenharia que serve como base para seu popular curso on-line homônimo na plataforma Coursera.org –, as redes supostamente operam melhor quando os nós operam de forma egoísta. Ao descrever o controle distribuído de poder, ou seja, o algoritmo que ajusta o poder de cada dispositivo móvel de telefone, Chiang assevera que isso manifesta:
um tema recorrente neste livro […] [no qual] os comportamentos individuais regidos por seus próprios interesses podem frequentemente agregarem-se globalmente em uma condição adequada e eficiente de usuários, especialmente quanto há sinais de feedbacks apropriados. Em contraste, um controle centralizado ou ações puramente aleatórias teriam imposto desvantagens significativas (CHIANG, 2012, p. 617-618).
Aqui, o feedback, ainda que central para modulação e otimização, é curiosamente mencionado como uma condição de qualificação, em vez de ser o ponto central. Além disso, a interferência é descrita como uma “externalidade negativa”, como um fato que revela que sua felicidade ou sucesso depende de outras ações.[3] (Idem, 2012, p. 617-618). Assim, relações constitutivas são deliberadamente tornadas secundárias e/ou acidentais, de modo que as ações de interesse egoísta possam ser retratadas como centrais e determinantes.
Mais criticamente, as redes têm sido implantadas por vários campos para o entendimento das novas estruturas de poder e dos novos modos de comportamento individuais e coletivos em uma sociedade na qual, como de forma infame declarou Margareth Thatcher, “there is no society” (KEAY, n.p.). Alexander Galloway e Tiziana Terranova argumentaram que o controle existe a partir e através de estruturas aparentemente não hierárquicas. Tais autores apresentam uma “cultura de rede” global imanente ao capitalismo global, na qual a resistência é gerada de dentro, seja por hipertrofia ou pela criação de afetos comuns para atravessar a rede. De forma similar, Bruno Latour argumenta que para fazer teoria do ator-rede (ANT) [Actor-Network Theory] é necessário tornar-se um ANT [em inglês, Ant significa formiga]: “um cego, míope, workholic, farejador de trilhas e viajante coletivo” (LATOUR, 2005, p. 9).
As contribuições de Galloway, Latour e Terranova foram fundamentais – e a posição de Terranova em direção à compreensão das redes por meio de modos de circulação abre novas possibilidades para ponderar sobre as redes.[4] Contudo, todo esse mapeamento dificilmente respondeu às dificuldades dispostas pela globalização e pelo capitalismo tardio. Na verdade, às aceleraram: de crises financeiras globais aos males do Facebook. Estamos agora uma situação diferente e talvez historicamente única: estamos agora sempre mapeando, sempre performando – dizem-nos, sempre empoderados – e mesmo assim incapazes de prever e intervir decisivamente no mundo em que vivemos (BERRY, 2011, p. 144). A precariedade, ainda que liberte, é a condição dominante da rede.
O mapeamento acompanha e amplifica as redes, em vez de resolvê-las, transformando nossas experiências do presente, como argumentou Lauren Berlant, um impasse que nos leva a um beco sem saída. Os mapas permitem-nos mover do específico ao geral – observar padrões e mover entre escalas, ao contrário da confusão que supostamente marcou o pós-modernismo com seus emblemáticos pastiches –, contudo parece que estamos sempre remexendo aqui e acolá e nada alterando. Além disso, a performance do mapeamento – ainda que gere desterritorialização, desprenda, agregue a multiplicidade etc. – impulsiona o capitalismo. Como defendeu Ien Ang, o capitalismo prospera na incerteza e na multiplicidade. Mais ainda, ficamos tão dependentes de nossas tecnologias de mapeamento que parecemos incapazes de ação sem elas. Ou seja, se houve uma desconexão, como Jameson pensou, entre a experiência pessoal autêntica e a verdade dessa experiência, agora parecemos confiar automaticamente nas representações sistêmicas da verdade, em vez de nossas próprias experiências pessoais. Por exemplo, considere a verdade exposta no Google Maps. Embora, como Lisa Parks notou, ofereçam-nos imagens que são realmente um pastiche de velhas e às vezes incorretas imagens (e assim uma combinação realista de representação pós-moderna), o Google Maps tornou-se padrão para o planejamento dos trajetos. Para começar a repensar esses preceitos, precisamos abordar mais uma vez o “problema” que o mapeamento das redes supostamente resolve e como o resolve. Como Latour e Thatcher deixaram claro – e como Jameson (1991), Granovetter e Beck argumentaram implicitamente – o objetivo é re-agregar o social focando as ações dos agentes individuais enquanto agentes individuais, em vez de parte de uma sociedade de massa ou comunidade. Ao utilizar os indivíduos como unidades básicas, as redes oferecem uma solução que implicitamente encobre, ou pelo menos minimiza, o papel da sociedade. Elas respondem e aceleram o fracasso das comunidades em dar sentido às vidas dos indivíduos. Ao mesmo tempo, porém, as redes também revelam uma nova imaginação da coletividade: a própria rede enquanto uma entidade imaginada.
Networks of YOUS
Redes são imaginadas. A força das redes – suas atuais ubiquidade e popularidade – decorre em parte do modo como as conexões e fluxos são situados, ambos ligando e suspendendo o pessoal e o coletivo, o político e o tecnológico, o biológico e o maquínico, o teórico e o empírico.
Tal noção de “redes imaginadas” baseia-se e revisa a influente e controversa afirmação de Benedict Anderson, em Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, de que as nações são “comunidades políticas imaginadas”. Elas são imaginadas, afirma Anderson, “porque os membros da menor nação nunca conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar sobre a maioria de seus companheiros, mas na mente de cada um haverá uma imagem de comunhão” (ANDERSON, 1983, p. 6). São comunidades porque, apesar de todas as disparidades, são imaginadas como um “companheirismo horizontal” (Idem, p. 7). Com esse argumento, Anderson enfatiza a importância do capitalismo impresso para a ascensão do nacionalismo, especialmente dos jornais, que fizeram o tempo parecer homogêneo e vazio, e que, devido à sua obsolescência regularmente planejada, criou uma “extraordinária cerimônia de massa”. Ele defende que, engajado na leitura de um jornal na privacidade de sua casa, “cada comungante está ciente que a cerimônia na qual performa está sendo replicada simultaneamente para milhares (ou milhões) de outros cuja existência ele acredita, porém não tem a menor noção de suas identidades” (Idem, p. 35). A comunidade imaginada é produzida por meio de ações imaginadas enquanto sincrônicas, que ligam o indivíduo a um coletivo anônimo. Essa imaginação transforma múltiplos “eus” em um “nós”, que se movimentam cronologicamente juntos.
Tal processo de imaginação foi enfraquecido com o pós-modernismo: a inabilidade dos indivíduos de apreender suas posições no mundo revela o declínio do poder das “comunidades imaginadas”. Esse declínio parece ter se acelerado na era do neoliberalismo, em que, como Thatcher proferiu, “there is no society” e “there is no public money”. A transformação dramática e o fechamento de jornais impressos parecem reforçar esse argumento. A atual crise nas publicações impressas deixa evidente que não mais podemos ter certeza das extraordinárias cerimônias de massa (se é poderíamos). No entanto, as redes não são diametralmente opostas às comunidades: elas podem servir a um propósito similar.
As redes são tão sedutoras porque elas são imaginadas como mais e menos do que as comunidades. As redes são imaginadas enquanto coletivos glocais que criam trajetórias aparentemente diretas e rastreáveis entre o local e o global, o social-histórico e o psíquico, o coletivo e o individual, bem como o técnico e o social. Como elaborarei mais tarde, os coletivos glocais são uma série de vocês [yous], em vez de um coletivo nós [we]: a nova mídia enfatiza incansavelmente o você [you]: o YouTube, o You enquanto a Personalidade do Ano da Time Magazine. “You”, crucialmente, é tanto singular quanto plural. No sentido plural, contudo, ainda se dirige aos indivíduos enquanto individuais. De tal maneira, as redes são muito diferentes das comunidades, que criam uma nova identidade, um “nós”, pelo qual se mantém em comum (mesmo se, como salientou Maurice Blanchot, o que temos em comum seja nossa própria incomensurabilidade ou finitude). Em uma rede, quando um “nós” ou um acesso simultâneo em massa acontece, a rede falha: devido a bugs de acessos simultâneos em um site, por demandas concorrentes de eletricidade, ou então por excesso de perfis falsos ou flashmobs, cada vez mais o comunal (ao mesmo tempo técnico e não-técnico) derruba as redes ou os espaços.
Como eu argumentei em outro trabalho, as redes imaginadas não dependem de simultâneas cerimônias de massa, mas sim de eventos assíncronos que se perpetuam por meio da crise (CHUN, 2011). Em vez de permitir um “tempo vazio homogêneo” – um tempo que assegura noções de progresso constante – as redes produzem uma série de crises ou “agoras” que criam bolhas no tempo. Nessas bolhas em constante atualização, o novo envelhece e o velho é constantemente redescoberto como novo. Assim, o tempo da rede não é propício para imaginar uma entidade coletiva viajando unida no tempo, mas para visualizar uma série de indivíduos que respondem em seu próprio tempo a eventos singulares, ainda que conectados. A temporalidade das redes, contudo, é ainda mais estranha que essa repetição em bolhas, nas quais a informação se torna uma morta-viva.[5] O mais estranho – e o mais pujante – acerca das redes é que, ao espacializar o temporal, elas são tanto projeções como entidades realmente existentes: teoria e fato.
Redes: projetadas e existentes
As redes são entidades estranhas: são imaginadas tanto como projeções técnicas quanto fenômenos que ocorrem naturalmente. As redes modernas procedem de estruturas tais como os sistemas elétricos e rodoviários, deliberadamente construídas para imitar redes (Figura 1). Notadamente, porém, as redes são ao mesmo tempo estruturas técnicas construídas e fenômenos descobertos empiricamente. Sistemas biológicos, por exemplo, pressupõem a existência de redes em animais, desde genéticas às multicelulares, que são descobertas em vez de simplesmente modeladas (Figura 2). Igualmente, a ecologia conceitua as teias alimentares e as interações animais menos letais – ou, mais precisamente, as potencialidades dessas interações – enquanto redes. O estabelecimento das redes como entidades empíricas realmente existentes acontece mesmo quando a própria análise das redes é enquadrada como uma abstração que substitui eventos do mundo real por um modelo redutivo, quase “cômico” (WATTS, 2004, p. 42). As redes são, pois, simultaneamente diagramas teóricos – modelos, baseados em observações passadas, usados para prever interações futuras – e coisas que existem no mundo. Por certo, elas comprometem a distinção entre o construído e o natural, o teórico e o empírico. Como o infame mapa de Borges, que se tornou o território.

Figura 1: Redes de rodovias estratégicas dos Estados Unidos da América (http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Strategic_Highway_Network.gif)

Figura 2: Sistema de representação estatístico das redes neuroanatômicas frontais de um macaco
Ademais, redes geram redes: elas não são apenas úteis para diagnosticar o contágio; elas mesmas são contagiosas. De acordo com o cientista de redes Duncan Watts, para que a nova ciência das redes tenha sucesso, é “preciso se tornar […] uma manifestação de sua própria matéria, uma rede de cientistas resolvendo coletivamente problemas que não podem resolver por um único indivíduo ou mesmo única disciplina” (WATTS, 2004, p. 29). É preciso uma rede para analisar uma rede; redes geram redes (elas são, talvez, tão autogeradoras quanto o capital; por isso a importância de mapear os mercados capitalistas tardios). As redes tornam porosas as fronteiras entre as variadas disciplinas que empregam redes, da economia aos estudos de mídia, da ciência política à biologia. Cada disciplina, ao que parece, descobriu as redes e, ao fazer isso, encontraram umas às outras e uma nova estrutura universal. Assim, o estudo das redes espelha insolitamente sua matéria, tornando ainda mais difícil separar a análise das redes delas mesmas.
Claramente, o conceito de “redes” não é consistente no interior e entre as disciplinas, embora as “redes” pressuponham a existência de conexões e agentes (nós e arestas). As redes, extraídas dos sistemas de comunicação, basicamente assumem que as mensagens precisam fluir entre nós, para que elas estejam “vivas”. A teoria das redes difere da teoria dos grafos em sua presunção de interações dinâmicas, que podem remodelar as estruturas das redes. De fato, a ciência das redes, mesmo que se baseie em representações “cômicas” e às vezes estáticas, buscam capturar e compreender eventos, como as catastróficas quedas de energias e os surtos virais.
Os modos de criticar as redes frequentemente tentam separar a redes e os mapas das redes. Bruno Latour insiste que elas são “uma expressão de quanta energia, movimento e especificidade nossos próprios relatos são capazes de capturar […] é uma ferramenta que ajuda a descrever algo, não o que é descrito” (LATOUR, 2005, p. 131). Tiziana Terranova igualmente descreve redes tais como a internet não apenas em termos de infraestrutura de rede, mas também em termos de informação que constantemente fluem pelas redes, do mesmo modo que fazem cientistas da computação como Jon Kleinberg. Mais recentemente, Anna Munster, em suas análises na obra The Aesthesia of Networks, insiste que as redes são pelo menos duas coisas: um mapa de infraestrutura e um mosaico jamesiano. Enfatizando o último, Munster argumenta a pulsação de energia e afeto – a experiência da rede – não pode ser reduzida aos nós e arestas, porque redes dizem respeito aos arranjos, às pulsações que malogram diferenciações de teias e criam espessas conexões entre o molecular e o molar.
Compreender a diferença entre a experiência de fluxos e os mapas é importante, e apreender a natureza generativa do contato é central para re-imaginar as redes. Contudo, a dupla natureza das redes, tanto traço como fluxo, é o que torna as redes tão atraentes. As redes espacializam o temporal traçando e projetando: estando concomitantemente muito adiantada e muito atrasada. O comando UNIX “traceroute”, que supostamente oferece um rastreamento de nossos pacotes de dados, ilustra bem o caso aqui. Para funcionar, a ferramenta “traceroute” envia uma série de pacotes com valores crescentes de TTL (time to live), começando com um “hop”. Sempre que o pacote “morre”, o roteador no qual o pacote expira envia uma mensagem de volta para a máquina de origem. Contudo, uma vez que os pacotes podem seguir diferentes rotas pela rede, tal “rastreamento” não é totalmente confiável. Por meio de configurações TTL temporizadas, o “traceroute” oferece-nos um pastiche de pacotes para mapear o que supostamente foi, é e será. As redes também espacializam o temporal imaginando e criando conexões, cortando em linhas o espaço amorfo. Utilizando outro exemplo técnico, considere como funcionam os telefones celulares. A princípio, a ideia de que os celulares constituem uma rede é estranha, uma vez que todos os transmissores e receptores enviam sinais ao ar. Tecnicamente falando, um celular não é somente o telefone, mas sim a área coberta por uma torre de telefonia celular. Para criar redes, as redes de telefonia celular, como a CDMA [Code Division Multiple Access], empregam diferentes bandas de frequências e códigos individuais para “criar” conexões: para codificar e decodificar sinais entre um único transmissor e a torre receptora. De tal modo, classificam enquanto externas as interferências, que são geradas pelos próprios mecanismos que transmitem e recebem, e pelo ar, seu presumido meio. Isso torna possível organizar os mapas de redes nos quais os nós se conectam diretamente a outros nós, em vez de influenciar difusamente tudo em sua vizinhança.
Tais exemplos técnicos são importantes, não porque os conhecimentos técnicos sejam uma “base” para outros, mas sim porque podem ajudar a elucidar o estranho poder de dois gumes (ou arestas) das redes. Reiterando o argumento de Jameson, “a tecnologia da sociedade contemporânea […] parece oferecer algum atalho de representação privilegiado para apreender uma rede de poder e controle ainda mais difícil para nossas mentes e imaginações: toda a nova rede global descentrada do terceiro estágio do próprio capital” (JAMESON, 1991, p. 38). Em si mesma a técnica imagina as redes: corta o espaço e o tempo contínuos em fatias de conectividade. Para isso, ela se baseia – prospera – em repetição. Sinais são constantemente repetidos a fim de serem transmitidos. Sinais que não são repetidos ou repetíveis “morrem”. Redes, devido a toda a sua preocupação com eventos singulares e virtuais que alteram fundamentalmente os mapas da rede, espacializam o temporal ao renderizar a constante repetição – ou a possibilidade de repetição – em linhas. Poder repetir, portanto, é a base da conexão, ou a base para a elucidação/imaginação da conexão. Poder repetir é o que une o maquínico e o humano.
Amizade recíproca
O poder transformativo e preditivo das imagens técnicas das redes fica explícito nos sites de redes sociais (SRSs), que reduzem as amizades em matrizes de relação, baseadas em nós e conexões. Tais sites, como redes de celulares, transformam os sinais de broadcast em linhas aparentemente límpidas, rastreáveis e recíprocas. Elas transformam as amizades em uma conexão definível e recíproca entre duas pessoas, alterando fundamentalmente o significado e o propósito da amizade. Historicamente, a amizade tem sido difícil de medir e, de fato, até mesmo considerada imensurável. Notoriamente, Aristóteles alegou: “Meu amigo, não há amigos” (conforme citado por DERRIDA, 1997, p. 177). Como argumentou Derrida, a amizade é fundamentalmente uma relação não recíproca que começa com o ato de amar o outro sem garantia de que esse será amado em retorno (Idem, p. 9). A amizade é, neste sentido, um “broadcast”. Tradicionalmente, os estudos sociológicos da amizade tem tido dificuldade por conta desta natureza não recíproca, e por causa da enorme variação da noção de amizade. Em resposta, os sociólogos têm defendido uma compreensão de amizade bem mais ampla que a trivialmente utilizada (ALLAN, 1989). Estudos mais recentes tratam a amizade como um elo direcional, o que torna as coisas rastreáveis, contudo intensamente computacional (FOWLER; NICHOLAS; CHRISTAKIS; ROUX, 2009). De muitas maneiras, os SRSs são os sonhos dos sociólogos que se tornam realidade porque eles tornam a amizade um vínculo fraco, contudo rastreável, não direcional (isto é, bidirecional): algo que pode ser verificado e rastreado.
A verificação e o rastreamento também mudam fundamentalmente a natureza da amizade, por automatizar gestos que estabelecem e sustentam a amizade, pelo uso de variados atos como um “teste” de força de um elo. Como bem revelou o trabalho de Taina Bucher (2010), o algoritmo Edgerank do Facebook.com procura determinar a força das bordas (conexões), de forma a determinar quais histórias aparecem no feed de notícias de alguém. Levando em conta que muitos usuários do Facebook.com têm milhares de amigos, e que tal site está interessado em direcionar a publicidade e apreender as relações entre os usuários de maneira bem geral a fim de prever preferências e ações futuras, não há tratamento das amizades como iguais. Para determinar a força de um elo – e então o que será visível ou invisível –, o Facebook.com atribui pesos a diferentes interações: por exemplo, um chat no site é sinal de uma amizade mais íntima. Como ressalta Bucher,
Há certa lógica circular incorporada no algoritmo. Para você curtir ou comentar a foto ou a atualização de status de um amigo, ele deve, em primeiro lugar, estar visível para você. Toda vez que você interage com um Edge, aumenta sua afinidade com o criador do Edge. (BUCHER, 2010, p. 1176).
Essa notável transformação da amizade depende de outra transformação igualmente notável da internet, de um espaço supostamente de anonimato para os de Nomes Reais, sendo isso central para a emergência do Big Data e da internet como mercado. Para que esses algoritmos funcionem, os nós precisam estar confiáveis: esses sistemas precisam ser capazes de confiar que os usuários estão dizendo a verdade sobre suas conexões, e que os usuários são os mesmos: os logins representam personalidades distintas.
Contudo, curiosamente, por mais que encapsule uma lógica para reduzir o mundo ao mapa, as redes prosperam criando dissipações [leaks]: interferências, contatos que comprometem conexões nítidas. As redes geram contatos e interações ao romper os obstáculos, ao torná-los porosos, de modo que os nós possam ser mais facilmente separados e as conexões rastreadas com maior precisão. Ou seja, as novas mídias e lógica de mapeamento são movidas por aquilo que buscam conter: a dissipação. Afinal, o que é um amigo nas redes sociais senão uma dissipação?
Friendster: ou o que está por trás
Amigos on-line, inicialmente vistos como uma maneira de tornar a Internet segura, fizeram qualquer coisa menos isso: desde a ascensão da Web 2.0, vimos uma explosão de cyberbullying e desgraças no Facebook.com, de maneira que empregos são perdidos ou admissões em faculdades negadas por conta de postagens aparentemente “privadas”. Tais desgraças revelam o peso por trás da estranha confluência de transparência e segurança, que impulsionou a demanda por “Nomes Reais” na Internet, principalmente pelas várias empresas que se beneficiam dessa “garantia” das identidades dos usuários. Randi Zuckerberg, diretora de marketing do Facebook.com, argumentou em 2011 que, por questão de segurança, “anonimato na Internet precisa desaparecer” (BOSKER, 2011, s.p.). Eric Schmidt, diretor executivo do Google, fez um argumento similar em 2010, afirmando: “em um mundo de ameaças assíncronas, é muito perigoso não haver uma forma de identificá-lo” (BOSKER, 2010, s.p.). Esses argumentos não foram novos ou específicos para a Web 2.0: desde que a Internet emergiu como veículo de massa em meados de 1990, as corporações têm argumentado que a garantia de identidade é crucial para a garantia de confiança (BYNUM, 1997).
O elo de confiança e segurança tem sido debatido por muitos acadêmicos, especialmente por Helen Nissenbaum. A autora, escrevendo em 2001, observou que, embora a segurança seja central para as atividades como o comércio eletrônico e os bancos,
não se alcança mais confiança e confiabilidade online – em sentido pleno – do que grades de prisão, câmeras de vigilância, esteiras e revistas de raios-X em aeroportos e cadeados podem alcançar off-line. Isso porque os fins previstos pelos proponentes de segurança e comércio eletrônico são contrários aos significados e mecanismos principais de confiança (NISSENBAUM, 2001, p. 121).
A confiança, ela insiste, é um conceito muito rico que envolve uma disposição a ser vulnerável. Como também aponta, a redução da confiança à segurança pressupõe que o perigo vem de forasteiros, e não de “indivíduos e organizações sancionados, estabelecidos e poderosos” (Idem, p. 128).
O tipo de proteção possibilitado para as amizades online é fundamentalmente de dissipagem, tal como evidencia a história do Friendster.com, o site que popularizou a amizade online. Nos primeiros anos deste século, Friendster.com popularizou a noção de amizade online nos Estados Unidos. Os usuários do Friendster.com criavam uma página de perfil, por meio da qual havia espaços para testemunhos e para uma lista de amigos. Concebido como um site de namoro, o Friendster.com foi lançado em versão beta em 2002 e se tornou inicialmente popular em três subgrupos: participantes do Burning Man, gays e blogueiros, especialmente os morando em São Francisco e Nova York. Como danah boyd (BOYD, 2008, s.p.) revelou, rapidamente se disseminou para outros subgrupos, como góticos, ravers e hipsters, e assim começou a atrair a atenção da mídia em meados de 2003. Em outubro de 2003, o site tinha mais de 3.3 milhões de contas.
O conceito orientando o Friendster.com era simples: competir com sites com o Match.com, baseando-se em declarações e depoimentos semipúblicos, em vez de procuras extensas e complexas. Desta maneira, buscou alavancar conexões já existentes, criando um site com uma base de usuários mais ampla, não apenas limitada aos que buscam conexões românticas. Tais “amigos” não era a única fonte de conexões (uma instância virtual de “matchmaking”, presumivelmente mais efetiva que a variante off-line visto que destacava mais conexões entre amigos do que seria possível por meio de intencionais “matchmaking”), pois eles eram também “usuários” potenciais do site. O site prosperou tornando vago o limite já vago entre “desimpedidos” e “compromissados”, ao mesmo tempo em que parecia respeitar tal limite pedindo que as pessoas declarem explicitamente seu status de relacionamento. Aos usuários não era oferecido uma visão geral do site, ou um acesso a todos os perfis, mas sim permitido que navegassem em rede egocêntrica, limitada a perfis com quatro graus de separação (amigos de amigos de amigos de amigos). Esse limite de “quatro graus” foi inspirado no experimento clássico do sociólogo Stanley Milgram, no qual ele (supostamente) mostrou que a maioria das pessoas é conectada por seis graus de separação. Para manter sua legitimidade enquanto site de namoro, Friendster.com dependia da autenticidade e da verificação da identidade e caráter dos amigos.
No entanto, Friendster.com logo caiu em desgraça nos Estados Unidos. Em 2004, a maioria dos usuários era de Singapura, Malásia e Filipinas. danah boyd (2008), entre outros, vinculou o declínio do Friendster.com ao “Fakester Genocide”, um esforço conjunto da administração em deletar as contas dos falsificadores: pessoas que criavam contas ficcionais de coisas (como o Burning Man) e de pessoas (como a Angelina Jolie). Muitos destes fakesters eram bastante populares, mas suas popularidades ameaçavam solapar a premissa teórica que geria o Friendster.com. De acordo com Jonathan Abrams, “as contas falsas exauriam todo o objetivo do Friendster [que é] ver como você está conectado às pessoas a partir de seus amigos” (MIESZKOWSKI, 2003, s.p.). Ao se vincular a um falsificador popular – ao se unir a uma comunidade de fãs –, um usuário rapidamente se tornava ligado a muitas pessoas que não eram conectadas a ele/ela a partir de amigos reais. Assim, como esses falsificadores eram bastante promíscuos, seguia-se então que não se podia saber com precisão de que maneira alguém estava conectado a outros e, por conseguinte, as conexões não podiam ser devidamente autenticadas. (Ignora-se aqui o fato de que um mútuo interesse em um falsificador poder servir ao igual propósito de ser amigo do amigo do amigo do amigo; isso também revelava que a autenticação era mais valorizada do que a afinidade).
Além de solapar a teoria que geria o site, o fenômeno fakester mais uma vez revelou os modos pelos quais o comunal poder ser uma arma em rede: isso ameaçou severamente a tecnologia do Friendster.com, porque, com tantas conexões, o site travou. A exclusão das contas fakester, contudo, levou a um êxodo não apenas daqueles que violavam as condições de uso do site, mas também daqueles simpatizantes com os fakesters e daqueles desconcertados com as táticas pesadas da administração do Friendster.com. Outros ainda deixaram o site porque outros o deixaram: sem atividade constante nas áreas de depoimentos, o site se tornou chato e os perfis “congelaram” em vestígios de conversas passadas (boyd; Heer, 2006). O êxodo em massa revelou o que a administração do Friendster.com não compreendia a respeito da popularidade do site: o fato de que, online, existir é estar atualizado. Atualizações constantes feitas por outras pessoas e por si mesmo são fundamentais para manter a presença e existência online. Como o feed de notícias e o lifestream do Facebook.com deixaram claro, em geral, compartilhar a vigilância com os usuários não apenas os tornam mais confortáveis com ela; também faz com que eles se envolvam mais com o site. A mudança constante no feed de notícias mantém “vivo” o site – a publicação das ações dos usuários mantém os SRSs longe de parecerem congelados. Por meio da criação de dissipações [leaks], o conteúdo é gerado.
Independentemente de seu fim como site de namoro, o legado do Friendster.com foi popularizar uma bizarra noção de amizade, na qual se assume que a amizade é recíproca e verificável, isto é, um tema de mútuo acordo. Como boyd (2004, s.p) nota, isso empobrece a noção de amizade – reduz a amizade a uma relação binária e assim nivela as diferenças entre os vários tipos de relacionamentos –, criando todo tipo de dilemas. Mais especialmente, compromete a separação entre trabalho e lazer, entre família e amigos. Ainda, essas quebras de fronteiras e suas consequências não foram apenas um infeliz efeito colateral; o problema-chave era isso, indiscutivelmente. Como a própria boyd observa, o propósito do Friendster.com foi confundir tal separação. Profunda e deliberadamente, o Friendster.com fez dissipar os limites entre o público e privado; fez depender a “exibição pública das relações privadas para permitir novas interações privadas” (boyd, 2004, s.p.). Essas interações privadas publicamente exibidas complicaram os entendimentos tradicionais da esfera pública. A extensão da noção de amizade do site foi a chave para a sua lógica; para promover a melhor autenticação e a maior variedade, precisou ir além da noção de amizade constituída. O comprometimento dos limites entre trabalho e lazer foi também seu modelo de negócio; por meio de atos de amizade, escrevendo no perfil e assim por diante, os conteúdos eram livremente fornecidos pelo site, e as conexões entre os usuários, que posteriormente os sites iriam monetizar, eram reveladas. A amizade foi um elemento fundamental para o que Tiziana Terranova chamou de “trabalho gratuito”.
A amizade constante e a dissipação gerada se tornaram a chave para o valor online, engendrado pela contínua repetição. A informação é valiosa, não quando e se é nova, mas sim por meio de seus modos de repetição: certa vez, Walter Benjamin, comparando o tempo da história e da notícia, pôde declarar: “o valor da informação não sobrevive ao momento em que era nova. Vive apenas naquele momento; precisa se entregar completamente e explicar a ele sem perder tempo” (BENJAMIN, 1969, p. 90), agora, a novidade sozinha não determina o valor. Em 2012, as corporações de notícias cobram por informações antigas. The New York Times online, por exemplo, oferecia certo número de artigos atuais de graça, mas depois cobrava pelo acesso ao arquivo; da mesma forma, programas populares de mídia de massa como This American Life ofereciam apenas o podcast da semana de graça. Pagamos pelas informações que perdemos (se as queremos), seja porque queremos vê-las novamente ou porque a perdemos quando saiu, sendo nossa falta registrada pelas muitas referências a elas (em relação a isso, considere todos os vídeos referindo-se a Two Girls, One Cup, depois que esse vídeo foi removido). Repetição produz valor; referências e curtidas repetidas por amigos e estranhos marcam algo como valioso, que vale a pena visitar, baixar. A informação – algum evento, incidente, objeto de mídia e assim por diante – torna-se valiosa quando se move de um evento observado singularmente para outro que provoca uma resposta em massa. É por isso que as análises sociológicas de sites como o Twitter.com tomam como base única os retuítes, as curtidas e outros atos de repetitivos.
Como deixa explícito o tema da repetição, o valor não é gerado por um “você”, mas sim por uma infinidade de VOCÊS: pelas próprias interconexões com vários vocês. Você, novamente, é central para as operações de redes porque pode se referir tanto a indivíduos como grupos. Em sua forma plural, contudo, refere-se ainda a pessoas enquanto indivíduos, em vez de criar outro sujeito comunal, um “nós”, a partir de um conjunto de “eus”. Em uma rede, os nós são ainda teoricamente distintos, porém agregados. O valor destes VOCÊS está relacionado e difere de outras noções de valor em rede, que enfatizam a importância do crowdsourcing, da cultura peer-to-peer e da natureza colaborativo do conhecimento, conceitos que têm sido desenvolvidos significantemente por acadêmicos como Yochai Becher, Pierre Levy e Paolo Virno. O valor do VOCÊS surge especialmente por meio de efeitos involuntários das ações dos usuários, das pesquisas aos cliques do mouse, das curtidas às postagens. Também é produto de certa política de armazenamento: a riqueza dos dados da rede vem do fato de que cada ação online é crescentemente rastreada e vinculada a outras, de modo que as redes de filiações possam ser construídas. Ou seja, se o nosso mundo é rico em dados, tal fato não é simplesmente porque nós fornecemos conteúdo de graça, mas sim porque toda interação é feita para deixar um rastro, que depois é incorporado a outros rastros e usado para entender você, onde você está é sempre tanto singular como plural. Quer algum “você” em particular esteja ciente disso ou não, enquanto VOCÊS constituímos um recurso latente: para mobilização política, mas também para mercantilização corporativa. Facebook.com e Google.com, entre outros sites, minera nossos dados não simplesmente para nos identificar como usuários únicos, mas também, e mais importante, para descobrir como nossas curtidas, compras e buscas coincidem com as dos outros. Eles coletam nossos dados de modo que suspendem a diferença entre o corpo estatístico individual e coletivo, mesmo quando respeitam e insistem nessa diferença, fornecendo-nos logins individuais e páginas otimizadas. É por isso que a noção de portal é tão atraente: encerrar-nos em espaços é a forma mais fácil de analisar e rastrear essas conexões.
A interseção de dados e os métodos desenhados para identificar tanto os indivíduos como as grandes tendências suspende a tradicional separação entre as duas lógicas de arquivo a fim de incorporar um corpo no qual Allan Sekula teorizou influentemente em relação à produção de provas fotográficas. A primeira, derivada do trabalho do criminologista Alphonse Bertillon, era focada na identificação do indivíduo, na inscrição do corpo no arquivo (Figura 3). A outra, derivada do trabalho do eugenista Sir Francis Galton, busca identificar o tipo oculto dirigindo o corpo e, assim, incorporar o arquivo na fotografia (Figura 4). Atualmente, tais abordagens tornaram-se inseparáveis do nível de captação e armazenamento de dados. O mesmo processo capta os dados necessários para identificação dos indivíduos enquanto singulares e registra suas relações com certos grupos. Amazon.com, por exemplo, rastreia as compras individuais não apenas para criar um registro nosso (uma impressão digital), mas também para conectar nossas ações com outros de modo que a realizar sugestões a outras compras, isto é, assim pode prever e encorajar comportamentos futuros que se conformem, confirmem e otimizem as análises estatísticas de rede.

Figura 3: Cartão Bertillon, 1913, reproduzido em: Sekula, Allan. The Body and The Archive, October, Vol. 39 (Winter, 1986), 3-64.

Figura 4: Galton, Francis. “The Jewish Type”, 1883, Prancha XXXV, reproduzido de Pearson, Karl. “The Life, Letters and Labours of Francis Galton”, e reproduzido em: Cartão Bertillon, 1913, reproduzido em: Sekula, Allan. “The Body and The Archive”, October, Vol. 39 (Winter, 1986), 3-64.
Os algoritmos e a mineração assumem que os dados coletados são confiáveis, que nossas ações online são tão indexadas quanto nossas medidas corporais e fotos de registro. Para ajudar a garantir isso, os sites criam estruturas de logins que ligam uma pessoa a um ID. Eles também se beneficiam pelo modo como nossos amigos – suas curtidas, postagens, marcações e retuítes (ou, pelo Gmail, suas mensagens de e-mails para nós) –, autenticam-nos e enredam-nos mais profundamente nessas redes. Suas ações igualmente ajudam a direcionar mensagens dirigidas cegamente a nós.
Contudo, a rede não é apenas um mapa, e o dissipativo das novas mídias é criado em parte porque nós ainda queremos ver separados o público e o privado. Isto é, para que a dissipação exista, limites e paredes precisam estar presentes; conexões precisam ser imaginadas como uma linha reta entre as entidades. Essa imaginação torna invisíveis os modos como a Internet e outras redes funcionam por meio de constantes e contínuos envios públicos, que às vezes são recebidos – ou muitas vezes recebidos, porém de forma promíscua, por dispositivos que não podem ou não querem lê-los. Sua placa de rede sem fio recebe todos os pacotes da vizinhança e, em seguida, exclui aqueles não diretamente endereçados a ela: diagramas organizados em rede dependem de apagamento ativo. Para intervir na rede, nas constantes cadeias de VOCÊS criadas, obsolescentes e demasiadas cedo, precisamos intervir no nível da repetição individual, no nível do habitual.
Conectando hábitos
Como argumento em mais detalhes em outro trabalho, os mapas de redes são possíveis devido a hábitos: devido a repetições habituais que tornam possível representar e antecipar conexões[6]. Amigos são “conexões” por causa de ações repetidas entre conexões – e a força dos laços é medida por ações repetidas. Hábitos, como argumentou Gilles Deleuze, tornam séries e serialidades – diferença – arranjadas em relação genérica. Além de fazer conexões mapeáveis, os hábitos são indiscutivelmente o que a cultura pode ser na era do neoliberalismo. Como as redes, elas oferecem uma resolução e individuação refinadas: os indivíduos “têm” hábitos (na verdade, são os hábitos que têm os indivíduos). Mas também, por meio de hábitos aparentemente individuais, emergem as ações coletivas, porque hábitos nunca são singulares. Ainda, argumentou William James, o hábito é “um enorme volante da sociedade, seu agente conservador mais precioso. Ele sozinho é o que nos mantém dentro dos limites da ordenança e salva os filhos da fortuna das revoltas invejosas dos pobres” (JAMES, 1950 [1890], p. 121). Hábitos são criações humanas tornadas natureza: são práticas adquiridas através do tempo, sendo aparentemente esquecidas à medida que passam do voluntário ao involuntário, do exterior ao interior. A partir disso, penetram e definem uma pessoa: tradicionalmente, um hábito era uma vestimenta externa, como o hábito de uma freira. Mais sombriamente, assumem vida própria, independente da vontade individual (hábitos enquanto drogas).
Por si mesmos, hábitos são em si mesmos dissipativos: eles turvam os limites entre natureza e cultura, entre indivíduos e sociedade. Hábitos, tal como Catherine Malabou delineou em sua introdução à Of Habit, de Félix Ravaisson, são geralmente entendidos de duas maneiras: primeiro, como repetição mecânica que corrói o que é distintamente humano; segundo, como fundamental para a vida, para o modo como persistimos. Embora uma explicação integral do texto de Ravaisson esteja fora do nosso propósito, Ravaisson, que se coloca firmemente no segundo campo, enfatiza que hábito não é instinto; não é uma resposta natural e automática. Em vez disso, o hábito frequentemente sinaliza uma mudança de disposição – e, na era das novas mídias, na verdade indica uma disposição para a mudança – em um ser que não muda, mesmo quando muda. Hábito, existindo por trás da personalidade e da consciência, adota uma mudança (um estímulo ou reação) de fora e faz dessa cada vez mais algo gerado de dentro, transformando assim receptividade em agência e capacitando o organismo a criar sua própria recompensa. O hábito ocorre quando a compreensão se torna tão forte que não é mais refletida, quando uma ação é tão autônoma que escapa da vontade e consciência, ou quando as ações repetidas do ser cobram suas próprias necessidades. Hábito, sublinha Ravaisson, é inteligência sem vontade ou consciência.
Com as novas mídias, a aquisição e a mudança de hábitos têm aceleradas. As redes neoliberais prosperam não apenas a partir de hábitos, mas também de constantes atualizações de hábitos: novas conexões, novas ações a serem rastreadas. Estamos hoje indiscutivelmente habituados às próprias mudanças: à antecipação e à aceitação do novo, onde o novo não é uma mudança radical, mas sim uma atualização, ou seja, as infinitas versões e revisões que dominam a lógica e o consumo da tecnologia computacional (Web 2.0 etc.). Como o fiasco recente do Windows 8 deixou explícito, o tipo de mudança esperada e adotada pelos usuários não é uma mudança radical. O Window 8 foi lançado em 2012 em meio a muita fanfarra: foi para reavivar a fama da Microsoft, ajudando-a a se adaptar ao nicho de constante mudança dos dispositivos pessoais, em particular do tablet. Ao se concentrar em ações centradas no toque e ao alterar extensivamente seu sistema operacional (perdeu até o menu Iniciar), gerou uma grande e geral confusão, e a Microsoft teve que relançar um ano depois uma versão “nova-velha” do Windows 8. Esse exemplo deixa claro o paradoxo das novas mídias: a Microsoft suspostamente está perdendo participação no mercado porque é vista como velha e conservadora. Contudo, ao realizar algo radicalmente novo, fez ainda pior.
O exemplo acima revela que, se as novas mídias são novas, elas são de um modo bem obscuro de novo, enquanto atualização em vez de originalidade. Novo não significa apenas algo que seja radicalmente diferente e lançado pela primeira vez; também significa “vindo como uma retomada ou repetição de algum ato ou coisa anterior; um recomeço, ressurgimento”; “algo restaurado depois de demolido, decaído, desaparecido” (The Oxford English Dictionary). Como o adágio modernista “faça isto novo” deixa claro, o novo significa pegar o que já existe e fazê-lo diferente ou revivê-lo. Nesse sentido, as novas mídias habituam-nos com a aquisição de hábitos “novos” habituando-nos à atualização. Elas nos habituam à atualização como forma de ocupação, como tentativa de nos apanhar.
Contudo, os hábitos, fundamental ao Big Data, podem igualmente abrir novas formas de compreender as coletividades e os espaços sociais. Assim, para concluir, eu gostaria de considerar os modos pelos quais os hábitos de amizade abriram – tornaram dissipados – outros espaços. Um corolário fascinante do Friendster.com foi a emergência de flashmobs, que se fez presente também em Nova York. Em tais aglomerações, de grupos de jovens hipsters, principalmente, convidava-se a participar de um “MOB, um projeto que cria uma inexplicável multidão de pessoas em Nova York por dez minutos ou menos” (Figura 5). O primeiro flashmobs reuniu-se em uma loja de tapetes da rede Macy; o quarto invadiu uma loja de sapatos no bairro Soho. Enquanto benignas ações coletivas de massa, os flashmobs foram somente lista de amigos ganhando vida: intervenções efêmeras no espaço público, constituídas por estranhos íntimos; público oculto ativado (SHUMUELL, 2009).
Curiosamente, embora os mobs fossem deliberadamente construídos para serem os mais banais possíveis (concentravam-se em ações como comprar sapatos) e ainda que fossem localizados em espaços públicos “seguros”, eles foram tratados com enormes suspeitas. Como observou o então organizador anônimo de Nova York, “Bill”, “parece haver algo inerentemente político em uma multidão inexplicável” (KAHNEY, 2003). De fato, como argumentou Jacques Rancière, o ajuntamento de uma multidão, falando uma linguagem não abertamente política ou não inteiramente compreensível às palavras e gestos das políticas oficiais, lembra a tradicional reivindicação “ruidosa” de direitos. Tais flashmobs deliberadamente apolíticos e expressos em termos de brincadeira e, mesmo assim, tão perturbadores – em conjunto com o fato de que mais tarde eles se transformariam em eventos de marketing comerciais e de enxames “criminosos” – exemplificam igualmente os perigos de ocupar e revelar os espaços líquidos, entre públicos e privados, entre ameaças e possibilidades, assim como de revelação do “amigo”. Assim, os flashmobs são símbolos do valor do VOCÊS, independente de como é feito o trabalho de captura do VOCÊS – seja de forma puramente expressiva, comercial ou política.
Os flashmobs revelam os modos como os hábitos são conectados – aparentemente limitados a ambientes virtuais e ao rastreamento do usuário –, podendo dissipar de maneiras esperadas: permite-nos assentar diferentemente hábitos e ambientes. Em vez de ficar satisfeito com as representações de conexões, como aquelas fornecidas pelo Facebook.com e Friendster.com, os usuários criam promíscuas zonas de contato – como fakester – que minam a noção de indivíduos como nós autônomos. Além de considerar as possibilidades políticas abertas e fechadas pelas “amizades”, precisamos aceder a outros modos de relação que explorem e prosperem no não recíproco – ou seja, que não exijam que os elos entre os agentes sejam explicitamente reconhecidos como bidirecionais. Twitter.com, um site público funcionando de maneira destacada, é baseado em modos frequentemente não recíproco de seguir e seguir seguido. Ademais, precisamos considerar como os atos repetidos involuntários – hábitos maquínicos –, tal como spam, podem ser a chave para abraçar as possibilidades de algo como uma ação coletiva na era em que a comunidade e as estruturas sociais maiores se dissolveram.

Figura 5: E-mail para MOB #4 na cidade de Nova York
Coda: Spam, ou outra forma de dizer eu te amo
Recentemente fui vítima de um golpe de phishing. O termo “fui vítima” é um pouco forte, uma vez que eu cliquei em um link no qual logo compreendi ter algo de duvidoso, e, se no momento não estivesse me distraindo com duas crianças pequenas e usando meu iPhone, jamais teria feito isso. O golpe me ensinou o que eu deveria sempre saber: não existe navegação online inocente.
Contudo, o golpe foi brilhante: um dos mais bem sucedidos no Twitter.com até agora. Consistia em uma “mensagem privada”, mal digitada e, portanto, aparentemente urgente, enviada às pressas, com um seguidor dizendo: “Não posso acreditar nisso, mas tem algumas coisas realmente desagradáveis sendo ditas sobre você aqui gourl.kr/A9hIR”. Eu recebi a mensagem de um ex-aluno, que igualmente gerenciava um importante site colaborativo, e eu tinha acabado de voltar de uma conferência: As circunstâncias eram perfeitas, embora os erros de ortografia e a linguagem poderiam sinalizar a falsidade de tal mensagem (o aluno era profissional demais para enviar tal tipo de mensagem). Tal golpe de phishing não somente comprometeu minha conta no Twitter.com; permitiu que todos os que me seguiam fossem igualmente golpeados, assim me expôs como sendo ingênua e possivelmente paranoica.
De forma previsível, muitas pessoas me contataram diretamente, deixando-me saber o que já sabia – que eu havia sido golpeada – e eu tive que ampliar meu constrangimento público entrando em contato com todos e informando que a “mensagem privada” que eu havia enviado era tudo menos minha. Isso me fez entender que eu tinha tomado uma abordagem errada nas redes sociais. Claramente, eu deveria mudar minhas práticas de amizades e somente ser amigo e seguir as pessoas que eu odeio.
Contudo, houve um surpreendente proveito no caso, que me fez decidir não fazer a mudança. Visto que quase nunca tuíto, o golpe de phishing fez-me alcançar pessoas que se importavam o suficiente ao ponto de passar por alto os comentários de 140 caracteres que eu poderia fazer. O spam, ou phishing, tornou-se outra forma de eu dizer eu te amo.
Uma conversa em particular deixou claro o acima. Uma colega próxima minha recebeu de mim a mensagem de phishing e disse que estava honrada por isso (acho que ela também tinha sido vítima do mesmo). Lilly Irani, uma brilhante estudante de graduação que eu tinha conhecido no verão, postou isto em resposta: “@Inakamur Olha, meu primeiro pensamento foi ‘wendy chun pensou em mim’. Depois meu coração se afogou, percebi que era spam :)”. Em resposta, eu postei “@brilhante @Inakamur talvez esse seja o proveito do spam – entrar em contato com todos que me amam”. Ainda que estivesse brincando um pouco no momento, existe algo de amor no spam: essas conversas me fez pensar sobre a relação entre a discussão de Povinelli acerca das feridas físicas que marcam os contatos entre as áreas empobrecidas da Austrália e as feridas virtuais supostamente ligadas às nações e mercados “emergentes”. Ambas criam “atitudes de interesse e desinteresse, ansiedade e compreensão, culpa e inocência acerca de certas vidas, corpos e vozes e, nesse processo, formam e deformam vidas, corpos e vozes” (POVINELLI, 2006, p. 35).
O lado amoroso do spam também nos ajuda a repensar a diferença entre spam e não spam, humano e não humano. Afinal, qual é a diferença entre o nosso semiautomático “feliz aniversário” postados nas páginas do Facebook.com e em e-mails, supostamente de nossos amigos, pedindo-nos para comprar remédios farmácias canadenses duvidosas? Mensagens involuntárias (ou não completamente involuntárias) dos outros nos lembram de que estamos de alguma foram conectados a eles – que estamos em sua agenda de contatos, que elas se importam o suficiente conosco para nos colocar em risco. É desse modo que o valor latente de nossas redes se manifesta para nós. Ademais, como observou o fundador do Slashdot, Rob Malda, o termo “shashdotting um site” é traduzido frequentemente como torná-lo inoperável: O abraço de uma multidão é idêntico a um distribuído golpe de rejeição de serviço (MANKELOW, 2012). Novamente, períodos síncronos de “nós”, de ação comunal, são intrigantemente destrutivos para as redes; o valor do VOCÊS tem o poder de anular a si mesmo.
Tais interações nos lembram de que a liberdade e amizade são experiências que negam a subjetividade tanto quanto as torna possível. Enquanto uma experiência, elas não são contratuais, mas sim esforços perigosos por meio dos quais nós não sabemos de antemão aonde vão nos levar. Como argumentou Jean Luc Nancy, a liberdade é uma experiência. É “uma tentativa empregada sem reservas, entregue ao perigo de sua própria falta de fundamento e segurança neste ‘objeto’ do qual não é o sujeito, mas sim a paixão, vista como o pirata [peirates] que arrisca livremente sua sorte em alto-mar” (NANCY, 1993, p. 20). A raiz grega de pirata significa tanto perigo como experiência.
A liberdade da amizade aparece sem garantias. Ademais, não é algo que possuímos, não é algo que qualquer um pode possuir ou conceder a outro, mesmo se isso gere valor de VOCÊS que alguém possa temporariamente capturar. É uma força que quebra os vínculos – uma forma de destruição, Jean Luc Nancy afirma, que possibilita tanto a amizade (habitação) como a total destruição. A amizade como uma experiência é um momento tanto de terror como de esperança: um momento de indefinido acolher [hosting] e de sequestrar [hostage] o outro. É um momento no qual os vínculos são feitos e quebrados – não uma só vez, mas várias, isto é, se há algo como a amizade ou a liberdade, que comece. E comece novamente.
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[1] Este artigo é uma reprodução de um publicado em Amerikastudien/American Studies, 60.2 (2015), o jornal oficial da German Association for American Studies.
[2] Para saber mais sobre esse afeto como rede, consulte Sylvan Tomkins, Brian Massumi, Patricia Clough.
[3] Tal noção de comportamento celular enquanto criadora de ações globais complexas e eficientes, tem, é claro, uma longa história, decorrente pelo menos dos primeiros trabalhos de von Neumann sobre autômatos celulares.
[4] Terranova nos afasta do entendimento de redes, como a internet, em termos de infraestrutura, para salientar os fluxos de interações. De tal modo, ela defende a importância das relações afetivas e a necessidade de criar paixões comuns que percorram o meio informacional.
[5] Para obter mais sobre a informação como morta-viva, consulte CHUN, “The Enduring Ephemeral”.
[6] Ver CHUN, Habitual New Media (no prelo, MIT, 2016). Para uma visão geral do argumento, visite http://vimeo.com/78287998. Acesso: 9/01/2015.